Fred Coelho
 
Ainda bem 
jovem, formando as bases de leituras solitárias para além dos livros da 
escola ou do meu pai (que eram poucos, mas ótimos), os quadrinhos foram 
meus melhores companheiros. Lia de todos os tipos e gostos, mas 
principalmente os de heróis. Em meio a esse universo pré-adolescente, eu
 vejo na banca uma revista chamada “Chiclete com banana”. De forma 
talvez até precoce para o meu entendimento das coisas, mergulho em um 
mundo estranho e excitante. Os personagens de Angeli, seu criador, e as 
histórias de Laerte, um de seus parceiros, me deixavam sem rumo pela 
velocidade de referências, pelos comportamentos desregrados e, muitas 
vezes, pela estética que fazia pensar.
Desde 
então, Angeli e Laerte sempre foram vistos por mim como pensadores 
contemporâneos dos problemas brasileiros. Após suas revistas nos anos 
1980 — Laerte publicou treze exemplares da não menos sensacional 
“Piratas do Tietê” —, eles viveram décadas no cotidiano das tiras em 
quadrinhos em jornais. Em um microespaço, bem antes da exiguidade 
eloquente do Twitter, davam recados absurdamente complexos e certeiros. 
Sempre foram políticos, principalmente quando eram esteticamente 
independentes. Quanto mais ousados em seus desenhos, mais 
revolucionários em suas ideias. Tornaram-se, ao menos do meu ponto de 
vista, criadores diários, ofício dificílimo, cujo fato de ontem precisa 
ser metabolizado na imagem e texto de hoje. Se Angeli sempre foi mais 
ligado em personagens desviantes que muitas vezes sintetizavam 
comportamentos urbanos geracionais, Laerte criou histórias antológicas 
que vão desde questões identitárias, como no clássico “A insustentável 
leveza do ser”, até uma vasta galeria de tipos ordinários — e 
alucinadamente reais — sejam eles gatos, síndicos ou deuses. Em maio do 
ano passado, Angeli abriu mão das tiras diárias da “Folha de S.Paulo” e 
diminuiu seu ritmo por questões pessoais. Já Laerte, além de ativista 
incansável, permanece publicando diariamente no jornal. 
A
 dupla lançou recentemente uma publicação chamada “Baiacu”. Com 
acabamento gráfico excelente e um coletivo de artistas gráficos, poetas e
 prosadores, o volume se desdobra em diversas camadas de relação entre 
palavra e imagem. Do mais tradicional quadrinho de tirinha até o mais 
elaborado trabalho gráfico, atravessar suas mais de 300 páginas é, de 
alguma forma, mergulhar em uma tormenta de referências e imagens. A vida
 brasileira contemporânea, em suas múltiplas formas e frentes, está ali.
 Não na obviedade de pautas, mas na profundidade do seu impacto nas 
pessoas que aqui vivem — e criam. Textos como os de Anna Claudia 
Magalhães, Daniel Galera e André Sant’Anna são histórias que encapsulam 
os dias tensos de 2017, cada qual em estilo bem distinto na abordagem de
 seus temas. 
O projeto é fruto de uma residência
 com os artistas envolvidos. Dez pessoas reunidas durante duas semanas 
na Casa do Sol, moradia de Hilda Hilst e onde hoje em dia funciona o 
instituto com seu nome. Posteriormente, juntaram-se escritores e poetas.
 Com Angeli e Laerte como idealizadores da empreitada, e a parceria da 
editora Todavia, a publicação precisa ser louvada pela sua força 
coletiva. Seu formato nos remete a algumas publicações dos anos 1970, 
como “Pólen”, em que a autoria compartilhada flui sem hierarquias entre 
os seus participantes. Em tempos atuais, empreitadas coletivas funcionam
 como um mosaico salutar de ideias em tempos que diálogos entre 
diferenças se tornam cada vez mais problemáticos. 
A presença do espaço da casa de Hilda, ou a presença da própria, é 
espraiada nos trabalhos de diferentes formas, perspectivas e abordagens.
 Do humor ácido às inseguranças pessoais, do corte biográfico exacerbado
 ao esvaziamento radical de personas artísticas, da tragédia brasileira 
aos abismos mundiais, das imagens da cultura pop local e internacional 
aos traços do abstrato e do absurdo, “Baiacu” surge como uma usina de 
ideias e vazios. São textos e imagens que transformam o quadrinho no 
Brasil — já tão sofisticado em sua versão de novelas gráficas de alta 
qualidade — em uma ação decisiva no cruzamento de fronteiras entre 
palavra e imagem. Mesmo que os quadrinhos já sejam formas centenárias 
dessa operação, “Baiacu” a leva um pouco além porque acumula densidades e
 aponta caminhos em profusão. Ao vermos o volume cuja capa traz um homem
 de terno com o rosto completamente enfaixado, abrimos suas páginas, e a
 alternância entre desenhos e textos faz os olhos fluírem em um curso 
intercalado de dispersão e concentração. Se sorrimos em alguns momentos,
 calamos fundo em outros. 
Não é por causa da 
“Baiacu”, em 2017, que carreiras longevas e consagradas como as de 
Angeli e Laerte devem ser valorizadas. A publicação atual, porém, mostra
 algo raro: os mestres convocando diversas gerações, lado a lado, para 
criarem algo novo. Como diz Laerte no editorial, experimentar um ritual 
do fazer junto. Instalar um projeto coletivo no mundo e respirar mais um
 pouco. Juntos.
 
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