Em janeiro deste ano, causou alvoroço a noticia de que Milton Nascimento participaria de um show na casa de espetáculos Vivo Rio, no bairro do Flamengo. Como o artista está aposentado dos palcos desde 2022, quando fez 80 anos e encerrou uma turnê mundial, a apresentação seria uma raríssima oportunidade de vê-lo ao vivo. O show tinha um objetivo precioso para Milton: arrecadar fundos para a Portela, que decidira fazer do cantor o tema do seu desfile na madrugada de 5 de março no Sambódromo.
 
Poucos dias antes do espetáculo no Vivo Rio, Milton mandou dizer à direção da Portela que estava com vontade de ir à quadra da escola de samba para retribuir a homenagem que iriam lhe fazer e para cantar acompanhado da bateria. Era uma forma de agradecer aos músicos, costureiras, carpinteiros, pintores, ferreiros, escultores, aderecistas, passistas e todos aqueles que ajudariam a levar para a Marquês de Sapucaí o desfile ‘Cantar será buscar o caminho que vai dar no Sol - Uma homenagem a Milton Nascimento’.
 
Ficou combinado que a aparição na Portela seria em 12 de fevereiro, um dia antes do show no Vivo Rio. Às 19h30 daquela quarta-feira, o cantor de 82 anos deixou sua casa no bairro de Itanhangá, na Zona Oeste do Rio, e seguiu de van até a quadra da Portela, no bairro Oswaldo Cruz, na Zona Norte. Estava acompanhado de seu filho, Augusto Nascimento, e de alguns músicos que fizeram parte de sua última turnê mundial, como o guitarrista Wilson Lopes e o bandolinista Hamilton de Holanda. “Eu quero sentir a vibração de todos na Portela", me disse Milton na van.
 
O percurso durou pouco mais de uma hora. Ao longo do trajeto, foi o cantor que escolheu as canções a serem ouvidas no carro. "Tenho escutado muito Jackson 5, Angela Maria, Paul McCartney e minhas próprias músicas. Nunca escutei tanto as minhas músicas como agora", contou. Já quase no meio do caminho, Milton pediu para ouvir Vera Cruz, que lançou em 1968, em parceria com Márcio Borges, e que diz:
‘Hoje foi que a perdi,
mas onde já nem sei.
Me levo para o mar.
Em Vera me larguei
e deito nesta dor.
Meu corpo sem lugar.’
 
Desde 2022, quando recebeu o diagnóstico de Parkinson, Milton vive com limitações motoras: passos curtos, a boca enrijecida do lado esquerdo e os dedos trêmulos. Naquele percurso até a quadra da Portela, porém, seu cérebro seguia em forma. Ele parecia um homem com total consciência de que vivia um momento bastante feliz de sua vida. Seria o primeiro artista vivo a ser homenageado pela maior campeã do Carnaval carioca, a Portela tem 22 títulos) e se preparava para lançar, em março, o documentário ‘Milton Bituca Nascimento’, dirigido por Flávia Moraes. Além disso, estava de casa nova: seis meses atrás, ele havia se mudado de um imóvel de quatro andares para uma residência de apenas um piso térreo, com vista para a Pedra da Gávea. 
 
Por volta das 21 horas, a van do cantor se aproximou da escola de samba e foi logo rodeada por vários portelenses alvoroçados. Ajudado por seu filho, Milton subiu ao palco e sentou-se em uma poltrona azul, na qual recebeu os cumprimentos do mestre-sala Marlon Lamar e da porta-bandeira Squel Jorgea.
 
A quadra da Portela estava abarrotada. Ao beijar o manto azul e branco da escola, os olhos do cantor encheram-se de lágrimas. Um time de músicos e passistas no palco então puxou duas das canções mais populares do artista. Primeiro, ‘Nos bailes da vida’, de 1981, escrita por Milton e Fernando Brant, aquela que diz que o artista tem de ir aonde o povo está. Depois, ‘Maria Maria’, dos mesmos compositores, lançada em 1978. Foi uma catarse geral. As 2 mil pessoas que lotavam o barracão da escola cantaram junto com Milton como se estivessem em um karaokê coletivo.
 
