A moratória do desmatamento,
proposta em ação analisada pelo STF,
pode jogar Bolsonaro contra a sua base
POR MAURÍCIO THUSWOHL
Vilão internacional desde
que transformou o des-
matamento em prática es-
timulada pelas ações e
omissões do governo Bol-
sonaro, o Brasil se dá ao luxo de ter uma
generosa legislação que permite a su-
pressão de vegetação em uma série de ca-
sos. Segundo um levantamento feito por
pesquisadores da USP e da UFMG em
parceria com organizações socioambien-
tais, o chamado “desmatamento legal”
no Brasil, conforme as normas vigentes,
ainda pode abocanhar uma área de 70
milhões de hectares de floresta nativa, o
equivalente ao dobro do território da
Alemanha. Trata-se de um mercado que
movimenta milhões de dólares a cada
ano e que, de acordo com a Associação
Brasileira da Indústria de Madeira Pro-
cessada Mecanicamente (Abimci), ape-
nas nos seis primeiros meses de 2021
mandou para fora do País 1,18 milhão de
toneladas de madeira.
Tida por especialistas como a melhor
maneira de combater a derrubada ilegal
de árvores nos biomas brasileiros, sobre-
tudo na Amazônia, a adoção de uma mo-
ratória completa do desmatamento le-
gal é a principal sanção prevista na Ação
de Descumprimento de Preceito Funda-
mental 760, que teve sua votação suspen-
sa no Supremo Tribunal Federal após o
pedido de vista feito pelo ministro André
Mendonça e deverá voltar à pauta após a
Páscoa. Proposta por partidos da oposi-
ção e um grupo de ONGs socioambientais,
a ação exige que o governo federal retome
o Plano de Ação para Prevenção e Contro-
le do Desmatamento na Amazônia, cria-
do em 2004 pelo governo Lula e abando-
nado por Bolsonaro em 2019. A ADPF 760
foi apensada à Ação Direta de Inconstitu-
cionalidade por Omissão (ADO) 54, com
teor semelhante, e ambas fazem parte da
chamada “Pauta Verde”, com sete ações
que serão julgadas pelo STF.
A moratória completa é encarada
como algo que pode mexer no bolso de
um setor que está na base de apoio ao
bolsonarismo: “O constrangimento se-
rá grande para a indústria madeireira e
ainda maior para o governo, que sofre a
pressão dos desmatadores da Amazô-
nia, como o garimpo ilegal, os pecuaris-
tas ilegais e outros, para decretar um ‘li-
berou geral’”, afirma o advogado Rafael
Lopes, da Associação Alternativa Terra-
zul, que atua como amicus curiae no jul-
gamento da ADPF 760 e foi um dos ora-
dores no plenário do STF antes do pedi-
do de vista de Mendonça. Com a decreta-
ção de uma moratória caso não cumpra
as metas do Plano de Combate ao Des-
matamento, avalia o advogado, o governo
será ainda mais pressionado pelo setor:
“Sem dúvida, ficará pior para eles que, em
tese, não poderão mais desmatar nem o
que antes a lei permitia”.
Segundo a ação, que teve o voto fa-
vorável da relatora, ministra Cármen
Lúcia, a moratória será aplicada caso o
governo não consiga reduzir os índices
de desmatamento em níveis suficientes
para viabilizar o cumprimento da meta
de 3.925 quilômetros quadrados de ta-
xa anual de desmatamento na Amazô-
nia Legal: “Isso corresponde à redução
de 80% dos índices anuais em relação à
média verificada entre os anos de 1996
e 2005, a qual já deveria ter sido cumpri-
da até 2020”, diz Lopes. Se aprovada no
Supremo, a ação terá o efeito prático de
não permitir a realização de quaisquer
supressões de vegetação, mesmo aquelas
em tese autorizadas por lei, até que Bolso-
naro retome as diretrizes do plano que foi
esvaziado logo no início do governo pelo
ministro boiadeiro Ricardo Salles, que
nunca escondeu sua proximidade com a
indústria madeireira e hoje é investigado
por envolvimento em um esquema de
exportação ilegal de madeira.
Caso o governo siga
omisso, seria proibido
até o “desmatamento
legal”, que ainda pode
abocanhar uma área
de floresta equivalente
a duas Alemanhas
A discussão não é simples. Dirigen-
te do Grupo de Trabalho Amazônico
(GTA), rede criada em 1992 que engloba
20 coletivos socioambientais da região,
Joci Aguiar alerta para uma faceta pou-
co discutida da moratória: “O problema
é que sempre quem paga pela moratória
são os pequenos produtores. Os grandes
proprietários sempre têm suas alternati-
vas. Precisamos de um plano que ajude os
pequenos a manterem sua produção para
sobrevivência”, diz. Ela acrescenta que,
mesmo concordando com a necessidade
de conter o desmatamento, há o aspecto
social que precisa ser observado: “Não se
pode perder de vista que na floresta tem
gente e que essa gente precisa e sobrevi-
ve da floresta. Se não tiverem o direito de
derrubar o necessário pelo menos para
sobreviver, como ficarão?”
