March 16, 2024

Dallagnol, o Messianico

 

  O messiânico

 

As motivações e táticas de Deltan Dallagnol em 950 mil mensagens do Telegram

João Batista Jr., Allan de Abreu, Felippe Aníbal, Lígia Mesquita, Luiz Fernando Toledo e Matheus Pichonelli 

 "Li na diagonal a denúncia. Ainda tenho de lê-la melhor. Está muito boa, porém faço algumas críticas construtivas”, escreveu o procurador Orlando Martello Júnior, do Ministério Público Federal no Paraná. A mensagem foi enviada pelo Telegram, no grupo batizado como “Filhos do Januário 1”, que reunia os procuradores da força-tarefa da Operação Lava Jato. Era 9 de setembro de 2016 e a Lava Ja­to estava no auge. Em cinco dias, o país seria apresentado à primeira grande denúncia contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na forma do famoso PowerPoint, que mostrava catorze balões, cada um com conteúdo diferente, dos quais saíam setas apontando para o balão central, onde estava escrito LULA.

A despeito do breve elogio de Martello Júnior, a denúncia ainda era um rascunho e pontos importantes não estavam parando de pé, na visão dos próprios procuradores, a começar pelo pilar central da acusação: a de que Lula ganhara um apartamento tríplex no Guarujá, no litoral de São Paulo, como recompensa por favorecer a empreiteira OAS em contratos com a Petrobras. Mesmo faltando tão pouco tempo para a divulgação da denúncia, havia incertezas abundantes sobre fatos, sobre dados e sobre pessoas.

Martello Júnior começou então a
enumerar suas “críticas construtivas”.
A primeira dizia respeito à forma: o tex-
to da denúncia estava longo demais.
“Reduziria à metade. O que não foi
contado em trinta folhas (ou no máxi-
mo em cinquenta), não merece ser con-
tado”, escreveu, mas foi ignorado: a
peça final saiu com 149 páginas. Em
seguida, apontou que a expressão “pro-
jeto de poder” aparecia pelo menos dez
vezes, coisa que julgava “desnecessária
e política” – e, desta vez, foi ouvido:
na versão final, caiu para cinco vezes.

 
O procurador Deltan Dallagnol, chefe
da força-tarefa e principal autor da de-
núncia, propôs trocar “projeto de po-
der” por “projeto de financiamento
partidário ilícito”. O procurador Paulo
Galvão, de Brasília, considerou que a
expressão podia aludir ao uso de caixa
dois e sugeriu “projeto de financiamen-
to partidário por meio de corrupção”.

 
Dallagnol tentou outras duas opções:
“projeto de governabilidade mediante
corrupção” e “projeto de enriquecimen-
to ilícito mediante corrupção”. O procu-
rador Antônio Carlos Welter, do Rio
Grande do Sul, achou a solução: “Tal-
vez se possa usar mais de uma expres-
são, não precisa ser sempre a mesma:
projeto de poder mediante captação ilí-
cita de apoio, corrupção de agentes po-
líticos para obter apoio político, e aí vai.”

 
Por fim, Martello Junior reclamou
do trecho em que dizia que a acusação
se baseava em “indícios suficientes de
autoria”. Sugeriu que os redatores se
limitassem a dizer “autoria”. Explicou:
“Dificilmente teremos mais prova do que
isso. Logo, para não dizer depois que só
tínhamos ‘indícios de autoria’, e com isso
condenamos, é bom deixar ‘autoria’.”
Enquanto o grupo debatia, Martello
Júnior chamou Dallagnol à parte, em
uma mensagem reservada, para falar sobre

bre a acuidade das informações. Um
trecho da denúncia, por exemplo, era
baseado em excertos de jornais. “Nas
frases seguintes”, escreveu Martello Jú-
nior, “há cinco ou seis afirmações que
não sei se são verdadeiras. O que sai na
imprensa nem sempre é verdadeiro; logo,
me dá medo de eles contestarem isso de
modo cabal. Tentar desqualificar a de-
núncia dizendo que é baseada em recor-
tes de jornal que só falam bobagem!”

 
A constatação era delicada para uma
denúncia tão grave e às vésperas de vir
a público. Martello Júnior se referia a
uma passagem em que a denúncia con-
tabilizava os deputados e senadores – da
situação e da oposição – que foram ade-
rindo ao governo Lula quando a propi-
na começou a ser distribuída. Era tudo
baseado em matérias de jornal. Uma
hora depois, Dallagnol lamentou a falta
de solidez – “caramba, mas isso é um
contexto bem relevante...” –, mas tudo
o que lhe ocorreu foi ampliar a pesquisa
sobre reportagens: “E se checar em ou-
tras matérias? Tiver mais fontes?”

 
Em paralelo, em outro grupo de
procuradores no Telegram, chamado
“Incendiários roj”, sigla que a piauí não
identificou, Dallagnol compartilhou
algumas alterações no texto e pediu
para dois colegas que avaliassem um
acréscimo que ele fizera, mas sobre o
qual não estava “muito seguro”. O aden-
do dizia: “A partir da erupção do escân-
dalo do mensalão em 2005, aliás, lula
teve contato com evidências que vie-
ram a público mostrando a toda a so-
ciedade que o ‘caixa dois’ era fruto de
corrupção e, nesse caso, sua omissão
em reconhecer, apurar e estancar o es-
quema fala por si.”

 
O procurador Roberson Pozzobon
observou: “Acho perigoso, Delta. Dá a
entender, a contrario sensu, que antes
ele [Lula] não sabia. Quando na verda-
de falamos que ele foi o maestro.”

 
Dallagnol respondeu que removeria o
trecho – o que de fato aconteceu. Horas
depois, pediu ao procurador Júlio No-
ronha que resumisse os fatos apresenta-
dos na denúncia, tendo em mente os
problemas que Martello Júnior aponta-
ra mais cedo. Queria que a denúncia
fosse recebida sem que se percebessem
suas fragilidades. Dallagnol escreveu:
“Falarão que estamos acusando com
base em notícia de jornal e indícios frá-
geis... Então, é um item que é bom que
esteja bem amarrado. Fora esse item,
até agora tenho receio da ligação entre
a Petrobras e o enriquecimento, e, de-
pois que me falaram, tô com receio da
história do apartamento... São pontos
em que temos que ter as respostas ajus-
tadas e na ponta da língua.”

 
Pozzobon reclamou da falta de um
“documento matador”. Em resposta a
Dallagnol, que queria uma providência
saneadora até quarta-feira, ele escreveu:
“Temos provas para essa denúncia, mas
não é tão simples, Delta. Ela envolve
offshore e operações de compra e venda
sucessivas. Acho que vale fazer [...], mas
acho que não dá tempo até quarta.” Em
seguida, detalhou: “Não temos ainda
um documento matador para fechar
alguma das hipóteses possíveis: a) Que
eles queriam ficar com as duas unida-
des; b) Que a oas não quis mexer no
antigo apartamento do presidente (dei-
xou de canto); c) Que o [apartamento de
número] 131 só foi vendido depois de a
cobertura [ser] entregue.”

Depois de ajustes aqui e ali, Dalla-
gnol pareceu convencer-se de que esta-
va tudo certo. No grupo “Incendiários
roj”, escreveu: “Caros, vocês não têm
mais a mesma preocupação que tinham
quanto ao imóvel, certo? Pergunto por-
que estou achando top e não estou com
aquela preocupação.” E logo recomen-
dou: “Acho que o slide do apartamento
tem que ser didático também.” Mais
adiante, acrescentou, fazendo referên-
cia à parte do PowerPoint que trataria
do tríplex do Guarujá: “Imagino o mes-
mo do Lula: balões ao redor do balão
central, ou seja, evidências ao redor da
hipótese de que ele era o dono.”

 
Naquela época, a Lava Jato já tinha
seus opositores, mas Dallagnol festeja-
va o apoio maciço que a operação rece-
bia. No “Incendiários roj”, comentou
que viajara com a família de avião no
fim de semana e só se falava disso. “Todo
mundo que me reconhece me pergun-
ta quando vem a acusação do Lula ou
quando vai ser preso rs.” Mas, mesmo
na última hora, a peça acusatória tinha
inconsistências importantes. Em outro
grupo, Dallagnol apontou o problema
do dolo da construtora oas: “Não vi
nada falando de dolo deles na denún-
cia no tocante ao conhecimento da
origem criminosa dos valores. Talvez
seja o caso de retirá-los. Alguém mais
pensou nisso?” Ele prosseguiu: “Se o
dolo é direto, devemos ter alguma pro-
va que embase nossa acusação de que
eles tinham ciência de que o dinheiro
que estava sendo incorporado no imó-
vel e no patrimônio do casal presiden-
cial vinha de crimes.”

 
Era um nó e tanto, mas havia outros.
Como fundamentar a tese da “espécie de
conta-corrente” da propina? Era a expres-
são que os procuradores usavam para
designar um suposto fluxo de dinheiro,
no qual parte dos lucros que a oas obti-
nha com contratos públicos era enca-
minhada como propina para os imóveis
de Lula. Dallagnol, num momento de
discussão sobre o assunto, comentou:
“O problema é que não estamos provan-
do os crimes antecedentes diversos. Acho
capenga.” O procurador Carlos Fernan-
do dos Santos Lima, outro integrante do
“Filhos de Januário 1”, grupo cujo nome
fazia referência a um procurador da
força-tarefa, Januário Paludo, também
já tinha observado outra inconsistência:
“O que me incomodou mais foi a ausên-
cia de explicação clara, na parte da cor-
rupção, do sistema de conta-corrente
que as propinas geravam. Isso é claro na
lavagem, mas na corrupção não.”