Na volta para casa, dentro da van, Milton descreveu assim o que sentiu no palco da escola: "Eu acho que a Portela quer me matar do coração." E deu uma risada. No dia seguinte, preferiu almoçar com amigos e músicos em sua casa. Comeu arroz com feijão e bife, ao lado do cantor Criolo, do compositor e cantor Flávio Venturini e do baterista Lincoln Cheib. Saíram todos juntos para a apresentação no Vivo Rio.
 
Depois do desfile da Portela, quando Milton atravessou a Sapucaí no último carro alegórico, e do lançamento do documentário, Augusto Nascimento começou a achar seu pai um tanto esquecido, com pouco apetite e o olhar muitas vezes fixo em um único ponto, como contou à ‘piauí’. O cantor também estava repetitivo, indo e voltando nas mesmas histórias em questão de minutos, o que era ainda mais estranho, porque Milton costumava passar horas contando passagens diferentes de sua vida. Ele tinha perdido algo da vivacidade que aparentava em fevereiro, quando conversamos sobre assuntos variados, desde sua vida em Belo Horizonte até o gosto de ver novelas à noite.
 
Augusto achou melhor chamar o clínico geral Weverton Siqueira, que acompanha Milton há dez anos. Em abril, começaram a ser realizados testes clínicos no cantor, com perguntas para averiguar diferentes domínios cognitivos, como atenção, capacidade de cálculo, orientação de espaço e linguagem. O médico disse a Augusto que, pela primeira vez em uma década, tinha se assustado com o declínio cognitivo de Milton. Em razão disso, pediu mais uma bateria de exames. "Quando vi que o meu pai apresentava uma piora brusca no quadro cognitivo, perguntei ao médico se seria uma loucura fazer uma viagem de motorhome com ele pelos Estados Unidos", contou Augusto. "O médico me respondeu que, se a ideia era cair de fato na estrada, a hora seria agora." O filho resolveu comprar as passagens.
 
Em 7 de maio, Milton e Augusto embarcaram para Dallas, no Texas. No dia seguinte, foram a um show de Paul Simon, que ficou feliz de saber da presença ilustre e pediu ao iluminador para mostrar Milton Nascimento na plateia. Depois do show, os dois músicos se encontraram. Em 9 de maio, pai e filho seguiram para Phoenix, capital do Arizona, onde alugaram um motorhome confortável, com cozinha, banheiro e duas camas. Mas o veículo só servia de casa durante o dia. À noite, os dois dormiam em residências alugadas por meio do Airbnb.
 
Com Augusto na direção, a dupla percorreu 4 mil km durante dezesseis dias, atravessando os estados de Arizona, Utah, Idaho, Wyoming e Montana. “Meu pai sempre viajou do meu lado, como copiloto." Às vezes, o cantor não queria fazer determinados passeios, mas, depois de ser convencido de que valia a pena, acabava se divertindo. “Fiquei feliz de caminhar pelos parques empurrando meu pai na cadeira de rodas", diz o filho, que visitou com ele o Grand Canyon e o Parque Nacional de Yellowstone.
 
Durante a viagem, Augusto notou algumas alterações cognitivas em Milton, que não identificava o que era ironia ou brincadeira. “Mas ele estava totalmente presente, ainda que com as limitações de um homem de 82 anos com questões de saúde." Milton se lembrava bem das casas em que tinha se hospedado com o filho durante a viagem e descrevia com clareza os lugares de que mais gostara. Também escolhia as músicas a serem tocadas no percurso, e foram os Beatles que embalaram grande parte da viagem, com os álbuns ‘Abbey Road’, ‘Yellow Submarine’ e ‘Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band’, um dos favoritos do cantor.
 
