December 20, 2017

BAIACU


Fred Coelho



Ainda bem jovem, formando as bases de leituras solitárias para além dos livros da escola ou do meu pai (que eram poucos, mas ótimos), os quadrinhos foram meus melhores companheiros. Lia de todos os tipos e gostos, mas principalmente os de heróis. Em meio a esse universo pré-adolescente, eu vejo na banca uma revista chamada “Chiclete com banana”. De forma talvez até precoce para o meu entendimento das coisas, mergulho em um mundo estranho e excitante. Os personagens de Angeli, seu criador, e as histórias de Laerte, um de seus parceiros, me deixavam sem rumo pela velocidade de referências, pelos comportamentos desregrados e, muitas vezes, pela estética que fazia pensar.

Desde então, Angeli e Laerte sempre foram vistos por mim como pensadores contemporâneos dos problemas brasileiros. Após suas revistas nos anos 1980 — Laerte publicou treze exemplares da não menos sensacional “Piratas do Tietê” —, eles viveram décadas no cotidiano das tiras em quadrinhos em jornais. Em um microespaço, bem antes da exiguidade eloquente do Twitter, davam recados absurdamente complexos e certeiros. Sempre foram políticos, principalmente quando eram esteticamente independentes. Quanto mais ousados em seus desenhos, mais revolucionários em suas ideias. Tornaram-se, ao menos do meu ponto de vista, criadores diários, ofício dificílimo, cujo fato de ontem precisa ser metabolizado na imagem e texto de hoje. Se Angeli sempre foi mais ligado em personagens desviantes que muitas vezes sintetizavam comportamentos urbanos geracionais, Laerte criou histórias antológicas que vão desde questões identitárias, como no clássico “A insustentável leveza do ser”, até uma vasta galeria de tipos ordinários — e alucinadamente reais — sejam eles gatos, síndicos ou deuses. Em maio do ano passado, Angeli abriu mão das tiras diárias da “Folha de S.Paulo” e diminuiu seu ritmo por questões pessoais. Já Laerte, além de ativista incansável, permanece publicando diariamente no jornal. 

A dupla lançou recentemente uma publicação chamada “Baiacu”. Com acabamento gráfico excelente e um coletivo de artistas gráficos, poetas e prosadores, o volume se desdobra em diversas camadas de relação entre palavra e imagem. Do mais tradicional quadrinho de tirinha até o mais elaborado trabalho gráfico, atravessar suas mais de 300 páginas é, de alguma forma, mergulhar em uma tormenta de referências e imagens. A vida brasileira contemporânea, em suas múltiplas formas e frentes, está ali. Não na obviedade de pautas, mas na profundidade do seu impacto nas pessoas que aqui vivem — e criam. Textos como os de Anna Claudia Magalhães, Daniel Galera e André Sant’Anna são histórias que encapsulam os dias tensos de 2017, cada qual em estilo bem distinto na abordagem de seus temas. 

O projeto é fruto de uma residência com os artistas envolvidos. Dez pessoas reunidas durante duas semanas na Casa do Sol, moradia de Hilda Hilst e onde hoje em dia funciona o instituto com seu nome. Posteriormente, juntaram-se escritores e poetas. Com Angeli e Laerte como idealizadores da empreitada, e a parceria da editora Todavia, a publicação precisa ser louvada pela sua força coletiva. Seu formato nos remete a algumas publicações dos anos 1970, como “Pólen”, em que a autoria compartilhada flui sem hierarquias entre os seus participantes. Em tempos atuais, empreitadas coletivas funcionam como um mosaico salutar de ideias em tempos que diálogos entre diferenças se tornam cada vez mais problemáticos. 

A presença do espaço da casa de Hilda, ou a presença da própria, é espraiada nos trabalhos de diferentes formas, perspectivas e abordagens. Do humor ácido às inseguranças pessoais, do corte biográfico exacerbado ao esvaziamento radical de personas artísticas, da tragédia brasileira aos abismos mundiais, das imagens da cultura pop local e internacional aos traços do abstrato e do absurdo, “Baiacu” surge como uma usina de ideias e vazios. São textos e imagens que transformam o quadrinho no Brasil — já tão sofisticado em sua versão de novelas gráficas de alta qualidade — em uma ação decisiva no cruzamento de fronteiras entre palavra e imagem. Mesmo que os quadrinhos já sejam formas centenárias dessa operação, “Baiacu” a leva um pouco além porque acumula densidades e aponta caminhos em profusão. Ao vermos o volume cuja capa traz um homem de terno com o rosto completamente enfaixado, abrimos suas páginas, e a alternância entre desenhos e textos faz os olhos fluírem em um curso intercalado de dispersão e concentração. Se sorrimos em alguns momentos, calamos fundo em outros. 

Não é por causa da “Baiacu”, em 2017, que carreiras longevas e consagradas como as de Angeli e Laerte devem ser valorizadas. A publicação atual, porém, mostra algo raro: os mestres convocando diversas gerações, lado a lado, para criarem algo novo. Como diz Laerte no editorial, experimentar um ritual do fazer junto. Instalar um projeto coletivo no mundo e respirar mais um pouco. Juntos.

O GLOBO, DEZEMBRO 2017


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