 
Na madrugada do dia 13 de setembro,
na véspera da apresentação da denúncia,
Dallagnol falou um pouco mais sobre os
slides. Dirigindo-se ao procurador Noro-
nha, contou que havia reunido catorze
expressões-chave que apontavam para
Lula. Era o infográfico do PowerPoint
tomando forma. “O que está em negrito
e sublinhado é o que [...] vai para cada
balão ao redor do nome do lula no sli-
de.” Na tarde daquele dia, em diálogo
com um assistente, Dallagnol contou
que a ideia inicial era usar uma foto do
petista no PowerPoint, mas decidiram-se
apenas pelo nome.

 
À noite, Dallagnol pediu que os co-
legas começassem a escrever o texto de
divulgação da denúncia, a ser distribuí-
do aos jornalistas. Estava empolgado:
“Será um poderoso instrumento nosso”,
escreveu. “Ele vai definir as primeiras
manchetes e o que vai sair primeiro.
É ele que dará o tom e pautará a im-
prensa de cara.” Empenhado em am-
pliar o impacto da denúncia, Dallagnol
havia criado dois grupos do Telegram
com o nome “Coletiva”.

 
Um deles reunia procuradores, mem-
bros da Polícia Federal e da Receita
Federal. Dallagnol mandou mensagem
dizendo que a presença deles no evento
de divulgação seria “uma honra”. Para
o outro grupo, com dois assessores de
imprensa do Ministério Público Fede-
ral do Paraná, pediu: “Precisa avisar à
GloboNews. Gostaria que fosse trans-
mitido tudo ao vivo.” Recomendou que
houvesse um cadastramento para o
acesso à sala do hotel onde o evento
aconteceria para “não aparecer um ma-
luco lá, ‘Fora Temer’ rs”. Como Dilma
Rousseff fora afastada da Presidência no
mês anterior, as manifestações contra o
então presidente Michel Temer eram
recorrentes no país.

 
Havia uma corrida contra o tempo.
A peça seria apresentada naquele mes-
mo dia, mas ainda não estava finaliza-
da. No grupo “Filhos do Januário 1”, os
procuradores brincavam com a situa-
ção. A procuradora Laura Tessler, tam-
bém baseada em Curitiba, escreveu:
– Parabéns pela denúncia, galera!!!
– Aquela que não está pronta, lau-
ra? – provocou a colega Jerusa Viecili.
– Isso mesmo!!!!

 
As mensagens dos grupos de Tele-
gram descritas acima integram o
acervo da Operação Spoofing, de-
flagrada pela Polícia Federal em julho
de 2019. O objetivo era investigar o va-
zamento de contas de Telegram manti-
das por participantes da Lava Jato, um
escândalo que ficou conhecido como
Vaza Jato. Divulgados em primeira mão
pelo site Intercept Brasil, os lotes de
mensagens vazadas por um hacker reve-
laram que os procuradores da Lava Jato
– com Deltan Dallagnol à frente – fa-
ziam combinações com o então juiz
Sergio Moro. No escurinho do Tele-
gram, trocavam informações e acerta-
vam planos de ação.

 
Agora, a piauí teve acesso ao conteúdo
integral das mensagens de Deltan Dallag-
nol apreendidas pela Spoofing. É um
volume enorme, em grande parte inédi-
to, que totaliza 952 754 mensagens, rece-
bidas ou enviadas pelo procurador entre
maio de 2014 e abril de 2019, perfazen-
do quase cinco anos. Todas foram lidas
pela equipe de repórteres da revista ao
longo de cinco meses. As mensagens
– aqui reproduzidas com correções de
digitação, ortografia e abreviações para
melhor compreensão e fluidez da leitu-
ra – compõem um retrato didático so-
bre a conduta de Dallagnol, para quem
a Lava Jato era um chamado de Deus.
Por vezes, o procurador parece uma
voz de equilíbrio e ponderação. Outras
vezes, está abrasado por um espírito à Sa-
vonarola, próprio do moralista furioso da
Florença renascentista. Na sua missão
lavajatista, à exceção de sua fé religiosa
que se manteve constante, Dallagnol co-
meçou de um jeito e acabou de outro.
De início, era um pregador da anticor-
rupção, apenas. Aos poucos, sem aban-
donar seu papel de evangelizador da
moralidade pública, rendeu-se aos en-
cantos da popularidade e entregou-se às
seduções do mundo que combatia – o
jogo do poder, a política partidária, as
palestras remuneradas.

 
No curso dessa trajetória singular,
Dallagnol, segundo mostram as cente-
nas de milhares de mensagens no Tele-
gram, aparelhou o Ministério Público
Federal no Paraná para os interesses
que julgava mais convenientes, divul-
gou informações imprecisas, expandiu
seus poderes para além de sua alçada e,
uma vez convertido em estrela nacional
do combate à corrupção, aproveitou sua
fama para obter vantagens pessoais. E, em
2022, num desfecho melancólico, foi
condenado a indenizar Lula em 75 mil
reais pelos ataques à honra do atual pre-
sidente na coletiva do PowerPoint.

 
Naquela madrugada de 14 de setem-
bro de 2016, no entanto, Dallagnol nem
sonhava que acabaria condenado a in-
denizar Lula. Varou a noite acionando
os colegas e discutindo as palavras que
usaria na apresentação da denúncia. Es-
creveu: “Caros, ia chamar na coletiva o
esquema maior, que abrange vários ór-
gãos, de propinópolis, para mostrar que
é um Estado da Propina, algo maior do
que o petrolão. Contudo, falando com
Paulo [refere-se ao procurador Paulo Gal-
vão], ele teve uma ideia genial, de chamar
de propinocracia, um governo da propi-
na, o que se encaixa em tudo”. O grupo
vibrou. Noronha respondeu “excelente
ideia!”. Pozzobon mandou um “top”.
Quando consultou sobre a forma final
do PowerPoint, Dallagnol só colheu elo-
gios. “Muito top”, respondeu Pozzobon.
“A ideia das bolas, indo e voltando, fica-
rá massa”, disse Noronha. “Obra-pri-
ma”, disse outro.

 
Já era manhã do dia 14 e o docu-
mento continuava sob discussão. “Del-
ta, bom dia!”, escreveu Noronha. “Uma
coisa que senti falta na sua apresenta-
ção [...] foi mostrar a corrupção denun-
ciada mais concretamente (contratos
específicos, valores, envolvimento da
oas, etc.).” Carlos Fernando dos Santos
Lima, hoje aposentado, fez um resumo
da denúncia que poderia ser enviado à
imprensa, que encerrava assim: “Por
fim, Luiz Inácio Lula da Silva e sua
esposa Marisa Letícia também são
acusados de receber de maneira dissi-
mulada valores ilícitos para o seu en

quecimento pessoal, aproveitando- se
de fraude imobiliária cometida pelo
sindicato dos bancários de São Paulo
(Bancoop) em detrimento de centenas
de mutuários.”

 
O colega Antônio Welter corrigiu de
imediato: “Carlos, na última parte o
recebimento não decorre da fraude da
Bancoop. Melhor tirar essa referência.
Ele foi beneficiado pela oas mediante
um apartamento cuja construção foi
assumida por ela.” Mas Santos Lima
não estava em busca de precisão, e sim
de uma forma mais eficaz para minar
a imagem de Lula, e então respondeu:
“Gostaria de manter de alguma forma
a referência ao escândalo Bancoop
para colocá-lo mal frente aos trabalha-
dores.” O erro foi retirado do texto fi-
nal de divulgação.

 
O procurador Andrey Borges de
Mendonça, de São Paulo, membro do
“Filhos do Januário 1”, se ofereceu en-
tão para ler e revisar a peça de acusa-
ção, já que não tinha participado da
redação. E apontou algumas passagens
dúbias, além de erros factuais: “Sou
ruim de matemática, mas só para ver se
eu que estou fazendo confusão. No
item dois da denúncia, fala em 2,4 mi-
lhões de lavagem de dinheiro. Depois
no item três, 1,3 milhão. Depois no
item doze, 3,1 milhões. Não sei se os
valores estão batendo...” Não estavam.
A correção foi feita.

 
Depois disso, o procurador tentou
antecipar algumas perguntas que os jor-
nalistas poderiam vir a fazer. “Pode ser
da minha cabeça, mas talvez levantem
a questão: se mensalão e Lava Jato são a
mesma face do esquema, por que o Moro
[o então juiz Sergio Moro] é competen-
te, se o mensalão, em primeira instân-
cia, foi pra outro juízo? Só para pensar
caso levantem [o tema]”, diz. (Ninguém
levantou o assunto, mas a questão da
competência de Moro acabou sendo
um dos motivos centrais, quase cinco
anos depois, para a anulação da conde-
nação de Lula.)