Na volta ao Rio, Milton falou muito da viagem. “Meu pai contava para todo mundo como se tivesse sido a melhor coisa da vida dele", recorda Augusto. O filho achou que tinha valido a pena aquela aventura. Um dos que ouviram as histórias foi o médico Weverton Siqueira, que se encontrou com o cantor logo depois da chegada. "Estive com o Bituca [o apelido de Milton] na semana em que ele voltou dos Estados Unidos. Ele me descreveu os passeios em detalhes, mas logo depois houve uma aceleração do quadro de forma muito rápida", diz o médico.
 
Mineiro de Belo Horizonte e professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Siqueira conheceu Milton em 2015. À época, o quadro de depressão do artista se agravara e ele não queria sair da cama nem receber amigos. Indicado por um antigo professor em quem o cantor tinha grande confiança, Siqueira viajou de Belo Horizonte ao Rio para examinar o paciente. "Foi uma consulta seca, com respostas monossilábicas. Eu me vi diante de um homem cansado e desesperançado", conta o médico.
 
Quando ele perguntou a Milton se estava com algum problema digestivo, o cantor respondeu: "Não." Quando indagou se o coração estava funcionando bem, a resposta foi: "Tá bem." Siqueira, então, decidiu recorrer a um método heterodoxo. "Fiz uma pergunta que me fez ganhá-lo: E como está o seu outro coração?", me referindo à situação emocional dele.” Milton fez um breve silêncio e disse: "Nunca nenhum médico me perguntou isso." A partir de então, estabeleceu-se entre os dois uma relação de empatia e confiança. O músico tímido destrambelhou a falar. Contou sobre sua vida, dizia se sentir rodeado por muita gente e, ao mesmo tempo, solitário.
 
Um dos problemas relacionados à sua saúde era não ter um médico que centralizasse os cuidados. O cardiologista receitava um remédio, depois o neurologista indicava outro, e assim por diante. Milton tinha uma polifarmácia em casa, tomava altas doses de medicamentos, um interferindo no resultado do outro, e não havia ninguém para olhar com lupa o conjunto de seus sintomas. "Ele tinha muitos médicos soltos, que não comunicavam entre si e um excesso de remédios que causavam efeitos colaterais. Ao tomar as rédeas dessa questão, ele ressuscitou", descreve Siqueira.
 
A ressurreição ocorreu em um momento particularmente feliz: coincidiu com o florescimento da relação de Milton com seu filho.
 
Augusto Nascimento nasceu em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, filho de um engenheiro e de uma administradora de empresas. Quando tinha 2 anos, sua família se mudou para Juiz de Fora, em Minas Gerais. Antes que ele chegasse à adolescência, seu pai biológico, com quem tinha uma relação conturbada, se afastou da família. O encontro com Milton aconteceu em 2007, quando Augusto estava com 13 anos, na casa de amigos cujos pais eram próximos do cantor. Quando o jovem fez 15 anos, sua mãe decidiu voltar para o Centro-Oeste e ele ficou sozinho em Juiz de Fora. Milton, que sempre teve o desejo de ser pai, gostava de ir à cidade entre um show e outro, e passou a se encontrar com Augusto com frequência. O passatempo predileto dos dois era ver filmes.
 
O cantor vivia nessa época um processo acentuado de depressão, entrando e saindo de clínicas, sem que a imprensa soubesse. Diabético, ele esquecia de tomar insulina e se alimentava de forma desregrada. Chegou a ter que desmarcar shows em cima da hora para fazer exames ou ser internado, como ocorreu em 2013, depois de uma crise familiar que agravou o seu estado de saúde. A melhor amiga do cantor, Sue Saphira, que cuidava de suas contas pessoais, lhe disse que ele precisava parar de emprestar dinheiro a parentes e amigos, que nunca lhe pagavam. Do contrário ficaria sem um tostão.
 
