April 10, 2022

A venda de estatais na xepa causou prejuízos irreparáveis ao Erário

 

Por Carlos Drummond

 Apesar da contínua campanha do governo e da mídia contra o Estado, a maioria da população permanece contrária às privatizações, segundo pesquisas, e a explicação é o péssimo resultado prático da transferência para a iniciativa privada de serviços e atividades essenciais para a vida dos cidadãos. Serviços caros, de má qualidade, prestados com um atendimento que despreza os chamados clientes, proporcionam, entretanto, milhões de reais despejados nos bolsos dos poucos beneficiados com as operações.


Embora inepto até no quesito privatização, uma das promessas de campanha de Bolsonaro e Paulo Guedes, o Posto Ipiranga, o atual governo obteve até dezembro 227 bilhões de reais com vendas sem justificativa aceitável à luz dos seus próprios critérios, sugere o resultado das estatais publicado pela própria União, detalhado adiante. Os ganhos colossais com aquisições feitas na bacia das almas, isto é, pelo menor preço, perpetuam-se no tempo e isso encoraja todo tipo de expediente para forçar as operações, como alerta o Nobel de Economia Joseph Stiglitz, no livro Privatizations: Successes and Failures, de Gérard Roland.

A ausência de justificativa para priva-
tizar é demonstrada inclusive em núme-
ros. Mesmo quando a situação das contas
públicas melhora, como vem ocorrendo,
o governo faz o possível e o inconfessá-
vel para torrar o patrimônio público, in-
clusive a preços vis. A justificativa liberal
clássica, de que é preciso privatizar por-
que o controle privado da propriedade e
da gestão é mais eficiente, é desconside-

rada sem qualquer pudor e a preferência
recai justo sobre as companhias mais lu-
crativas. O Boletim das Empresas Estatais
Federais do primeiro trimestre, publica-
do pela Secretaria de Coordenação e Go-
vernança das Empresas Estatais do Mi-
nistério da Economia, mostra que o resul-
tado líquido acumulado dos grupos Ele-
trobras, Petrobras, Banco do Brasil, Cai-
xa e BNDES, empresas públicas que o go-
verno ainda não conseguiu privatizar por
completo, somou 135,4 bilhões de reais,
aumento de 154,4 bilhões em relação ao
registrado no mesmo período do ano an-
terior, que foi deficitário em 19 bilhões.


A venda de estatais e de suas ações foi
feita sem passar pelo Congresso e com o
auxílio do Judiciário, em especial do Su-
premo Tribunal Federal, que em 2019 au-
torizou a privatização direta de subsidiá-
rias dessas empresas, um empurrão pa-
ra o desmonte da Petrobras, entre outras.


A decisão do STF possibilitou a venda da
BR Distribuidora, da transportadora de
gás TAG e das refinarias antes controla-
das pela petroleira, com dano real e ime-
diato à população, em especial à sua par-
cela mais pobre. A privatização da TAG é
exemplar da lógica do processo, por im-
plicar o aumento das despesas de aluguel
da Petrobras para contratação dos mes-
mos serviços de transporte de gás antes
prestados pela agora ex-controlada. Em
nove anos, a contar da data da transação,
a petroleira devolverá, com pagamento de
aluguel, tudo o que recebeu pela venda da
TAG, no total líquido de 27,9 bilhões de
reais. “As estatais são ativos estratégicos
para o País. Veja o desastre que foi a ques-
tão de o governo se desfazer das fábricas
de fertilizantes, tínhamos três em pleno
funcionamento e uma em construção. O
governo Bolsonaro fechou uma, arrendou
duas e está vendendo aquela que está com
mais de 80% das obras concluídas”, dis-
para Deyvid Bacelar, presidente da Fe-
deração Única dos Petroleiros. Quem
apoia privatização, diz, é dono de capi-
tal. A população percebeu que o discurso
de que é preciso privatizar para melho-

rar os serviços e os preços é uma falácia.
O atropelo dos cuidados e dos procedi-
mentos indispensáveis ao trato dos bens e
do interesse públicos generalizou-se nos
processos de desestatização. “Mesmo em
estados em que as respectivas Constitui-
ções obrigavam a realização de consultas
populares sobre a privatização de deter-
minados setores, como Minas Gerais e
Rio Grande do Sul, o sistema político sem-
pre buscou se desvincular dessas obriga-
ções, seja promovendo formas de privati-
zação disfarçada, como acordos de acio-
nistas no caso da Cemig, de Minas Gerais,
ou a retirada desses dispositivos de con-
sulta popular do texto da Constituição es-
tadual, como fez o ex-governador Eduar-
do Leite no Rio Grande do Sul”, enume-
ra Gilberto Bercovici, professor titular de
Direito Econômico e Economia Política
da Faculdade de Direito da USP.