 
A poucas horas da coletiva, Dalla-
gnol ponderava sobre como deveria se
referir ao então ex-presidente: Lula? Se-
nhor Lula? Senhor Luiz Inácio? Optou
por “Lula”. E fez um gracejo sobre as
setas que vinham de todos os lados em
direção ao balão central com o nome
de Lula: “Estou me segurando para não
usar a expressão ‘tentáculos’ rs”. Em se-
guida, no grupo do Telegram que man-
tinha com os assessores de imprensa
deu uma orientação: o púlpito não po-
dia ficar na frente da projeção dos sli-
des. E, já quase na hora, momentos
antes de ganhar as câmeras, Dallagnol
escreveu em latim.
– Alea jacta est.

 
Em português: a sorte está lançada.
Como se sabe, o “poderoso instru-
mento” definiu as manchetes – e foi um
desastre. “Acho que hoje o próprio Del-
tan reconhece que errou naquele ben-
dito PowerPoint... maldito PowerPoint”,
disse à piauí o procurador José Roba-

inho Cavalcanti, lotado em Brasília.


“Porque apontava o presidente Lula
como chefe da organização criminosa.
Independentemente dessa discussão, se
era ou não era, isso nunca foi atribuição
de Curitiba.” O procurador Wellington
Saraiva, também de Brasília, é outro
que lamenta. “Aquele famoso Power-
Point foi um equívoco evidente. Não
deveria ter sido feito”, disse. “Teve efei-
tos muito negativos para o investigado e
acabou tendo efeito negativo para o pró-
prio Ministério Público Federal.”

 
No seu último dia de estudos na
Universidade Harvard, em 2013,
Deltan Dallagnol ouviu uma
profecia feita por um pastor da igreja
que frequentava, a Foursquare Church.
O pastor disse que Dallagnol voltaria ao
Brasil com a missão de lutar contra os
maiores corruptos da história. Um ano
depois disso, em março de 2014, come-
çou a Operação Lava Jato. E, em março
do ano seguinte, quando a Lava Jato
completou um ano, Dallagnol já estava
se convencendo de que suas ações eram
movidas pela mão divina.

 
“Eu acho que Deus está conduzin-
do todo esse processo. Está fazendo
chover”, escreveu ele, no primeiro ani-
versário da Lava Jato. “Vejo Deus agir
neste caso desde o começo. Há uma
série infindável de ‘coincidências’ e

 condições necessárias sem as quais
não teríamos esse caso.” Uma coinci-
dência resultava do seu networking re-
ligioso. Priscila Francielle Ferreira,
mulher do seu pastor, era assessora da
procuradora Letícia Pohl Martello, coor-
denadora da área criminal do Ministé-
rio Público, em Curitiba. Casada com
Martello Júnior, foi ela quem convidou
Dallagnol para comandar uma opera-
ção que acabara de ser aberta – chama-
va-se Lava Jato.

 
As conversas pelo Telegram mostram
que, pouco depois do início da Lava
Jato, Dallagnol se envolveu num projeto
que ajudaria a minar sua conduta: as
chamadas 10 Medidas contra a Corrup-
ção. Era uma proposta institucional
que, em breve, Dallagnol transformaria
numa cruzada pessoal. Ele discutiu a
ideia longamente com seu pastor Mar-
cos Paulo Ferreira, da Igreja Batista de
Bacacheri, que criou o Instituto Mude
para divulgar o projeto. Numa reunião
em Curitiba, o pastor sugeriu que o pro-
curador rodasse o Brasil colhendo assi-
naturas de apoio. Dallagnol seguiu o
conselho à risca, viajando o país como
se fosse o pai da proposta – o que o tor-
nou nacionalmente conhecido.

 
“Precisamos transformar essas medi-
das em um projeto de lei de iniciativa
popular”, escreveu Dallagnol em uma
mensagem, relembrando as palavras de
seu mentor cristão. Entre outros pontos,
o projeto previa transformar os casos de
corrupção envolvendo mais de cem sa-
lários mínimos em crime hediondo e,
também, tipificar o enriquecimento
ilícito de agentes públicos como crime,
pois até então era classificado apenas
como improbidade administrativa.

 
Sentindo-se embalado por uma mis-
são divina, Dallagnol escreveu para Poz-
zobon: “Eu creio que Deus quer que a
igreja alavanque essa mudança. Não
quero espiritualizar tudo, mas estou
mantendo essa hipótese bem pertinho
do coração.” Apesar do alerta para si
mesmo, a espiritualização era frequen-
te. Suas mensagens aos procuradores
trazem frases como: “Eu creio que Deus
está atuando e usando vasos de barro,
como eu, para abrir uma oportunidade
preciosa de mudanças”; “Que Deus nos
use, apesar do que somos”; “Eu creio
que Deus fará muitas coisas boas e nos
usará, como tem usado, nesse processo”;
“Creio realmente que Deus nos abre
uma grande oportunidade, e formare-
mos todos uma grande engrenagem
para mudanças”; “Deus está no controle
de todas as coisas. Tenho visto Ele agir
nesse caso e creio que essa decisão, de
algum modo, gerará bons frutos, embo-
ra eu não saiba como”; “Creio que Deus
está abrindo portas no Brasil e usando
líderes para que entremos por elas em
diferentes frentes”.

 
Dallagnol dedicou-se tanto na busca
de aliados para espalhar a palavra das
10 Medidas, que, no meio da campanha,
começou a se deslumbrar com a adesão
de famosos e o crescimento de sua po-
pularidade. Contabilizava os apoios,
comemorava cada um. Cassio Scapin,
que interpretou o personagem Nino no
Castelo Rá-Tim-Bum, foi um dos pri-
meiros a aderir. A atriz Maria Fernanda
Cândido também. O ator Reynaldo
Gianecchini. O ator Márcio Garcia.
A cantora gospel Fernanda Brum. A bai-
larina Ana Botafogo. A atriz Gabriela
Duarte. Dallagnol adorou quando o
ator Rodrigo Lombardi falou do projeto
no Domingão do Faustão, da tv Globo.
A procuradora Mônica Campos de
Ré, da força-tarefa da Lava Jato no Rio
de Janeiro, avisou quando o senador e
ex-jogador Romário assinou o docu-
mento em um restaurante. “Agora no
Balada Mix com o mascote da campa-
nha no Rio!”, festejou. Ré ampliou a
lista de subscreventes com os atores
Nelson Freitas, Luana Piovani, o casal
Thiago Lacerda e Vanessa Lóes, a atle-
ta Maurren Maggi, o roqueiro Andreas
Kisser, o lutador Rodrigo Minotauro.
Em 8 de agosto de 2016, vários artistas
visitaram o Ministério Público, entre
eles o cantor Fagner e os atores Victor
Fasano, Susana Vieira e Lucinha Lins.
“Preparem os celulares para a selfie”,
disse Dallagnol. Numa mensagem, ele
perguntou se “esse Gregorio Duvivier”
poderia ser um aliado. E se Serginho
Groisman iria topar. (Nenhum dos
dois aderiu à causa.)

 
Em mensagem particular, Dallagnol
pediu à assessora do Ministério Público
que agradecesse a apresentadora Ana
Maria Braga, da Globo, por “tomar po-
sição em prol das mudanças apartidá-
rias que o Brasil precisa para curar o
câncer da corrupção e da impunidade”.
Depois, se corrigiu: “Opa, melhor não
falar em câncer porque ela teve, né?”

 
A assessora riu. O procurador celebrou   

quando o apresentador Faustão, na épo-
ca ainda na Globo, mandou um recado
aos procuradores por meio de Sergio
Moro. Dallagnol correu para o grupo
da força-tarefa, batizado de “ft mpf
Curitiba 3”, e escreveu, sem mencionar
a intermediação de Moro: “Caros, Faus-
to Silva (Faustão) fez chegar a nós um
recado: temos que usar linguagem mais
simples em entrevistas e coletivas. Foi
um conselho de quem está [há 32 anos]
na tevê.” E então orientou a assessoria
do Ministério Público a “profissionali-
zar as coletivas”.

 
Enquanto a Lava Jato corria, Dalla-
gnol rodava o país a bordo do prestígio
da operação e do projeto anticorrupção.
Começou a selecionar as plateias. En-
tendeu que falar para líderes religiosos
era mais estratégico do que para univer-
sitários. Depois de um evento com reli-
giosos, explicou no Telegram: “Não
eram ouvintes finais, mas líderes de
igrejas (não necessariamente pastores).
A diferença de falar para alunos de uni-
versidades ou para líderes é que 100 alu-
nos são 100 pessoas, enquanto 100 líderes
significa alcançar mais de 1 000 pessoas,
de modo geral. Daí nosso incentivo em
buscar líderes.”

 
O pastor Ed René Kivitz, um evangé-
lico progressista de grande alcance na
internet e nos cultos, já desconfiava dos
propósitos da Lava Jato, mas dizia estar
em oração pelo amigo, a quem oferecia
um apoio crítico: “Caro Deltan, você é
a única razão pela qual ainda nutro al-
guma simpatia pela Lava Jato. Não con-
sigo me livrar da profunda impressão de
que essa operação é mais um dos braços
instrumentalizados por quem de fato
ocupa o poder em nosso país.”

 
O prestígio pessoal e a popularidade
pareciam começar a exercer um certo
fascínio no procurador. Ele recorreu a
uma jornalista que já tinha assessorado
o Ministério Público. Convidou-a para
gerenciar suas redes sociais e detalhou
as funções: responder mensagens inbox,
destacar mensagens positivas, propor
posts básicos, curtir e responder usuá-
rios e elaborar relatórios quinzenais
com “evolução e perspectivas”. Tempos
depois, numa conversa sobre rede so-
cial, comparou sua presença digital
com o alcance do jornal Folha de S.
Paulo: “fsp atinge 300k pessoas por dia.
Estou com 400k de seguidores.”

