Luiz Antonio Simas
Meu avô era
um pernambucano sem papas na língua. O velho tinha uma tirada clássica
para responder aos que desciam o malho em um costume que a minha família
sempre cultivou; o de festejar qualquer coisa nas situações mais
complicadas. Bastava surgir alguém reclamando da irresponsabilidade de
se fazer a festa sem razão aparente e ele mandava na lata: “A gente aqui
não faz festa porque a vida é boa, mas porque tá tudo uma porcaria”.
Na
onda do meu velho, o sambista Laudemir Casemiro, mais conhecido nas
quebradas do Rato Molhado, da Vila Isabel e da Serrinha como Beto Sem
Braço, é autor de uma sentença definitiva; um aforismo cheio dos
borogodós e profundamente carioca sobre o mesmo tema: o que espanta a
miséria é festa. Matutando sobre as frases, concluo que a festa foi de
fato a maneira mais potente que a turma da banda de cá encontrou para
estar no mundo e driblar os perrengues cotidianos. Ritualizamos em
folguedos e festejos diversos, nascimentos, espantos da fé, amenidades
corriqueiras, carnavais, conquistas, desacertos, amores e perdas.
Não
custa recordar que, ao longo dos tempos, o poder instituído no Brasil
articulou ações em relação às ditas “classes perigosas” (expressão comum
em arquivos policiais da Primeira República) a partir de uma lógica de
controle social fundamentada em estratégias de disciplina dos corpos,
com inúmeras variantes: corpos amansados pela catequese, pelo trabalho
bruto, pela chibata, e pelo confinamento em espaços precários; entre
porões, senzalas, canaviais, linhas de montagem e cadeias.
O
fim da escravidão exigiu redefinições nas estratégias de controle dos
corpos e coincidiu com a montagem de projetos modernizadores que
buscaram estabelecer, a partir da segunda metade do século XIX, caminhos
de inserção do Brasil entre os povos ditos civilizados. Ao lado do
controle dos corpos, vigorou a desqualificação completa das camadas
subalternizadas como agentes incessantes de invenção de modos de vida. A
ordem no terreiro carioca era criminalizar os batuques, sambas,
macumbas, capoeiras, carnavais e demais elementos lúdicos do cotidiano
dos pretos e pobres (penso no jogo do bicho, reprimido por ser, no
início do século XX, uma loteria dos mais humildes). Tudo, enfim, que
resistisse ao confinamento dos corpos deveria se escafeder em nome da
nostalgia de uma Europa que nunca fomos.
A
prevenção contra os perigosos manifestou-se também no campo do discurso
em que atua a História como espaço de produção de conhecimento. Apenas
elementos externos aos subalternizados — a ciência, o cristianismo, o
consumo de bens, a escola ocidental etc. — poderiam inseri-los
precariamente, e ainda como subalternos, naquilo que imaginamos ser a
trajetória da Humanidade. As festas — penso especialmente nos furdunços
de rua — nadam contra esta corrente. Elas legitimam-se muitas vezes como
terreiros de produção de conhecimentos não normativos, viabilizando
modos de vida e estratégias de sobrevivência surpreendentes. Zabumbar no
fio da navalha, no meio da tempestade, foi a saída mais potente para se
driblar a tormenta da noite grande. A cultura do samba veio de um
aparente paradoxo: não se samba porque a vida é mole; mas porque é dura
pra dedéu.
Cada um que elabore os sentidos que
forem convenientes para as festas. A ideia de felicidade sempre me
pareceu conformista. Minha onda, por isso mesmo, é a de mandar a
felicidade para a casa do chapéu e desejar, dando nó no rabo da tirana,
que a cidade batuque cada vez mais alto, dispute cada vez mais as
esquinas, encante cada vez mais os espaços com os clarins da banda, o
bumbo do Zé Pereira, os fogos da alvorada de São Jorge, os doces de
Cosme e Damião, os cantos de torcida, as palmas do partido alto, as
rimas do rap, a flauta no choro, o chora cavaco e os saravás de Ogunhê. O
sarapatel carioca é feito de uma receita apimentada.
Nós
estamos em um momento especialmente propenso ao sucesso dos que
desqualificam e demonizam o hábito de festejar e praticar as ruas.
Artimanhas do demônio, coisa de gentinha, herança maldita ou sintoma de
alienação, a festa — e não o evento meramente mercantil — é vista como
acintosa em um contexto que parece mais propício às imolações raivosas
no chão especulado e esvaziado de sentido. A terra destroçada necessita
das giras de reencanto. A disputa está aberta e eu tenho lado: jogo no
time do Beto Sem Braço, do meu avô, dos caciques, bolas e bafos. É no
arrepiado das arrelias e na plenitude dos corpos em transe de liberdade
que o mais subversivo dos enigmas há de nos salvar de todas as misérias:
a capacidade criadora de alegria nos infernos.
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