O cantor nunca se preocupou muito com a saúde. Durante algum tempo se escorou na bebida, sobretudo em Campari. Nos anos 1990, durante uma viagem ao Japão com a amiga e então empresária Marilene Gondim, estava no hotel quando ocorreu um forte terremoto. "Tudo tremia, as coisas caíam. Eu fiquei com medo de morrer”, me contou ele, em fevereiro passado. Naquele momento, no Japão, fez uma promessa - sobre a qual manteve segredo.
 
Ao voltar da viagem, foi visitar sua mãe em Três Pontas, em Minas Gerais. Quando entrou na casa, Lília Campos pegou na mão do filho e o levou até o pomar. Em silêncio, ela apontou para uma laranjeira, plantada por Milton e que nunca tinha dado nenhum fruto. A árvore agora estava cheia de folhas e laranjas. "A minha mãe apenas me disse: 'Eu sei que você parou de beber"", ele recordou. A partir de então, Milton nunca mais ingeriu bebida alcoólica. Promessa cumprida.
 
Mas o estrago já era grande. Em 1996, ele perdeu muito peso por causa da vida desregrada: alimentava-se mal, dormia de forma desordenada, queixava-se de indisposição constante. Um dia, em Nova York, onde fora gravar o álbum ‘Nascimento’, acordou com a boca muito inchada. Gondim, que viajara com ele, pensou que era um problema dentário, mas achou melhor passar em um médico. Feito o exame de sangue, descobriu-se que Milton tinha diabetes e estava naquele momento com um quadro de hiperglicemia.
 
De volta ao Brasil, bastante magro, Milton gravou uma participação no programa de humor ‘Sai de baixo’, da Rede Globo. "O Bituca ama novela e amava esse programa, gravou feliz da vida", lembra Gondim, a única ex-empresária com quem o músico e seu filho mantêm boa relação. A participação desencadeou uma rede de mentiras. Em dezembro de 1996, a Folha de S. Paulo disse na matéria ‘Milton grava Sai de Baixo mais magro’ que havia gente falando que o cantor estava com Aids. Gondim fez um
comunicado à imprensa, anexando o diagnóstico assinado pelo médico americano Steven Lamm, da Universidade de Nova York, segundo o qual Milton sofria de um quadro grave de diabetes tipo 2 e não tinha qualquer doença infectocontagiosa. Não adiantou muita coisa. O boato custou a arrefecer.
 
As coisas não melhoraram nos anos seguintes. No início da década de 2010, Milton só era chamado para se apresentar em casas de shows modestas e em cidades pequenas, muitas vezes com estrutura pouco condizente com a sua estatura artística. Como ocorreu em janeiro de 2015, em Pedralva, município do Sul de Minas com cerca de 10 mil habitantes. "Esse show, que já tinha sido adiado, não deveria ter acontecido", diz o guitarrista Wilson Lopes, amigo e integrante da banda de Nascimento desde 1993. "Bituca estava abatido, eu questionei para que o show não acontecesse."
 
Aos 72 anos, Milton subiu ao palco apoiado em um homem. Sentou-se em uma cadeira e não conseguiu cantar uma música sequer. "Não cantou nada, não tinha a menor condição", recorda Lopes. "O que salvou foi a plateia: logo na primeira música, todos começaram a cantar. Daí entendi que aquele show seria aquilo. Eu até me emocionei, Bituca transcende. A plateia entendeu tudo e sequer pediu bis." O médico e compositor Luiz Paulo Goulart, amigo de Milton, definiu assim o episódio em Pedralva: "Um encontro histórico entre a fragilidade humana e a força da música que une as pessoas." Semanas depois da apresentação, Lopes foi à casa de Milton no Rio. Encontrou o amigo apático e sem forças.
 