 
Quando foi convidado a participar
do Programa do Jô, também da Globo,
recebeu orientações detalhadas da as-
sessoria do Ministério Público. Se Jô
Soares fizesse uma pergunta mais en-
graçadinha, deveria entrar no clima e
responder coisas como: “Ainda não en-
contramos nenhuma evidência contra
você. Tem alguma coisa que queira nos
contar?” Outra assessora sugeriu que, se
cruzasse as pernas – “acho que é a posi-
ção mais indicada” – deveria cuidar
para que a perna cruzada não apontas-
se para “a direção oposta do Jô” porque
“isso não é nada bom, parece que o en-
trevistado quer se afastar/proteger do
Jô”. Dallagnol cruzou as pernas do
modo indicado.

 
Na medida em que avançava, a campa-
nha e a própria Lava Jato ganhavam con-
tornos ideológicos mais nítidos. Dallagnol
ficou empolgado quando o presidente da
Riachuelo, Flávio Rocha, que mais tarde
sairia do armário como bolsonarista roxo,
prometeu se empenhar na coleta de assi-
natura entre seus 40 mil empregados.

 
Certo dia, depois de sair de um evento,
o procurador comemorou: “Tinha mais
gente na minha palestra do que no ani-
versário do pt kkkk [...] O 9 está cada
vez mais fragilizado.” (“Nove” é referên-
cia a Lula, que perdeu o dedo mínimo da
mão esquerda.)

 
Quando Sergio Moro divulgou a con-
versa telefônica em que a presidente Dilma
discutia com Lula sua eventual nomeação
a ministro – uma gravação ilegal, que
ocorrera fora do período da autorização
judicial –, os procuradores se alvoroça-
ram. “Ótimo dia rs”, começou Dallagnol.

 
A procuradora Lívia Tinôco, da Bahia,
torceu para que a prisão de Lula fosse de-
cretada, o que mereceu reprimenda de
uma colega: “Isso não é correto. Não é
assim que se tira alguém”, disse Monique
Checker, do Rio de Janeiro. Outra, a pro-
curadora Anamara Osório Silva, de São
Paulo, especulou mais tarde: “Se esse go-
verno seguir, o que será de nós?”

 
Numa ocasião, os procuradores dis-
cutiram se seria conveniente para a
força-tarefa da Lava Jato receber a visita
de Marina Silva, da Rede. A maioria
foi contra. (Em conversas posteriores,
Dallagnol declarou que votaria em Ma-
rina no primeiro turno da eleição presi-
dencial de 2018. “Se não fosse Marina,
seria Amoêdo”, disse, referindo-se a João
Amôedo, então no Novo.) Michel Te-
mer, que já estava ocupando a cadeira de
Dilma como interino, sondou Dallagnol
sobre um possível encontro. O procura-
dor contou que não aceitou, pois “não
seria saudável”. Disse, porém, que passa-
ra um recado: “Ressaltamos que qual-
quer mudança na pf do superintendente
para baixo seria comprar briga. Garanti-
ram manutenção.” Dallagnol estava sa-
tisfeito com Temer e, dois dias depois,
brincou: “Melhor ‘Temer’ o futuro e
enterrar o passado ‘Dilma’ vez!”

 
A essa altura, Dallagnol já ditava os
rumos da comunicação do Ministério
Público, que não estava subordinada a
ele. Há mensagens em que dava bronca
na assessoria. “Hoje foi o segundo dia,
em menos de uma semana, em que vo-
cês nos ignoram na comunicação.” Ou-
tras vezes ele mesmo cancelava uma
coletiva. “Todos os jornalistas estão de-
sesperados por furos e podem colocar os
pés pelas mãos.” Entrava em contato
direto com repórteres para corrigir o
que julgasse errado e até editava os tex-
tos que a assessoria de comunicação
distribuiria à imprensa. Num caso, de-
volveu uma nota, com a seguinte obser-
vação: “Tentei dar um toque emocional.”
A jornalista Liliana Frazão Pereira,
da comunicação do mpf, era uma inter-

ocutora frequente. Dallagnol lhe pedia
para avaliar seu desempenho em pales-
tras e entrevistas. Quando o procurador
planejou entregar o abaixo-assinado em fa-
vor das 10 Medidas no mesmo dia em que
Moro participaria de um simpósio sobre
a Lava Jato, a assessora comentou: “Tudo
bem orquestrado, hein, dr. Deltan?” A jor-
nalista se ocupava em distribuir alertas.
“Tudo na Lava Jato interessa à impren-
sa”, escreveu. “Principalmente se envol-
ve o ex-presidente...”

 
Os vazamentos à imprensa eram bem
planejados. Em conversa com o procura-
dor Eduardo Pelella e uma assessora
de comunicação, Dallagnol calculou
que os termos do acordo da Odebre-
cht, a empreiteira mais enroscada na
Lava Jato, deveriam vir a público de
forma gradual. “Esse acordo atrairá
muitos inimigos”, previu, sugerindo
que as informações saíssem em vaza-
mentos homeopáticos. “Primeiro, as
comprovadas e mais fortes, com pro-
vas. Para ganhar legitimidade e força,
e não tudo junto. É um caso muito
sensível.” Em outra mensagem, falou
dos seus propósitos: “Meus vazamen-
tos objetivam sempre com que pensem
que as investigações são inevitáveis e
incentivar a colaboração.”
A estrutura do Ministério Público
acabou cada vez mais envolvida na di-

vulgação do projeto das 10 Medidas.


Em um grupo de Telegram, Dallagnol
conta que o vídeo de divulgação do
projeto custaria 38 mil reais. “Estamos
vendo como levantar esse valor”, escre-
veu. Sugeriu usar “valores da Vara, da-
queles mais antigos, se estiverem
disponíveis”. (Em nota à piauí, Dalla-
gnol diz que nunca usou “valores da
Vara” e, se o conteúdo da mensagem do
Telegram for efetivamente verdadeiro,
a ideia nunca passou de uma especula-
ção.) Os funcionários do mpf também
foram mobilizados. Em uma mensa-
gem, Dallagnol disse que conseguira
autorização para que cada servidor
usasse trinta minutos de seu dia de tra-
balho para ajudar na campanha.

 
Quando foi entregue no Congresso
Nacional, em março de 2016, o projeto
10 Medidas já havia recolhido 2 mi-
lhões de assinaturas. Fora um sucesso
de público. E Dallagnol, agora, era o
homem que pretendia lancetar a cor-
rupção no Brasil, era o chefe da Lava
Jato que, num desdobramento raro, já
havia então prendido políticos e em-
preiteiros. Em novembro de 2016,
quando foi finalmente votado, o projeto
era apenas uma sombra da proposta ori-
ginal. A corrupção como crime hedion-
do subiu de 100 para 10 mil salários
mínimos. O enriquecimento ilícito de

gentes públicos continuou sendo ape-
nas uma improbidade administrativa.

 
Menos de um mês depois, por decisão
do ministro Luiz Fux, do stf, o projeto
voltou a tramitar no Congresso. Em
2017, chegou ao Senado. Em 2019, o
Senado aprovou. No mesmo ano, vol-
tou para a Câmara, onde está parado
até hoje. (Em nota à piauí, Dallagnol
lamentou o destino do projeto: “Infeliz-
mente, terminou com o enterro das me-
didas na calada da madrugada pela
Câmara dos Deputados, em flagrante
desrespeito à sociedade.”)

 
Entre as milhares de mensagens
pelo Telegram trocadas entre
2014 e 2019, a primeira conversa
entre Deltan Dallagnol e o então juiz
Sergio Moro aconteceu na noite do dia
9 de julho de 2015. Moro queria saber
se o doleiro Alberto Youssef tinha in-
formações sobre o então governador
do Paraná, Beto Richa, como havia
sido divulgado pela imprensa. “Preza-
do. Procede esta notícia [...]?” Dalla-
gnol respondeu que não, mas Moro
insistiu: “Será que ele não falou so-
mente aos promotores de Justiça?”
Dallagnol então se ofereceu para che-
car a informação e despediu-se, não
sem antes fazer uma saudação: “Bem-
vindo ao Telegram!

As comunicações se estreitaram ao
longo do tempo e sugerem que Dalla-
gnol comportava-se como uma espécie
de auxiliar do então juiz. Transmitia
pedidos de entrevista, dava recados, su-
geria palestras, fazia alertas. Depois de
um evento em Brasília, repassou o con-
vite para um jantar na casa do ministro
Luís Roberto Barroso, do stf. No ani-
versário de Moro, em agosto, transmitiu
os parabéns enviados pela atriz Susana
Vieira e prontificou-se para entregar
algum recado à artista. Moro agradeceu
“pela paciência em receber esses reca-
dos”. O procurador devolveu: “Imagina,
você é um símbolo de uma causa. É um
prazer participar disso.”

