Não surpreende o ataque do filhote de Bolsonaro contra a jornalista Miriam Leitão. O que choca é a sociedade não reagir a tamanha infâmia
POR GUILHERME BOULOS
“Fui levada para uma grande sala vazia. (…) Chegaram três homens à paisana. Mandaram eu tirar a roupa. Fui tirando, constrangida, cada peça. Quando estava nua, eles mandaram entrar uns dez soldados na sala. Eu tentava esconder minha nudez com as mãos. Os soldados ficaram me olhando e os três homens à paisana gritavam, ameaçando me atacar (…) um homem voltou trazendo uma cobra grande, assustadora, que ele botou no chão da sala, e antes que eu a visse direito apagaram a luz, saíram e me deixaram ali, sozinha com a cobra. (…) Eu não tinha noção de dia ou noite na sala escurecida pelo plástico preto. E eu ali, sozinha, nua. Só eu e a cobra. Eu e o medo. (…) Não era possível nem chorar, poderia atrair a cobra. Passei o resto da vida lembrando dessa sala de um quartel do Exército brasileiro.”
Esses são trechos do depoimento da jornalista Miriam Leitão à Comissão Nacional da Verdade, sobre o momento em que foi torturada pela ditadura. Era dezembro de 1972, estava presa em um quartel de Vila Velha, no Espírito Santo. Miriam foi retirada da cela e escoltada até o pátio sob tapas, chutes e golpes que abriram a sua cabeça, após horas intermináveis trancada na sala escura com uma jiboia. A caminho do pátio, os torturadores avisaram que seria último passeio, ameaçando que seria fuzilada.
Há poucos dias, Eduardo Bolsonaro,
filhote do presidente, debochou da tortu-
ra de Miriam, dizendo em uma rede so-
cial que teria “dó da cobra”. As barbari-
dades sofridas por ela estiveram longe de
ser exceção. Brilhante Ustra, o tortura-
dor mais conhecido da ditadura, coloca-
va ratos nas vaginas de mulheres duran-
te as sessões de horror. Amelinha Teles,
então jovem militante, foi torturada por
ele diante de seus filhos de 4 e 5 anos. Os
relatos colhidos pela Comissão da Verda-
de trazem centenas de situações indizí-
veis como essas. A barbárie era o padrão.
Que a família Bolsonaro defenda a tor-
tura e deboche dela não é novidade. O
problema da ditadura é que “torturou e
não matou”, disse certa vez. Ele mesmo,
na fatídica e vergonhosa sessão da Câ-
mara Federal que votou o impeachment
de Dilma, homenageou Brilhante Ustra
aos olhos do mundo todo. O fato de Ustra
ter comandado a tortura da própria Dil-
ma tornou aquele momento ainda mais
abjeto. Na campanha de 2018, disse que
o livro do torturador estava em sua ca-
beceira e, já no Planalto, recebeu a viúva
do crápula em almoço de honra. Não sur-
preende, portanto, o ataque covarde de
seu filhote contra Miriam Leitão.
O que choca é a sociedade não reagir
a isso nas devidas proporções. Ao defen-
der um torturador no Congresso Nacio-
nal, o então deputado Jair Bolsonaro
deveria ter sido cassado. Seria o míni-
mo em um país que respeita a sua histó-
ria e a dignidade humana. Mas não: foi
eleito presidente dois anos depois. De
degrau em degrau, vamos chegando ao
fundo do abismo ético e revelando uma
sociedade profundamente adoentada.
A tortura é o ato humano mais torpe,
o limiar da desumanização. Quem acei-
ta a tortura do outro, perde a condição de
dizer não a todo o resto. A naturalização
da tortura também permitiu que, mesmo
após o fim da ditadura, ela fosse manti-
da como prática corrente nas delegacias
e presídios. Agora, não mais contra pre-
sos políticos, mas com os alvos de sem-
pre do Estado brasileiro: pobres e negros.
No caso da família Bolsonaro, a rela-
ção com os porões da ditadura vai além
da crença ideológica e do sadismo covar-
de. No livro A República das Milícias, o
corajoso jornalista Bruno Paes Manso
mostra como os antigos torturadores,
diante da transição democrática e, con-
sequentemente, da sua perda de função
política, foram sendo incorporados pelo
crime organizado. Muitos dos agentes do
submundo da ditadura acabaram recru-
tados pelo jogo do bicho e, posteriormen-
te, pelas milícias cariocas.
Transformaram-se em matadores de
aluguel e donos de territórios, onde apre-
sentavam-se como justiceiros para extor-
quir a população local. É nas milícias que
a tradição de Brilhante Ustra e da escude-
ria Le Coq se encontra com o bolsonaris-
mo, através de gente como Fabricio Quei-
roz e Adriano da Nóbrega, cujo assassina-
to pode ter sido encomendado pelo pró-
prio presidente para “queima de arquivo”.
Mas nunca é tarde para tirar o país da
miséria humana. Este é o grande desafio
que temos em 2022: tirar os milicianos
do Planalto e devolver os defensores da
tortura para a lata do lixo. A encruzilha-
da que teremos este ano tem uma dimen-
são histórica muito além de uma simples
eleição. Será uma escolha entre a huma-
nidade e a desumanização. •
redacao@cartacapital.com.br
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