Depois desse show fatídico, Milton mergulhou fundo na depressão e suas internações se tornaram mais frequentes. No hospital, invariavelmente ficava sozinho, sem companhia. Hoje, Augusto avalia que muitos que rodeavam Milton assistiram ao declínio do cantor sem fazer nada. "Para tirarem o restinho de ouro que tinha na mina, ele vivia dopado, aéreo, alheio a tudo, mas cumpria uma agenda de shows", diz. "Ele vivia rodeado de gente, mas era solitário. Ninguém se importava com ele, na verdade." Era uma espécie de Britney Spears, que foi obrigada a fazer shows para enriquecer o pai abusador e controlador.
 
À época, Augusto tinha 21 anos e já estava estudando direito em Juiz de Fora. Milton começou a ir com frequência à cidade mineira. Como não aguentava mais ficar sozinho, se hospedava durante dias no apartamento de quarto e sala alugado pelo estudante.
 
Foram meses de idas e vindas entre o Rio e Juiz de Fora, até que, no começo de 2016, a casa do músico no Rio precisou ser reformada porque o telhado estava infestado de cupim. Milton decidiu se mudar para Juiz de Fora. Alugou uma casa, e Augusto foi morar com ele. Naquele momento, a apatia do cantor era tamanha que ele nem escutava música nem tocava qualquer instrumento. Passava o dia diante da tevê, com um balde do lado, por causa de violentas crises de vômito. Augusto aprendeu a ministrar insulina, a medir pressão, e os dois começaram a ter a vida familiar que nunca haviam tido. Pouco a pouco, Milton apresentou sinais de melhora, incrementada com a prática de exercícios físicos e as consultas com psiquiatra.
 
Foi Milton Nascimento quem perguntou a Augusto: "Você quer ser meu filho?" Assim como o cantor buscava um filho, o jovem buscava um pai. "A nossa relação só se consagrou e se consolidou porque eu tinha a mesma lacuna de vida", diz Augusto. "Eu não tinha um pai, ele não tinha um filho. Além disso, eu também era sozinho, minha mãe tinha se mudado para Cuiabá. Havia espaço para ele na minha vida, e na vida dele para mim."
 
A adoção é uma experiência da qual Milton pode falar com propriedade. Sua mãe, Maria do Carmo Nascimento, era de Juiz de Fora e deixou a cidade ainda jovem para tentar a vida no Rio de Janeiro. Foi trabalhar como empregada doméstica em uma casa na Tijuca e, depois de um romance com um motorneiro chamado João, deu à luz Milton. Quando a criança tinha 2 anos, Maria do Carmo morreu de tuberculose. Uma das filhas dos patrões, Lília, havia se apegado fortemente ao menino, mas Milton foi enviado para a avó materna, em Juiz de Fora.
 
Ele passava o dia sentado na calçada em frente à casa da avó, em completo desalento. Até que um dia, viu se aproximar um carro, com Lília, e o marido dela, Josino Campos. Os dois tinham ido buscar o menino para viver com eles em Três Pontas. "Existia esse amor louco entre nossa mãe e aquela criança", conta Jaceline Silva Campos Basílio, de 61 anos. "Ela não aguentou ficar muito tempo sem ele." Milton só foi oficializado como filho do casal aos 45 anos de idade, quando a adoção foi adotar uma criança muitas vezes e não registrada em cartório.
 
Em Três Pontas, Milton era o filho negro de um casal de brancos. Mas não era o único filho adotivo de Lília e Josino Campos. O casal adotou também Fernando e Elisabeth, duas crianças brancas, e só teve uma filha biológica. "Eu sou a única filha legítima", diz Jaceline, que nasceu quando o cantor, o mais velho dos irmãos, já tinha 21 anos e vivia fora de Três Pontas. O irmão Fernando faleceu por complicações da diabetes. A irmã Elisabeth, de 66 anos, vive em Três Pontas. Milton ainda tem contato com Jaceline.
 