 
Dallagnol também não economizava
elogios ao juiz. Quando o impeachment
de Dilma se aproximava e as cidades
estavam cobertas por cartazes em fa-
vor de Moro, o procurador fez coro:
“Parabéns pelo imenso apoio público
hoje. Você hoje não é mais apenas um
juiz, mas um grande líder brasileiro
(ainda que isso não tenha sido busca-
do). Seus sinais conduzirão multidões,
inclusive para reformas de que o Brasil
precisa, nos sistemas político e de jus-
tiça criminal.” Moro respondeu: “Para-
béns para todos nós.”

 
A leitura das mensagens parece indi-
car que a relação entre procurador e jui

uja revelação pública começou a des-
truir as bases da Lava Jato, acabou esti-
mulando Dallagnol a expandir seus
poderes. Num caso, ao ser questionado
sobre a origem de uma informação
numa investigação, o procurador deixou
claro que vinha do seu círculo familiar.
Escreveu: “De uma parente minha que
teve uma prima que foi casada com o
filho do Guaracy (divórcio litigioso).”
Em outro, queria investigar um namora-
do de sua irmã, “super suspeito de psico-
pata”. Consultou sua mãe, para pegar o
nome do sujeito, e pediu ajuda à sua
mulher, a advogada Fernanda Dalla-
gnol, para levantar a ficha do rapaz. Ela
respondeu: “Eu investigar? Vou pedir
para um cara do mp que eu conheço.”

 
Em outra situação, Dallagnol man-
dou às favas os escrúpulos de consciên-
cia quando apoiou uma delegada da
Polícia Federal, Érika Mialik Marena,
que cometera um exagero fatal numa
investigação. Como a delegada era sua
aliada, o procurador ignorava seus er-
ros. Antes, Marena havia prestado um
serviço inestimável – e ilegal – na Lava
Jato. Assinou um documento ates-
tando ter tomado o depoimento de um
delator, o lobista Fernando Moura. Era
uma falsificação. A delegada não havia
tomado depoimento algum. Numa men-
sagem, Dallagnol explicou: “Como ex-
põe a Érika: ela entendeu que era
pedido nosso e lavrou termo de depoi-
mento como se tivesse ouvido o cara,
com escrivão e tudo, quando não ouviu
nada...” Em seguida, apesar de defender
a amiga, Dallagnol admitiu: “Dá no
mínimo uma falsidade...”

 
Passados quase dois anos dessa frau-
de, Marena estava novamente no centro
das atenções, depois que sua investiga-
ção sobre supostos desvios de recursos na
Universidade Federal de Santa Catarina
acabara resultando numa tragédia: sob
suspeita, e depois de passar um dia na
prisão, o reitor Luiz Carlos Cancellier de
Olivo foi proibido de entrar no campus e
suicidou-se ao pular do sétimo andar de
um shopping em Florianópolis. A dele-
gada recebeu críticas violentas por sua
conduta arbitrária. Dallagnol a apoiou.
“Érika, eles não prevalecerão. São um
absurdo essas críticas. Um bando de –
perdoe-me – imbecis”, escreveu. “Nessas
horas, quando há maior pressão, o im-
portante é focarmos na realidade crua:
você respeita todas as regras, atuou 100%
corretamente e como fazemos em to-
dos os outros casos.”

 
Quase dois meses depois, como as
críticas contra a delegada continuas-
sem, Dallagnol voltou ao assunto. “Éri-
ka, estou com o coração apertado com
as injustiças que você vem sofrendo.
Imagino como deve ser doído. Ao mes-
mo tempo, sei como você é e precisa ser
forte para passar por isso. Deus usa situa-
ções como essa para nos preparar para
novos desafios.” (Em 2023, ao analisar o
caso da ufsc, o Tribunal de Contas da
União concluiu que o reitor não come-
tera nenhum desvio ou irregularidade.)

 
O tom do seu apoio à delegada re-
metia à situação que ele próprio en-
frentara, no final de 2016, quando se
descobriu que havia comprado dois
apartamentos do Minha Casa Minha
Vida, o programa habitacional destina-
do à população de baixa renda. A com-
pra não era ilegal, mas, para um paladino
da honestidade, pegou mal a notícia de
que usara um projeto social para ganhar
dinheiro. Como se tivesse debruçado
sobre um diário, o procurador buscou
forças em longas mensagens que escre-
veu para si mesmo. Uma delas dizia:
“Orei para que o Criador, aquele que
tem o manual do fabricante, me cure 

dessa minha preocupação com a ima-
gem, diante das falsas matérias sobre
Minha Casa Minha Vida. Caráter é
quem Você é. Reputação é o que os
outros dizem que Você é. Deus não
se importa com sua reputação, com o
que os outros dizem de Você. Veja Je-
sus. E o que ele disse? Dê a outra face.
Ore pelos seus inimigos.”

 
Em seguida, Dallagnol recorreu aos
ensinamentos das histórias em quadri-
nhos. Escreveu: “Batman vs. Super-
man: Batman era criticado por seus
métodos, violência, por ser justiceiro.
Superman era colocado em falsas polê-
micas, como um potencial risco em
razão do seu poder.” E chegou à síntese
do que deveria fazer diante das denún-
cias: “Se eu me concentrar em respon-
der as falsas acusações, desperdiçarei
muita energia que preciso investir para
fazer minha parte pelo Brasil.” E encer-
rou inspirado numa frase atribuída ao
primeiro-ministro inglês: “Churchill: se
parar para atirar pedras em cada cão
que ladra pelo caminho, não chegare-
mos ao nosso destino.” (Dallagnol já
vendeu os dois imóveis, que ficam em
Ponta Grossa, no interior do Paraná.)

 
As mensagens do Telegram mostram
que a retidão ética exibida em público
nem sempre pautava sua conduta em
privado. Quando planejou uma viagem
internacional com a família, deu-se con-
ta de que não haveria tempo hábil para
obter passaporte para a filha caçula. Fer-
nanda, sua mulher, propôs ao marido
que desse um jeitinho: “Você pergunta
para algum delegado da pf se podemos
levar [a menina] em algum horário para
fazer o passaporte dela?” Dallagnol en-
tendeu logo – “vai parecer que quero
furar a fila, quando não é o caso” –, mas
fez exatamente isso. Escreveu para o de-
legado Felipe Hayashi, que integrava a
Lava Jato, e expôs seu problema, sem
pedir favores explicitamente, e obteve o
resultado que desejava. Hayashi pergun-
tou: “Que dia você quer vir com ela e
sua esposa fazer o passaporte?” Dalla-
gnol sugeriu a manhã seguinte. “Venha
amanhã então”, assentiu o delegado.
Pronto, a fila estava furada.

 
“Mor, saiu a série O mecanis-
mo na Netflix”, anunciou
Dallagnol à sua mulher em
23 de março de 2018, uma sexta-feira.
“Vamos suspender Suits hehehe”, acres-
centou, falando da série americana sobre
advogados poderosos. A empolgação do
coordenador da Lava Jato com O meca-
nismo, dirigido por José Padilha, era par-
tilhada pelos demais procuradores e,
também, por boa parte de Curitiba. Pe-
las vias do Centro da capital paranaense,
inclusive na rua da sede do mpf, havia
totens e outdoors exibindo peças de di-
vulgação da série, com uma foto em clo-
se do ator Selton Mello, que interpretou
o fictício delegado Marco Ruffo.

 
O entusiasmo inicial, no entanto,
logo deu lugar a uma decepção genera-
lizada. Já na manhã de sábado, 24 de
março, começaram as mensagens de
frustração nos grupos de Telegram. Os
procuradores reclamavam que eram re-
presentados como profissionais despre-
parados e arrogantes, que cometiam
erros elementares até para interpretar
decisões do stf, mas o pior de tudo era
outra coisa: quem brilhava na série era a
Polícia Federal, o que jogou lenha na
fogueira das vaidades.

 
Orlando Martello Júnior, que já ha-
via assistido a sete dos oito episódios, foi
um dos primeiros a gritar. “Bomba!!
Assisti O mecanismo. Pinta o mpf da
pior forma possível. Preocupou-me que
isso irá para o mundo. A pf é mais ética
que o juiz e o mpf. Se a coisa continuar
assim, a defesa de Lula vai chamar o
diretor para depor na ação [...]. Essa tem-
porada está perdida para nós.” Depois
da manifestação de alguns colegas,
Martello Júnior explicou seu receio:
“Quando vemos filmes baseados em
fatos reais acabamos por aceitar a tra-
ma. Para pessoas do exterior que não
leram – e não lerão – livros, jornais, a
estória dos abusos pode pegar [...]. É o
que fica para a história!”

 
Em princípio, como ainda não tinha
começado a assistir à série, Dallagnol fez
piada: “Eles têm que botar um galã. Vou
ser eu, com certeza.” Mas logo foi infor-
mado de que seu personagem já apare-
cia naquela primeira temporada e era
retratado “como um almofadinha”. No
próprio sábado, ele viu o primeiro episó-
dio e mudou de tom. “Foda pra gente
mesmo. Louva a pf. Detona mp como
soberbo, ingênuo e não ponta firme. So-
brou até pro Moro também [...]. Fiquei na
dúvida até se não é o caso de deixar bem
claro que tem um pequeno percentual
de realidade, mas a maioria é criação.”

