April 19, 2022

Tortura, o limiar do humano

 



Não surpreende o ataque do filhote de Bolsonaro contra a jornalista Miriam Leitão. O que choca é a sociedade não reagir a tamanha infâmia

POR GUILHERME BOULOS 

“Fui levada para uma grande sala vazia. (…) Chegaram três homens à paisana. Mandaram eu tirar a roupa. Fui tirando, constrangida, cada peça. Quando estava nua, eles mandaram entrar uns dez soldados na sala. Eu tentava esconder minha nudez com as mãos. Os soldados ficaram me olhando e os três homens à paisana gritavam, ameaçando me atacar (…) um homem voltou trazendo uma cobra grande, assustadora, que ele botou no chão da sala, e antes que eu a visse direito apagaram a luz, saíram e me deixaram ali, sozinha com a cobra. (…) Eu não tinha noção de dia ou noite na sala escurecida pelo plástico preto. E eu ali, sozinha, nua. Só eu e a cobra. Eu e o medo. (…) Não era possível nem chorar, poderia atrair a cobra. Passei o resto da vida lembrando dessa sala de um quartel do Exército brasileiro.”

  Esses são trechos do depoimento da jornalista Miriam Leitão à Comissão Nacional da Verdade, sobre o momento em que foi torturada pela ditadura. Era dezembro de 1972, estava presa em um quartel de Vila Velha, no Espírito Santo. Miriam foi retirada da cela e escoltada até o pátio sob tapas, chutes e golpes que abriram a sua cabeça, após horas intermináveis trancada na sala escura com uma jiboia. A caminho do pátio, os torturadores avisaram que seria último passeio, ameaçando que seria fuzilada.

Há poucos dias, Eduardo Bolsonaro,

filhote do presidente, debochou da tortu-

ra de Miriam, dizendo em uma rede so-

cial que teria “dó da cobra”. As barbari-

dades sofridas por ela estiveram longe de

ser exceção. Brilhante Ustra, o tortura-

dor mais conhecido da ditadura, coloca-

va ratos nas vaginas de mulheres duran-

te as sessões de horror. Amelinha Teles,

então jovem militante, foi torturada por

ele diante de seus filhos de 4 e 5 anos. Os

relatos colhidos pela Comissão da Verda-

de trazem centenas de situações indizí-

veis como essas. A barbárie era o padrão.

 

Que a família Bolsonaro defenda a tor-

tura e deboche dela não é novidade. O

problema da ditadura é que “torturou e

não matou”, disse certa vez. Ele mesmo,

na fatídica e vergonhosa sessão da Câ-

mara Federal que votou o impeachment

de Dilma, homenageou Brilhante Ustra

aos olhos do mundo todo. O fato de Ustra

ter comandado a tortura da própria Dil-

ma tornou aquele momento ainda mais

abjeto. Na campanha de 2018, disse que

o livro do torturador estava em sua ca-

beceira e, já no Planalto, recebeu a viúva

do crápula em almoço de honra. Não sur-

preende, portanto, o ataque covarde de

seu filhote contra Miriam Leitão.

 

O que choca é a sociedade não reagir

a isso nas devidas proporções. Ao defen-

der um torturador no Congresso Nacio-

nal, o então deputado Jair Bolsonaro

deveria ter sido cassado. Seria o míni-

mo em um país que respeita a sua histó-

ria e a dignidade humana. Mas não: foi

eleito presidente dois anos depois. De

degrau em degrau, vamos chegando ao

fundo do abismo ético e revelando uma

sociedade profundamente adoentada.

 

A tortura é o ato humano mais torpe,

o limiar da desumanização. Quem acei-

ta a tortura do outro, perde a condição de

dizer não a todo o resto. A naturalização

da tortura também permitiu que, mesmo

após o fim da ditadura, ela fosse manti-

da como prática corrente nas delegacias

e presídios. Agora, não mais contra pre-

sos políticos, mas com os alvos de sem-

pre do Estado brasileiro: pobres e negros.

 

No caso da família Bolsonaro, a rela-

ção com os porões da ditadura vai além

da crença ideológica e do sadismo covar-

de. No livro A República das Milícias, o

corajoso jornalista Bruno Paes Manso

mostra como os antigos torturadores,

diante da transição democrática e, con-

sequentemente, da sua perda de função

política, foram sendo incorporados pelo

crime organizado. Muitos dos agentes do

submundo da ditadura acabaram recru-

tados pelo jogo do bicho e, posteriormen-

te, pelas milícias cariocas.

 

Transformaram-se em matadores de

aluguel e donos de territórios, onde apre-

sentavam-se como justiceiros para extor-

quir a população local. É nas milícias que

a tradição de Brilhante Ustra e da escude-

ria Le Coq se encontra com o bolsonaris-

mo, através de gente como Fabricio Quei-

roz e Adriano da Nóbrega, cujo assassina-

to pode ter sido encomendado pelo pró-

prio presidente para “queima de arquivo”.

 

Mas nunca é tarde para tirar o país da

miséria humana. Este é o grande desafio

que temos em 2022: tirar os milicianos

do Planalto e devolver os defensores da

tortura para a lata do lixo. A encruzilha-

da que teremos este ano tem uma dimen-

são histórica muito além de uma simples

eleição. Será uma escolha entre a huma-

nidade e a desumanização. •

 

redacao@cartacapital.com.br




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