Embora não fossem ricos, Lília e Josino Campos participavam da vida social de Três Pontas. Ela trabalhava como professora de música e cantava em um coral, aproveitando as lições que tivera com Heitor Villa-Lobos na adolescência, no Rio de Janeiro. Josino era técnico em eletrônica e radialista. Nada disso impediu a criança de ser vítima de racismo. Milton foi proibido de entrar no Clube Literário Recreativo Trespontano e não pôde ir ao seu próprio baile de formatura, entre outras atrocidades. "Era o contexto de décadas atrás. Isso não quer dizer que a cidade era racista", justifica Jaceline, que também vive em Três Pontas. Apesar disso, o amor de Milton pela cidade nunca arrefeceu e ele fez ali alguns shows gratuitos, às vezes com amigos, como Chico Buarque, Fafá de Belém e Gonzaguinha. "Teve uma vez que faltou água e comida na cidade porque todo mundo daqui e dos arredores veio ver o show", recorda Jaceline.
 
A amiga Sue Saphira conta que Milton sempre sonhou ser pai. "Ele quis, deu certo. Quando resolveu adotar o Augustinho, eu estava tão ressabiada por ver meu amigo sofrer por tentar e não conseguir que passei uns dois anos chamando o Augustinho de Augusto", diz Saphira, que conheceu Milton em 1966, em um festival de música em Salvador. "Mas Bituca tem o tempo dele, existe um tempo 'bituquês', que é sem pressa. Ele sabia, no fundo, que no tempo dele tudo daria certo."
 
Milton teve três relacionamentos longos com mulheres, o segundo deles com uma comerciante paulista. "Nos anos 1960, era uma dádiva. Dormíamos com quem queríamos sem sentimento de culpa. Depois veio o black is beautiful, e branco e preto transavam sem racismo. Talvez por eu ser paulista e loira, nós tivemos um caso de amor", disse ela à ‘Folha de S.Paulo’, que identificou a comerciante apenas como Káritas. A reportagem saiu em agosto de 1997, por ocasião de um show de Milton Nascimento.
 
Em 1972, Káritas deu à luz a Pablo Ferreira, fruto de outro relacionamento, e Milton ficou entusiasmado com a ideia de estabelecer uma relação paternal com o menino, para quem compôs uma canção, chamada Pablo. Em maio de 1974, quando iria se apresentar na Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo (USP), o cantor pensou em levar Pablo ao palco. Káritas não concordou. Como o álbum ‘Milagre dos Peixes’ (1973) tivera várias canções censuradas pela ditadura, ela temia que o show fosse alvo de alguma violência política. Mas nada ocorreu. No momento que Milton cantou ‘Pablo’, diversos pais levantaram os seus filhos para o alto.
 
Na época, o então secretário de Segurança Pública de São Paulo, coronel Erasmo Dias, havia dito que não queria a presença de Milton nos palcos da capital, como relata a jornalista mineira Maria Dolores no livro ‘Travessia: a vida de Milton Nascimento’. (Erasmo Dias gostava de perseguir alunos: em uma invasão à PUC-SP em 1977, prendeu 854 pessoas. Em 2023, governador Tarcísio de Freitas homenageou o coronel, batizando com o nome dele um entroncamento de rodovias em Paraguaçu Paulista, cidade natal de Dias.)
 
Algum tempo depois do show na USP, Milton recebeu uma ligação em que a pessoa do outro lado da linha, depois de citar o nome e o endereço de Káritas e Pablo, falou que, se o cantor continuasse se apresentando em universidades paulistas, o pior poderia acontecer. Assustado, Milton retornou ao Rio e se afastou da namorada e da criança. Pablo não tinha completado 3 anos. “O Bituca sofreu intimidações e resolveu sair para preservar o Pablo e a mãe dele. O meu amigo se afastou, não falou nada para ninguém por cuidado com as pessoas", diz Saphira. "Não à toa, tempos depois escreveu uma música chamada ‘Sofro calado’."
 