 
O temor de que a pf aparecesse me-
lhor que o mpf era antigo. Ainda na fase
em que os produtores da série estavam
pesquisando o assunto, a dúvida angus-
tiou os procuradores. Um deles, Alan
Mansur Silva, levou o assunto a Dalla-
gnol. “Deltan, alguém da Lava Jato está
fornecendo informações ao José Padi-
lha [...]? Nosso receio é que como há
consultoria dos delegados, [a série] saia
muito ‘pró-delegado’.”

 
Dallagnol explicou ao colega que a
série era baseada no livro Lava Jato: o
juiz Sergio Moro e os bastidores da ope-
ração que abalou o Brasil, de autoria do
jornalista Vladimir Netto, que fez a in-
terlocução entre os produtores da série
e os membros do mpf. Depois de um al-
moço com o pessoal da série, em um
restaurante do Shopping Itália, em Curi-
tiba, Dallagnol escreveu: “Sendo fran-
co e realista rs, acho impossível que o
foco [da série] não seja a pf... Mas de
qualquer modo perguntei agora ao Vla-
dimir Netto sobre isso, dizendo que fui
demandado, na linha de que haja um
reconhecimento ao papel do mp... Mas
o ideal é que a anpr [Associação Nacio-
nal dos Procuradores da República] ou
outro fizesse isso, porque a gente pedin-
do parece disputa de vaidade.

Era tanta disputa de vaidade que
Dallagnol voltou a procurar o jornalis-
ta para enfatizar sua apreensão sobre a
visibilidade dos procuradores na série.

 
O jornalista tranquilizou-o: “Entendo
sua preocupação, mas a importância do
mpf na Lava Jato está superclara para
o Padilha e para a Elena [refere-se a Ele-
na Soárez, a roteirista da série] e para
todos nós do projeto.” Quando O meca-
nismo saiu, o procurador Diogo Castor
de Mattos decretou: “Perdemos nosso
tempo dando infos para os produtores.”
(Procurado pela piauí para comentar
as críticas dos procuradores, José Padi-
lha mandou uma mensagem em que
diz o seguinte: “Sobre os procuradores
reclamarem que a pf tem mais prota-
gonismo na série: não me surpreen-
de em nada. Durante a produção o
Dallagnol me procurou para que eu
assinasse as dez medidas dele contra a
corrupção. Eu achei descabido e recu-
sei. Depois, na filmagem do documen-
tário que estou fazendo, em parte sobre
meu próprio erro crasso de avaliação da
Lava Jato, pedi que a turma do Inter-
cept desse um search nas mensagens
usando meu nome. Apareceu uma
mensagem dos procuradores dizendo
pro Dallagnol me procurar que era cer-
to que eu iria apoiar a sua lista! A pro-
curadoria buscava o apoio de pessoas
conhecidas para ganhar visibilidade.
Queriam os holofotes.”)

 
A rivalidade entre os procuradores e
os agentes da pf tinha um histórico. No
dia em que aconteceram as três pri-
meiras prisões de políticos, nos primór-
dios da Lava Jato, houve um clima de
euforia entre os procuradores. Martello
Júnior, que atuara na investigação, co-
meçou a receber cumprimentos dos
colegas logo de manhã, quando as pri-
sões ainda estavam sendo feitas. Mas,
quando perceberam que a imprensa
estava dando destaque à Polícia Fe-
deral, o caldo entornou nos grupos de
Telegram. Dallagnol colocou panos
quentes: “O mpf tem tido um bom es-
paço e é saudável que a pf, que é grande
parceira neste caso, tenha o seu.” Mas o
tom de civilidade não durou.

 
Quando saiu uma reportagem no jor-
nal O Estado de S. Paulo sobre uma
eventual autonomia da pf, os procurado-
res sentiram sinal de perigo. Temiam
perder espaço e poder para a polícia.
Luiz Fernando Lessa, do Rio de Janeiro,
sugeriu contra-atacar: “Então é soltar os
podres [da PF]. Cadê os casos de controle
externo?” Depois, sugeriu que notícias
negativas contra a pf poderiam ser veicu-
ladas em programas popularescos da
Bandeirantes e da Record. Quando acon-
teceu outra prisão, o procurador João
Carlos de Carvalho Rocha, do Rio Gran-
de do Sul, escreveu, desolado: “Estou
acompanhando pelo g1. Entrevista da pf,
com mera coadjuvância do mpf. Pratica-
mente todos os comentários postados se
referem apenas à pf. Lamentável.”

 
O então procurador-geral, Rodrigo
Janot, foi acionado e reclamou, junto ao
stf, sobre a autonomia da pf, que mar-
cava depoimentos e decidia quem e
quando seria ouvido sem consultar os
procuradores da Lava Jato. O stf aca-
tou a demanda e suspendeu depoimen-
tos agendados para os dias seguintes
pela pf. Os procuradores vibraram, mas
a notícia não estava chegando à im-
prensa. Aílton Benedito de Souza, pro-
curador de Goiás, lamentou porque a
ideia era que a divulgação servisse para
“meter na cara desses fdp”. Só ficaram
aliviados quando o Jornal Nacional di-
vulgou a notícia à noite.

 
Houve momentos, como mostram as
mensagens no Telegram, que procura-
dores especulam sobre a possibilidade
de que venha a ser instalada uma “cpi
da pf”. Quando houve uma sucessão no
Ministério da Justiça, a procuradora
Monique Checker estava indignada
com o tratamento privilegiado que vi-
nha sendo dado à pf. Fez um desabafo:
“Eu preferia alguém que tocasse o ter-
ror, mesmo aumentando a crise insti-
tucional.” Mais cedo, Checker havia
criticado os delegados que “agem sem
pensar” e usam a “tática do achaque
explícito [que] sempre dá certo”. No dia
seguinte, a procuradora espinafrou todo
mundo. “No afã de atacar o governo,
toda a mídia e o público estão embar-
cando na onda dos delegados.”

 
O conteúdo das trocas de mensagens
mostra que os procuradores da força-
tarefa buscavam intensamente o apoio
da imprensa, mas queriam exclusivida-
de. Quando comentava sobre as rela-
ções entre a pf e a imprensa, Gustavo
Velloso, procurador do Distrito Federal,
avaliou que havia uma “relação promís-
cua muito antiga”. Checker subiu o tom:
“É antiga, mas acho que atualmente
virou quase um estupro. Não sei se pela
velocidade da comunicação ou pelo
descontrole em si. Ou ambos.”

 
A notícia de que o ex-ministro da Fa-
zenda, Antonio Palocci, fechara um
acordo de delação premiada com a pf – e
sem a participação do Ministério Públi-
co – caiu como uma bomba. Dallagnol,
que tentava se preservar nas polêmicas
com a polícia, lembrou no grupo “Fi-
lhos de Januário 2” que os delegados
estavam violando um entendimento
prévio: “Não tinha ficado combinado
que íamos chamar uns aos outros para
acordos?” Ao que a procuradora Isabel
Groba Vieira, do Paraná, respondeu:
“Eles [os delegados da PF] conhecem a
palavra lealdade?”

 
O procurador Carlos Fernando dos
Santos Lima, tratado como mentor do
grupo, propôs que os procuradores boi-
cotassem o acordo de Palocci. Explici-
tou seu plano: “Podemos ir queimando
aos poucos [o acordo] dizendo que nos
recusamos [a aceitá-lo] por falta de
comprovação, que os anexos não cor-
respondiam à importância de Palocci
e que a pf virou a porta da esperan-
ça.” (A delação de Palocci tornou-se
uma das mais complicadas. O Minis-
tério Público acabou por rejeitá-la         

mas a Polícia Federal a validou. Mais
tarde, às vésperas da eleição de 2018,
Moro divulgou um trecho da delação,
que não trazia novidades, nem provas.
A iniciativa foi interpretada como uma
forma de prejudicar a candidatura de
Fernando Haddad, do pt.)

 
Embora reclamassem da acusação
frequente de que tinham motivações
políticas, os procuradores – da Lava
Jato e de outras operações – viviam em
discussões políticas no Telegram. Além
das críticas e piadas sobre Lula e o pt,
a maioria dos procuradores tampouco
era fã de Jair Bolsonaro, o político que
crescia junto com a Lava Jato. Dois
anos antes da eleição, a procuradora
Lívia Tinôco especulou que ele não
teria 10% dos votos em 2018. “Será
como um Enéas”, escreveu, em refe-
rência ao folclórico presidenciável dos
anos 1990. “Se Bolsonaro ou qualquer
outro mentecapto de direita for eleito,
a culpa vai ser dos deficientes morais e
mentais do pt”, escreveu o procurador
Luiz Fernando Lessa.

 
Depois que Bolsonaro disse no progra-
ma Roda Viva, da tv Cultura, que seu
livro de cabeceira era A verdade sufocada,
do coronel Carlos Alberto Brilhante Us-
tra, o único oficial militar condenado
pelo crime de tortura, o procurador Aíl-
ton Benedito de Souza fez um tuíte reco-
mendando a leitura do livro, e a discussão
pegou fogo. “Lamentável e constrange-
dor”, reagiu Wellington Saraiva. Come-
çou então uma discussão sobre a ditadura
militar, a Lei da Anistia e a tortura.

 
Na eleição de 2018, quando Bolsona-
ro se elegeu, já não havia tanta antipatia
contra seu nome. “Apesar da italianice
dos Bolsonaro, da emotividade, dos
rompantes de cólera verbal, dos avanços
e recuos em diversos temas, Bolsonaro
tem uma cabeça de milico bem forma-
da e uma intuição absurda”, escreveu o
procurador Angelo Augusto Costa, de
São Paulo, mostrando-se aliviado com
a perspectiva de que o eleito seria tute-
lado por “cinco generais e um almiran-
te no Ministério. Rs”.

