Presente de grego
Não são poucos os que relacionam o fechamento do BRT e o aumento das milícias das vans
A ameaça de 
fechamento do BRT no trecho Santa Cruz-Campo Grande pode colocar a Zona 
Oeste popular mais uma vez no vazio da presença das políticas de 
transportes. Durante a juventude, gastava quase três horas, de Santa 
Cruz ao Centro, para estudar na única escola de teatro pública da 
cidade. Diminuir a possibilidade de circulação é aumentar a falta de 
oportunidades em épocas de crise, é um presente de grego para o bairro 
que completa 450 anos em 2017.
Quando algum ato de
 vandalismo acontece em regiões mais nobres da cidade, imediatamente o 
poder público responde com mais guardas, campanhas educativas, 
iluminação etc; formadores de opinião reclamam, promovem abraços ao 
espaço, celebridades são engajadas e a cobertura dos meios de 
comunicação destrincha, de forma exemplar, os aspectos da questão. Por 
outro lado, quando o mesmo tipo de fenômeno acontece em regiões 
populares, a certeza da resposta não é tão imediata, e a reclamação da 
população local costuma ser tratada como parte de um problema que não 
tem solução, reiterando a visão, estigmatizadora, de que aquela região é
 marcada apenas por selvageria.
O argumento para o
 fechamento do trecho do BRT, por parte do consórcio operador, é o alto 
índice de calotes e de vandalismos nas estações da região. É cínico 
esconder que esse tipo de comportamento social possui relação intrínseca
 com a diminuição de políticas sociais na região. Se o trecho em questão
 sofre com esses atos, em parte, é porque o governo e as empresas não 
assumiram essa dimensão social desde cedo, deixando chegar num ponto 
irreversível. Por que não existiram ações de inibição — de fiscalização 
até campanhas de envolvimento — desde o início?
A 
ameaça de fechamento é uma chantagem para a atual queda de braço entre 
os entes que fazem parte deste processo. A guerra, que parece uma 
batalha ensaiada, entre o consórcio e a Prefeitura, sobre o valor da 
passagem e da liberação de vans na região, é pautada pela falta de 
transparência — o Instituto de Políticas de Transportes e 
Desenvolvimento (ITDP) aponta que, além do contrato do consórcio, os 
números de faturamento precisam estar abertos. Não é mais possível 
continuar com um modelo de gestão dos transportes que não seja marcado 
pela transparência total. Se o consórcio reclama de que está perdendo 
dinheiro neste momento, grande parte da falta de apoio ao sistema é pela
 sua falta de transparência. Transporte público precisa ter uma boa 
comunicação participativa com seus usuários e o compromisso com o 
desenvolvimento da cidade.
A chegada do BRT na 
Zona Oeste não resolveu todos os problemas históricos de mobilidade, mas
 criou um impacto na diminuição da duração da viagem. Menos tempo gasto 
no transporte cria condições para o investimento em projetos de vida e 
afetos. As estações impulsionaram pequenos negócios no entorno, 
aumentando renda. O BRT, com erros e acertos, é o primeiro modelo de 
organização do transporte público que chega na região, antes, 
inteiramente à mercê da lógica de rentabilidade das empresas, apenas. 
Quando uma região não está envolvida nas ações estratégicas de uma 
cidade, as chances do fosso da desigualdade aumentar e de domínio de 
poder paralelo se tornam maiores. Não são poucas as vozes que apontam a 
relação entre o fechamento do BRT e o aumento da presença de milícias no
 negócio das vans. Com a fiscalização frágil, o dinheiro arrecadado pode
 favorecer a influência delas nas eleições do ano que vem — os olhos de 
quem quer usar o poder para benefícios privados estão voltados para o 
parlamento.
A imprevisibilidade de não saber como 
será a vida no dia seguinte prejudica quem vive marcado pela 
desigualdade. Moradores da região de Santa Cruz já falam nas redes 
sociais que existe uma proposta de fechamento de outro trecho — o BRT 
Barra-Santa Cruz também estaria nos planos de desativação. Boato ou não,
 o fato é que o ano de 2017 vem sendo marcado por insegurança para quem 
vive ou trabalha na região. Como criar uma relação de pertencimento com o
 espaço público com tanta notícia ruim rondando o dia a dia?
Gastei
 muita sola de sapato nessa cidade pra romper catracas visíveis e 
invisíveis. Durante os três anos de formação na Escola de Teatro Martins
 Penna, do Cesarão, em Santa Cruz, onde tem início o trecho TransOeste 
em questão, dedicava mais tempo ao deslocamento do que ao curso. 
Experimentei diversas estratégias: trens, baldeações, trajetos 
diferentes etc. Imagina ter forças para isso diariamente e ainda lutar 
para ganhar a sobrevivência? Deslocar-se vira uma labuta, longe de ser 
um direito. A primeira coluna que fiz neste ano por aqui foi sobre os 
450 anos de Santa Cruz, do quanto essa região deu mais para a cidade do 
que recebeu dela. O presente de grego, aquele que se revela um falso 
presente, é a única forma de falar do que vem acontecendo. Ficar calado 
sobre o fechamento do trecho do BRT é colaborar com a desigualdade.
 
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