A pressão para privatizar a Eletrobras a
todo custo é um dos exemplos do atropelo
de normas e procedimentos. Houve atra-
so considerável do processo para cumpri-
mento das exigências legais, principal-
mente dos EUA, onde ações da empresa
são negociadas na Bolsa. Nessas condi-
ções, se fosse para cumprir todos os trâ-

mites no Brasil, a privatização ficaria para
o próximo ano, com risco de um eventu-
al governo distinto do atual barrar o pro-
cesso. “Em condições normais, seguindo
todos os ritos necessários, eles não conse-
guiriam privatizar a empresa, mas o que
se vê é que os órgãos reguladores têm ava-
lizado todo o processo sem a menor pre-
ocupação com a legalidade e com a regu-
laridade. A continuar dessa forma, é pos-
sível que eles consigam fazer essa venda
até outubro. Há uma situação de total le-
niência por parte dos órgãos reguladores,
como a Comissão de Valores Mobiliários
e a agência reguladora, a Aneel”, dispara
Ikaro Chaves, diretor da Associação dos
Engenheiros e Técnicos do Sistema Ele-
trobras (Aesel).


Pode parecer pouco a privatiza-
ção de cinco estatais dentre as
50 visadas pelo governo, mas,
neste caso, os números talvez
sejam ilusórios, pois o interes-
se e a urgência recaem precisa-
mente sobre as empresas mais estratégi-
cas e lucrativas. As operações envolvem
montanhas de dinheiro, mesmo com a
venda realizada a preços aviltados, mos-
tram os valores da privatização da TAG, de
33,5 bilhões de reais, da BR Distribuidora,
de 21 bilhões, do campo de petróleo de
Tartaruga Verde, de 11,3 bilhões, e da
Refinaria Landulfo Alves, de 8,8 bilhões.
Na campanha eleitoral, em 2018, Bolso-
naro descartou privatizar a Caixa, o Banco
do Brasil e o núcleo de exploração da Pe-
trobras. No ano passado, cogitou a venda
do BB, mas voltou atrás, em um vaivém
determinado pelos interesses eleitorais
de cada momento. A desestatização com-
pleta da Petrobras nunca saiu do discurso
do governo e agora ganha novas possibili-

dades de se concretizar com a defesa, pe-
lo presidente da Câmara dos Deputados,
Arthur Lira, na terça-feira 5, da revisão
da Lei das Estatais para mudar as regras
e viabilizar a venda. Em 2019, Bolsonaro
prometeu iniciar o processo de desestati-
zações com ao menos 17 empresas, entre
elas Correios, Eletrobras, Telebras, Data-
prev, Lotex e Casa da Moeda, para faturar
2 trilhões de reais ainda nos primeiros 12
meses de mandato. Nos dois últimos anos,
nenhuma estatal de peso foi vendida. Em
janeiro, a lista mínima de pretensões ficou
ainda menor, com Eletrobras, Correios e
Porto de Santos. A lista de privatizações
prometidas para 2022 inclui Eletrobras e
Correios, a primeira enroscada no TCU e
a segunda, no próprio Congresso.


A maioria dos brasileiros sen-
te no bolso que a privatiza-
ção é uma roubada. O caso da
Refinaria Landulpho Alves
(RLAM), hoje Refinaria de
Mataripe, ilustra bem o pro-
blema. Desde que foi comprada pelo fun-
do Mubadala, sublinha Bacelar, os preços
dos combustíveis subiram na Bahia mais
do que em outros estados. Além disso, a
empresa priorizou a exportação do óleo
combustível e, com essa decisão, provocou
a escassez do produto para abastecimento
dos navios que atracam em Salvador, pre-
judicando o turismo em cruzeiros maríti-
mos. “As privatizações seguem tendo re-
sultados desesperadores para o povo. No
Rio de Janeiro, os preços das passagens
das barcas, metrô e trens comprometem
a renda do trabalhador, obrigando muitos
a dormir nas ruas durante a semana, pa-
ra economizar o dinheiro gasto no deslo-
camento para o trabalho. Estes compõem
uma parte considerável dos mais de 11 mil
moradores de ruas da região central da ci-
dade”, ressalta Ary Girota, presidente do
Sindicato de Trabalhadores nos Serviços
de Água e Esgotos do Rio de Janeiro. Outro
caso é a privatização de parte dos sistemas
de distribuição de água da Cedae. Várias
localidades da Região Metropolitana flu