 
O procurador Peterson de Paula Pe-
reira, do Distrito Federal, considerado
um caso raro de petista nos diversos
grupos de conversa do Ministério Públi-
co, decretou: “Ninguém respeitará esta
anta.” O procurador-chefe da Lava Jato
evitava participar dessas discussões que,
na maioria das vezes, produziam bate-
boca e acabavam como tinham come-
çado. Apesar de sua militância política,
Dallagnol parecia sempre mais prag-
mático e focado em questões capazes
de produzir resultados concretos.
Depois de Lula e do pt, o grande
inimigo de Deltan Dallagnol era
o ministro Gilmar Mendes, de-
cano do stf, crítico dos métodos em-
pregados pela Lava Jato. Para Gilmar,
segundo suas próprias palavras pronun-
ciadas no plenário do Supremo, os pro-
curadores eram “cretinos”. Para os
procuradores, Gilmar era o “Gilmau”.

 
Logo no começo das mensagens, ain-
da em 2014, os procuradores já critica-
vam Gilmar, que era tratado como
“idiota”, “sem escrúpulos” e “mau-cará-
ter”. Quando o ministro concedeu um
habeas corpus que tirou o ex-ministro
José Dirceu detrás das grades, Dallagnol
ficou furioso, temendo que outras soltu-
ras fossem feitas. No momento em que
Antonio Palocci também pediu um ha-
beas corpus, Dallagnol enviou uma
mensagem aos colegas dizendo que, se

ex-ministro acabasse sendo libertado, era
preciso pedir o impeachment de Gilmar.

 
Havia, segundo ele, uma lista de ra-
zões. Gilmar não se declarava suspeito
de julgar casos do escritório de advoca-
cia em que sua mulher trabalhava, ti-
nha o hábito de imputar crimes aos
procuradores publicamente, votava de
modo incoerente – “denotando favore-
cimento” – e, entre outras coisas, acusa-
va a Lava Jato de fazer “reféns” para
manter o apoio popular. Dallagnol re-
cebeu a solidariedade da procuradora
Laura Tessler, que fora procurada pelo
advogado Modesto Carvalhosa para
ajudar na redação de um pedido de im-
peachment de Gilmar. Carvalhosa pe-
diu a destituição do ministro apenas em
2019, e não deu em nada.

 
A ideia de impichar Gilmar é recor-
rente nos grupos de Telegram. Para
Dallagnol, segundo escreveu nas men-
sagens, o ministro era um inimigo e,
mais do que isso, um empecilho para
sua missão de varrer a corrupção do Bra-
sil. Achava que só completaria sua tarefa
se tirasse Gilmar do seu caminho. No
grupo “Filhos de Januário 4”, até articu-
lou uma forma de tentar incriminá-lo
– o que extrapolava sua alçada profissio-
nal. A ideia era encontrar algum elo
entre Gilmar e Paulo Vieira de Souza,
conhecido como Paulo Preto, então en-
carcerado em Curitiba sob a acusação
de ser o operador financeiro do psdb.
Dallagnol acreditava que Gilmar, que já
tinha concedido dois habeas corpus em
favor de Paulo Preto, fosse beneficiário
das contas que o operador mantinha na
Suíça. (À piauí, Gilmar disse: “Não sei
quem é Paulo Preto, só conheço por fo-
tografia. Tenho recursos em Portugal,
porque comprei um apartamento e pago
contas lá. Não tenho nada na Suíça.”)

 
O Supremo, por ser a instância final
das decisões sobre a Lava Jato, atraía
muita atenção. Cármen Lúcia, hoje a
única mulher no tribunal, era alvo das
grosserias mais insultuosas e machistas
nos grupos de Telegram – inclusive das
procuradoras. Quando assumiu a presi-
dência da Corte, posição que ocupou de
2016 a 2018, a ministra recebeu críticas
técnicas, mas, sobretudo, de cunho pes-
soal. Falavam de seu cabelo, seus dentes,
seu estado civil, seus cuidados corporais.

 
Numa passagem, porém, os procura-
dores fizeram jus à perspicácia e ao
bom humor característicos de Cármen
Lúcia. O ministro Teori Zavascki, en-
tão relator dos processos da Lava Jato no
stf, morrera num acidente de avião e
os procuradores estavam ansiosos para
saber quem seria seu sucessor. Divulga-
ram a seguinte piada, que se passa no
velório do ministro e satiriza o interesse
de Gilmar em assumir como relator da
Lava Jato: “Um colega me contou que
viu e ouviu o ministro Gilmar Mendes
se aproximar da presidente do stf, a mi-
nistra Cármen Lúcia, e perguntar: ‘Pre-
sidente, posso ocupar o lugar do Teori?’
Ela respondeu: ‘Se você couber no cai-
xão e fizer tudo discretamente, pode.’”

 
Deltan Dallagnol comandou a Lava
Jato dos 34 aos 41 anos – e trans-
formou a sua vida, inclusive finan-
ceira, em antes e depois. Já nas primeiras
horas da investigação, o procurador
mandou uma mensagem ao pastor Só-
crates Oliveira de Souza, diretor execu-
tivo da Convenção Batista Brasileira,
colocando-se à disposição para se reuni-
rem no Rio de Janeiro. Como já estava
empenhado na divulgação do projeto
das 10 Medidas contra a Corrupção,
propôs fazer uma palestra. Estava ga-
nhando o apoio de vários ramos da reli-
gião – do espiritismo ao candomblé.

 
Logo surgiram convites de outros
campos. De seguradoras, planos de saú-
de, bancos, sindicatos, empresas. Dalla-
gnol fazia questão de dizer que suas pa-
lestras eram filantropia e que o dinheiro
que recebia era integralmente destinado
a entidades como o Hospital Erasto Ga-
ertner, de Curitiba, especializado no
combate ao câncer. Quando se interes-
sou em profissionalizar sua atuação,
contratou a Star Palestras e Eventos,
uma empresa paulista que passou a in-
termediar a negociação de seus cachês.
A Star Palestras tinha – e ainda tem – no
seu catálogo nomes famosos como Hor-
tência, a ex-jogadora de basquete, e o
infectologista David Uip, ex-secretário
de Saúde do Estado de São Paulo.

 
Em agosto de 2016, por exemplo,
Dallagnol fez uma palestra para a coo-
perativa financeira Sicoob, no Espírito
Santo. A empresa pagou 60 mil reais. As
contas foram divididas assim: 45 mil
para o fretamento do voo do procurador
e 15 mil reais ao Hospital Erasto Gaert-
ner, em forma de doação. Em poucos
meses, já tinha um cachê estabelecido.
Em uma mensagem no Telegram, infor-
mou: “Estou cobrando 35 mil reais.” Os
valores não eram fixos. Para instituições
ligadas à educação, cobrava menos. Para
dar uma aula no Acre, pediu 10 mil.

 
Com o aumento da demanda, come-
çaram as regalias. O convite para pales-
trar para contabilistas do Paraná incluía
um fim de semana com a mulher no hotel
Bourbon, em Foz do Iguaçu. O mesmo
hotel na cidade das cataratas foi também
o destino de uma palestra para a Unimed
– nesse caso, pediu quarto adicional para
a família, mas sugeriu arcar com os custos
da babá e despesas extras. Também teve
hospedagens pagas com a família no spa
Lapinha, no Paraná, e no resort Costão do
Santinho, em Santa Catarina.

 
Com o tempo, passou a se interessar
pelo modelo das aeronaves que faziam
seu transporte, já que costumava andar
em jatos fretados. Pegou gosto pelo King
Air, um bimotor de alto desempenho,
que seu sogro avaliou que era muito se-
guro. Em um caso, pediu ao contratante
que o transporte entre o Rio de Janeiro
e Volta Redonda fosse de helicóptero –
para ele e a família. Fernanda, sua mu-
lher, gostou da ideia: “Falei com a
minha vó e ela aceitou a carona rs.”
As palestras começaram a chamar
a atenção de sua própria assessoria.

Quando foi convidado pela Associação
Brasileira de Importadores e Distribui-
dores de Produtos para Saúde (Abraidi),
uma assessora alertou: “Tem muitos
distribuidores de órteses e próteses e
querem pregar a não corrupção nesta
área tão atolada na corrupção. O que
você me diz?” Dallagnol achou boba-
gem e disse que “não adianta pregar
para convertidos”. Estava aberta a por-
ta para aceitar qualquer convite.


Nicolao Dino, subprocurador-geral
da República, enviou uma mensagem
para dizer que, mesmo doando os hono-
rários das palestras, Dallagnol podia ser
acusado de tirar proveito do cargo para
beneficiar terceiros. Ele agradeceu a
preocupação, mas descartou. Avisou
que seguiria adiante com as palestras
porque estava, desta forma, “contri-
buindo com a sociedade”.