Após solicitação formal de Cármen
Lúcia, relatora de seis das sete ações, a
votação da Pauta Verde foi marcada pe-
lo presidente do STF, Luiz Fux, para 30
de março, mas o pedido de vista feito por
Mendonça em 6 de abril acendeu o alerta
sobre uma possível demora em sua con-
clusão. A preocupação é que o mais no-
vo ministro do STF busque “empatar o
jogo”, como prega Bolsonaro, e evitar o
prosseguimento de ações que possam re-
dundar em sanções ao governo em ple-
no ano eleitoral. A expectativa é de que o
ministro Nunes Marques, outro nomea-
do ao STF pelo atual presidente, repita
Mendonça e também peça vista da ADPF
760. A demora combinada dos dois mi-
nistros poderá evitar que a votação seja
concluída antes das eleições: “Um pedi-
do de vista de Nunes Marques não é igual
a um pedido de vista de Mendonça. Em-
bora este último tenha tirado da cartola
duas ações para justificar seu pedido de
vista, todos no STF esperam que ele de-
volva o caso ao plenário em prazo razoá-
vel. A maior preocupação dos demais mi-
nistros é com Nunes Marques, pois este
pode deliberadamente embaralhar o jo-
go”, diz uma fonte próxima ao Supremo.
Herdeiro de duas relatorias sobre pro-
cessos que tratam do desrespeito à Cons-
tituição em ações na Amazônia e no Pan-
tanal e que estavam sob a análise de seu
antecessor, Marco Aurélio Mello, o mi-
nistro Mendonça alegou que precisa-
ria verificar os pontos de convergência
destas com a ADPF 760 antes de definir
seu voto. Mas deixou uma pista que pre-
ocupou os ambientalistas: “Precisamos
tratar essa questão também como res-
ponsabilidade dos estados”, disse. An-
tes, Cármen Lúcia declarou um voto
incisivo, no qual qualificou de “engodo
administrativo” os propalados esforços
de combate ao desmatamento por parte
do governo federal: “Estratégias mal ela-
boradas conduzem a maus resultados”.
Em um voto de 159 páginas, a minis-
tra afirmou que o Brasil vive um “esta-
do de coisas inconstitucional” no que diz
respeito à política ambiental. “Pela gravi-
dade do quadro de comprovada insufici-
ência estrutural das entidades públicas
competentes para combater o desmata-
mento na Amazônia Legal, que inviabi-
liza a efetividade da implementação do
Plano de Combate ao Desmatamento, a
União deverá, no prazo máximo de 60
dias, preparar e apresentar ao STF um
plano específico de fortalecimento ins-
titucional do Ibama, do ICMBio e da Fu-
nai, com cronograma contínuo e grada-
tivo, incluindo-se a garantia de dotação
orçamentária, de liberação dos valores
do Fundo Amazônia e de outros aportes
financeiros previstos.”
Ambientalistas temem
que Nunes Marques
e Mendonça impeçam
o julgamento da
ação até as eleições
Após a interrupção do julgamento da
ADPF 760, entrou em votação a ADPF
651, que busca reverter a exclusão de re-
presentantes da sociedade civil do con-
selho deliberativo do Fundo Nacional
de Meio Ambiente. Após o voto favorá-
vel da relatora, Mendonça acompanhou
em parte o voto, não admitindo um adi-
tamento feito pelo partido Rede que pe-
mos R$ 3,3 bilhões que estão parados no
Fundo Amazônia porque sua estrutura
de governança foi completamente des-
truída pelo governo. Não apenas o gover-
no arrumou confusão com os países que
financiavam o Fundo, como também pa-
ralisou seu funcionamento”, diz o advo-
gado Nauê Azevedo, do Observatório do
Clima, também amicus curiae nos pro-
cessos em análise pelo STF.
dia a extensão da participação social aos
outros conselhos. Alexandre de Moraes
e Ricardo Lewandowski anteciparam o
voto acompanhando a relatora e Nunes
Marques abriu a divergência, votando
pelo não provimento da ação.
O item seguinte da Pauta Verde será
a ADO 59, que pretende reverter o des-
monte promovido por Bolsonaro no Fun-
do Amazônia, criado por Lula em 2008 e
que tem como principais doadores os go-
vernos da Noruega e da Alemanha. “Te-
Com o abandono do Fundo Amazônia,
nenhum novo projeto foi analisado pelo
governo e os recursos que estavam sendo
utilizados para alimentar projetos apro-
vados em editais correm o risco de parali-
sação. Para Azevedo, o Fundo foi “delibe-
radamente implodido”, uma vez que sua
única contrapartida é que os recursos se-
jam encaminhados a projetos que defen-
dam a Amazônia do desmatamento ile-
gal: “Não há justificativa lógica para esse
esvaziamento, ainda mais em um contex-
to de contas públicas esgarçadas. Esta-
mos abrindo mão de recursos que pode-
riam ser utilizados em vários projetos ex-
tremamente eficientes. Uma parte des-
sa verba, por exemplo, era utilizada pa-
ra atividades de fiscalização realizadas
pelo Ibama. O governo, de forma delibe-
rada, abre mão da função fiscalizadora”.
É grande a expectativa do setor socio-
A dupla de ministros nomeada por Bolsonaro
tem demonstrado lealdade canina ao padrinho
ambiental quanto ao papel que pode de-
sempenhar o Supremo: “Esperamos que
o STF dê provimento a essas ações. Di-
reta ou indiretamente, o governo federal
abriu mão de cumprir o papel do Estado
na proteção do meio ambiente e está fa-
cilitando atividades que ensejam o des-
cumprimento da lei”, diz o advogado. Do
Acre, onde mora, Joci Aguiar resume a si-
tuação: “O STF hoje se tornou o poder que
nos socorre e que barra os desmandos do
Executivo. Se não fosse o STF, nem imagi-
no o que já poderia ter acontecido”. Ques-
tionada sobre os eventuais efeitos de uma
moratória do desmatamento legal para
o setor, a Abimci não respondeu à repor-
tagem até o fechamento desta edição. •
CAR TACAP I TAL —
No comments:
Post a Comment