minense, diz Girota, sofrem com o desa-
bastecimento em consequência da deter-
minação dos gestores privados de privi-
legiar locais onde o retorno financeiro é
garantido. Na saúde pública, diz Chaves,
o domínio do critério da lucratividade é
gritante com a ampla privatização que en-
tregou às organizações sociais o controle
de hospitais e do sistema de saúde de es-
tados inteiros. Parece não restar área da
economia imune à pressão privatizante.


Um dos problemas das priva-
tizações no País é que elas se
restringem à operação, mas
existem funções inerentes ao
Estado que só ele pode exe-
cutar, de regulação, defini-
ção das regras, coordenação, fiscaliza-
ção e supervisão, sublinha o economis-
ta Antonio Corrêa de Lacerda, professor
da PUC de São Paulo. Com a privatização
malfeita e apressada, diz, tendo em vista
só a arrecadação, não o cuidado indispen-
sável quando se trata de transferir mono-
pólios e oligopólios públicos para o setor
privado, quem paga a conta é a sociedade.
“Os liberais costumam citar como exem-
plo positivo a privatização das telecomu-
nicações, por ter generalizado o acesso a
esse serviço. Esse efeito não é, contudo, re-
sultado apenas da privatização, mas da es-
petacular mudança tecnológica no setor,
ocorrida mundialmente”. O que o País tem
hoje é um serviço de amplo alcance, diz,
mas de péssima qualidade, tanto no caso
da telefonia quanto da internet, e carís-
simo, com uma das tarifas mais altas do
mundo. “As empresas tratam o usuário,
como gostam de chamar, como verdadei-
ro idiota. Se você tem um problema, eles
te jogam num canal onde é um robô que
te atende, mas não entende o que você fa-
la. Você perde horas, às vezes dias, na ten-
tativa de resolver a sua questão”, dispara
Lacerda. O pior deles é o apagão de 2001,
com a privatização malfeita. “O que está
por trás disso é a ausência de um projeto do
que fazer com o Estado, qual o seu papel.”


Várias pesquisas mostraram a rejei-
ção da maior parte da população às pri-
vatizações, um apoio declinante ao longo
dos anos, sob efeito da propaganda maciça
do governo e da mídia, mas que subsiste.
Um levantamento recente do PoderData
mostrou que 54% dos entrevistados são
contra a privatização da Petrobras e 56%
desaprovam a da Eletrobras. Para 43%, o
governo não deveria privatizar nada, uma
queda importante em relação aos 53% de
seis meses atrás. Essa redução é relati-
vizada, em alguma medida, pelo fato de
apenas 20% dos entrevistados acharem
que todas as estatais deveriam ser priva-
tizadas. “A maioria da população sempre
foi contrária às privatizações. Todos sen-
tem pessoalmente o impacto da elevação
de preços e de tarifas dos serviços públi-
cos, a péssima qualidade da prestação e
a impossibilidade prática de qualquer re-
clamação. Essa proporção tem caído, no
entanto, até em virtude da maciça propa-
ganda midiática em favor do discurso neo-
liberal”, destaca Bercovici. A opinião pú-
blica popular, diz, foi relevante nas déca-
das de 1940 a 1960, particularmente com a
campanha O Petróleo É Nosso, que propi-
ciou a criação da Petrobras. “De 1985 para
cá, há um paradoxal esvaziamento da im-
portância das manifestações populares e
da opinião popular sobre os temas relati-
vos à soberania e à política econômica.”


Chaves complementa: “Vivemos nu-
ma situação em que a opinião pública
tem muito pouco peso. As instituições
brasileiras estão praticamente imunes
à opinião pública. Mesmo com uma re-
sistência muito grande ao governo Bolso-
naro, repleto de escândalos, não foi aber-
to o processo de impeachment, casos de
corrupção acontecem sem a mobiliza-
ção da sociedade. A indignação não tem
se transformado em mobilização e a mo-
bilização não tem sido eficaz no sentido
de sensibilizar os Poderes da República,
principalmente o Legislativo”. •

CARTA CAPITAL

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