Milton Nascimento quis entrar com um processo de adoção, por se incomodar com o fato de o filho não ter o seu sobrenome no documento de identidade. Os dois contrataram uma advogada de Juiz de Fora. Augusto conta que, de início, sua mãe, Sandra Kesrouani, achou estranho o pedido de adoção, mas acabou apoiando. Ele segue sem ter contato com seu pai biológico, a quem se refere como "genitor". 
 
O processo de adoção durou pouco mais de um ano. Ao final de 2017, veio a sentença final. Quando souberam do veredicto, Milton e Augusto estavam no Aeroporto da Zona da Mata, em Juiz de Fora. O cantor deu um grito e abraçou o filho. As pessoas em volta olharam, surpresas. Depois da sentença, Augusto se recorda de apenas um gesto de delicadeza da parte dos amigos: "A Sue foi a única pessoa que, quando soube da adoção, me mandou flores." 
 
Em um primeiro momento, o mundo da música foi tomado por uma série de intrigas pesadíssimas. Alguns chegaram a dizer que Augusto não passava de um interesseiro. "Eu nunca liguei para isso, sabia que o tempo seria o senhor da razão", diz ele. "Muitos que me atacaram deixaram o meu pai agonizar, pensando apenas em sugar algum lucro. Eu tinha o objetivo de colocar esse ídolo da música em seu espaço devido, fazer shows em lugares à altura, pensar em documentário, organizar a casa e melhorar o quadro de saúde."
 
Milton não sabia quanto gastava por mês nem o tamanho do seu patrimônio. Certa vez, só quando recebeu uma cobrança do imposto municipal de um terreno em Alfenas, no interior de Minas, Augusto tomou conhecimento dessa propriedade de doze hectares do cantor. "Para você ter uma ideia, o meu pai era padrinho de batismo de 180 pessoas, que sempre pediam ajuda para festas, casamentos etc." Adotado oficialmente como filho, Augusto se tornou o único herdeiro de Milton.
 
No começo de 2017, com o quadro de depressão controlado, o cantor disse ao filho que estava com vontade de voltar a fazer shows. Sentia saudades da rotina de ensaios, do palco, de pegar a estrada. O primeiro aconteceu no dia 25 de março de 2017, no Palácio das Artes, em Belo Horizonte. "Quando saiu do palco, ele me abraçou e disse no meu ouvido que era para eu marcar mais." Augusto enviou uma notificação aos antigos empresários, com os quais o artista não tinha um contrato formal assinado, informando que ele próprio passaria a empresariar o seu pai.
 
Milton venceu a depressão para viver, na última década, alguns dos momentos mais especiais de sua vida. Sua última turnê pelo país lotou estádios em várias capitais, apesar de ele, naturalmente, já não ter o vigor de alguns anos atrás. Fez shows na Dinamarca, Noruega, Itália, Alemanha e França, entre outros países. Lançou um novo álbum, ‘Milton + Esperanza’, ao lado da cantora americana Esperanza Spalding, em 2024. Passou as festas de fim de ano com a família materna de Augusto, e ficou amigo íntimo de Said Kesrouani, o avô de seu filho, com quem começou a trocar ligações telefônicas. "A minha família também adotou o meu pai", diz Augusto.
 
Em fevereiro deste ano, antes do show no Vivo Rio e do desfile da Portela, Milton viajou a Los Angeles para a entrega do Grammy Awards. O disco ‘Milton + Esperanza’ estava concorrendo na categoria Melhor Álbum de Jazz Vocal (mas não foi o vencedor). Na noite da entrega dos troféus, já vestido de smoking e pronto para o evento, ele soube que não teria espaço à mesa dos artistas especiais. O seu lugar seria uma acomodação na arquibancada. Em protesto, ele não compareceu à cerimônia. Esperanza postou nas redes a sua revolta com a situação. "Esta lenda vida deveria estar sentada aqui", escreveu ela em um cartaz com a imagem de Milton, que fotografou e postou no Instagram.
 
No mês passado, o Grammy Latino (premiação diferente do Grammy Awards) anunciou a indicação de Milton Nascimento em três categorias: Melhor Canção em Língua Portuguesa - por ‘Um vento passou’ (para Paul Simon), Melhor Interpretação Urbana em Língua Portuguesa - por ‘Demoro a dormir’, ao lado de Djonga, e Melhor Vídeo Musical Versão Longa, pelo documentário ‘Milton Bituca Nascimento’. A premiação será no próximo dia 13 de novembro.
 
Poucas semanas após o retorno da viagem de motorhome pelos Estados Unidos, Milton Nascimento recebeu um novo diagnóstico médico. Augusto contou à piauí que ele está sofrendo de demência por corpos de Lewy (DCL). É o terceiro tipo mais comum de demência, resultado da degeneração e morte de células nervosas no cérebro, que se deterioram quando apresentam depósitos anormais de proteína alfa-sinucleína, chamados "corpos de Lewy". A DCL tem sintomas parecidos com os do mal de Alzheimer e, no que diz respeito às questões motoras, ao Parkinson - por isso, o diagnóstico anterior de Milton era de Parkinson. “O andar arrastado, a boca enrijecida e os dedos fazendo repetições como se estivessem dedilhando são características dessas doenças", explica Siqueira, o médico do cantor.
 
Na DCL, no entanto, de forma mais específica, os pacientes manifestam alucinações visuais e auditivas, perdem a noção de profundidade e apresentam sinais de irritabilidade. "As demências nem sempre têm progressão gradativa e contínua. Pode ocorrer uma queda brusca e forte de cognição, o que é chamado de efeito escada", diz Siqueira. É o caso de Milton.
 
O cantor tem sido atendido por clínico geral, neurologista e nutricionista. Também dispõe da ajuda de enfermeiros durante 24 horas por dia. Toda essa estrutura pode ajudar a retardar o aparecimento de certos sintomas, mas o quadro é irreversível e progressivo. Uma das maiores dificuldades atuais é alimentá-lo.
 
No dia 21 de junho passado, quando estava em Teresina a trabalho, Augusto recebeu uma ligação de sua casa no Rio. Milton não conseguia se levantar da cama nem comer. O filho ligou para amigos, que levaram o cantor ao hospital e embarcou às pressas para o Rio. Milton estava com um quadro de desidratação, bastante comum nesse tipo de demência, e teve alta depois de tomar soro.
 
Nas últimas semanas, o cantor tem recebido poucas visitas. Amigos deixaram de procurá-lo ou ligar para ele, porque, além das limitações para interagir, agora não é conveniente fazer uma foto para postar nas redes sociais. Márcio Borges, seu parceiro de vida e de Clube da Esquina, é uma exceção: esteve com Milton na primeira semana de setembro. Mas o cantor não estabelece diálogos e está alheio a tudo. Uma de suas raras reações é chamar o filho para se sentar ao seu lado no sofá da antessala do seu quarto, onde há duas almofadas estampadas com as capas dos álbuns ‘Yellow Submarine’ e ‘Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band’.
 
O quarto de Milton é decorado com uma foto enorme em que ele aparece abraçado à amiga Elis Regina, um boneco com a figura de Paul McCartney e um capacete assinado por Ayrton Senna. Há inúmeros prêmios em exibição, com destaque para os cinco gramofones – os troféus do Grammy-, dispostos em cima do piano, na antessala. No mesmo local, está o seu primeiro troféu: o de melhor intérprete, por ‘Travessia’, na segunda edição do Festival Internacional da Canção, em 1967. Na mesinha ao lado de sua cama, fica o objeto mais valioso. É uma cópia da nova certidão de nascimento de Augusto, em que consta, ao lado do nome da mãe, Sandra Kesrouani, o nome do pai: Milton Nascimento.