Estava tão seguro do que fazia que até
estimulava outros a adotar o mesmo ca-
minho. Sugeriu que a promotora Lucia-
na Asper y Valdés, do Distrito Federal,
procurasse a Star, caso quisesse entrar no
mercado. Disse que não pegava bem ela
mesma negociar cachês. Contou que o
segmento era rentável. O ministro Luís
Roberto Barroso, do stf, segundo ele,
estava cobrando 35 mil. Rodrigo Janot,
então procurador-geral da República,
levava 30 mil. Para o procurador Athay-
de Ribeiro Costa, do Paraná, Dallagnol
deu até dicas de como fazer uma boa
palestra: “Invista os dois primeiros minu-
tos para sorrir e conquistar o público”;
“Use a palavra sonho”; “Trocar ‘indig-
nante’ por ‘isso indigna você?’”; “O cara
tem que ver e ouvir como um filme”.


Alguns colegas aderiram. Certa oca-
sião, Dallagnol e outros três procurado-
res foram convidados para um evento
da xp Investimentos. Numa mensagem,
ele comentou que um deles receberia
25 mil reais, mas não disse nada a res-
peito do seu próprio cachê. Come-
morou bastante o formato do evento.
“Alguém da xp vai fazer as perguntas.
Não é show??? Acho que vai ser o me-
lhor painel ever.” Estava cada vez mais
à vontade. O procurador Roberson Poz-
zobon escreveu sobre o risco de pales-
trar para bancos. Dallagnol respondeu:
“Achamos que há risco, sim, mas que o
risco tá bem pago rs.”


Dallagnol passou a receber todo tipo
de convite, inclusive sigilosos. Débora
Santos, que se apresentou como consul-
tora de política e Judiciário da xp, con-
vidou o procurador para dar uma outra
palestra e, desta vez, argumentou que o
bate-papo seria privado. Para convencê-
lo, a consultora escreveu que o minis-
tro Luiz Fux, do stf, participara de um
evento na xp nas mesmas condições e
não saíra nenhuma notinha na impren-
sa. Dallagnol aceitou o convite.


Gostou tanto das palestras que repas-
sava contatos também para Sergio Moro.
“Caro, a Sociedade Brasileira de Cirurgia
Plástica vai te convidar para palestrar no
evento deles”, escreveu. E avisou: “Estarei
lá também. Eles pagam cachê elevado

Moro respondeu: “Prezado, agradeço
mas este ano minha programação já
fechou, a não ser que seja em Curitiba.”
O evento era em São Paulo. Em outra
ocasião, Dallagnol compartilhou um
convite ao então juiz para falar na Fede-
ração das Indústrias do Estado do Cea-
rá. E contou sua própria experiência.
“Eu pedi para pagarem passagens para
mim e para minha família e estadia no
Beach Park. As crianças adoraram”, dis-
se. “Além disso, eles pagaram um valor
significativo, perto de uns 30k. Fica para
você avaliar.” Moro não disse se aceitou
o convite ou não. A via era de mão dupla.
Numa ocasião, Moro sondou Dallagnol
para palestrar no Grupo Sinos, na cida-
de gaúcha de Novo Hamburgo. O pro-
curador autorizou que o juiz passasse
seus contatos aos interessados.


Em dado momento, Dallagnol deci-
diu fazer um fundo de reserva para a
hipótese de ter que pagar uma indeniza-
ção para Lula, que o acionava na Justiça
por danos morais. Caso não precisasse
usar todo o valor do fundo, doaria o res-
tante para o combate à corrupção – nun-
ca especificou de que forma. Ganhou
dinheiro quando lançou seu livro A luta
contra a corrupção pelo selo Primeira
Pessoa, da editora Sextante. Recebeu
100 mil reais como adiantamento. Até
agora, vendeu 32 mil exemplares – um
bom número para o mercado brasileiro.


Com o patrimônio em alta, Dallagnol
passou a ter preocupações de investidor.
Na iminência do julgamento de Lula em
segunda instância, mandou uma mensa-
gem para a mulher, lamentando não ter
resgatado suas ações mediante as previsí-
veis oscilações na Bolsa de Valores. “Não
sei se fiz besteira porque passou do horá-
rio, o resgate acontece amanhã e a data
da conversão é depois de amanhã. Ou
seja, vale o Ibovespa e valor de ação da
quarta, quando é o julgamento do Lula.”
(Preocupou-se à toa: a condenação de
Lula fez a Bolsa disparar e atingir um
recorde histórico até então.)


A certa altura, Dallagnol decidiu criar
sua própria empresa de palestras e even-
tos em sociedade com Roberson Pozzo-
bon, aquele que tinha preocupações em
relação a palestrar para bancos. Como foi
revelado pela Vaza Jato, as mulheres dos
dois procuradores cogitaram se tornar
sócias. Dallagnol continua na Star, cujo
catálogo informa que o procurador pode
falar sobre “luta contra a corrupção”,
“propósito e resiliência”, “ética nos negó-
cios” e “autismo e direitos dos autistas”.


Procurada pela piauí, Fernanda Cunha,
dona da Star, não quis informar como
anda a demanda por seu agenciado.


Com tanta atividade, Dallagnol che-
gou ao ano eleitoral de 2018 com a conta
recheada. Em uma troca de mensagens
com a mulher, comemorou que esta-
va com 949 mil reais “em poupança”.
A expectativa era fechar o ano com mais
dinheiro em caixa. Em meados de outu-
bro, faltando pouco mais de dois meses
para fechar 2018, escreveu: “Mor, se tudo
der certo nas palestras, vão entrar ainda

uns 100k limpos até o fim do ano.”
As palestras e o livro já haviam rendido
400 mil reais. Nessa época, o casal estava
se preparando para mudar para um apar-
tamento maior, em Curitiba. Quando
deixou o Ministério Público, em 2021,
Dallagnol ganhava 34 mil reais brutos.

 
Os políticos não perderam a oportu-
nidade de fustigá-lo pela bonança súbita.
Os petistas Paulo Pimenta e Wadih Da-
mous entraram com uma reclamação
disciplinar junto ao Conselho Nacional
do Ministério Público, argumentando
que Dallagnol usava a Lava Jato para
enriquecer. O cnmp autorizou as pales-
tras remuneradas com a justificativa de
que o procurador não vinha falando so-
bre assuntos sigilosos e, além disso, doa-
va a maior parte dos cachês. (À piauí, a
administração do Hospital Erasto Gaert-
ner afirmou que recebeu 219 mil reais de
doações de Dallagnol em 2016. A partir
de 2017, no entanto, o procurador não
fez mais doações à entidade.)

 
É uma ironia que a atuação de Lula
como palestrante tenha sido um dos mo-
tivos da Lava Jato para pedir a quebra do
seu sigilo fiscal e bancário. Moro autori-
zou a medida com o objetivo de descobrir
se o dinheiro era propina disfarçada de
cachê. Pouco antes de Moro dar sua sen-
tença sobre o assunto, o procurador Ange-
lo Augusto mandou uma mensagem aos
colegas comentando o rosário de lamban

 ças dos petistas: “Agora, a tigrada do pt,
essa curte um luxo, um jatinho, um agra-
do, uma palestra, um lobizinho...”

 
Gilmar Mendes, o ministro do stf
que mais criticou a força-tarefa e por ela
foi criticado, identificou outra tigrada.
Em conversa com a piauí, fez uma avalia-
ção ácida tanto da Lava Jato quanto dos
procuradores. “Eram pessoas que esta-
vam aí para ganhar dinheiro. Já me fala-
ram que ele [Dallagnol] acumulou um
patrimônio imobiliário enorme”, disse.

 
E completou: “Eles são pai e mãe do Bol-
sonaro. Eles imaginaram um cenário de
terra arrasada em que eles seriam os so-
breviventes. É o chamado tenentismo de
toga: eles realizariam esse sonho.”

 
A reportagem da piauí conversou
com Deltan Dallagnol durante
cinco horas e meia em uma sala de
reuniões de um hotel em Curitiba no
dia 15 de fevereiro. O procurador estava
acompanhado por dois assessores. Ali,
combinou-se que a conversa era para
apresentar contextos, e não uma entre-
vista. É o que se chama no jargão jorna-
lístico de “conversa em off ”. A piauí
deveria publicar as explicações que o
procurador mandaria mais tarde, por
escrito, em resposta às 36 perguntas
apresentadas pela revista. A piauí está
cumprindo o acordo. Dallagnol respon-
deu a todas as perguntas, exceto a que

escreveu “melhor ‘Temer’ o futuro e enter-
rar o passado ‘Dilma’ vez”.

 
Nas suas respostas, por dezenove ve-
zes, Dallagnol escreveu o seguinte antes
de dar sua versão: “Não responderei com
base em supostas mensagens que não
reconheço, mas com base na realidade.”
A frase, tantas vezes repetida, faz parte
da linha de defesa dos autores das men-
sagens que vieram a público com a Vaza
Jato. Alegam que não reconhecem os
conteúdos, sugerindo que podem ter
sido editados, distorcidos, inventados,
tirados de contexto ou mal interpretados.

 
Nas 27 páginas de resposta, o procura-
dor fez questão de defender a lisura da
Lava Jato e de sua conduta, a começar
pelo empenho na defesa das 10 Medidas
contra a Corrupção – afinal, era um
“projeto oficial, institucional, do Minis-
tério Público Federal, capitaneado pela
5ª Câmara de Coordenação e Revisão”.

 
Contou que se lembra de ter havido
“uma maciça adesão ao projeto” da parte
dos procuradores e disse que, em todos os
lugares por onde viajou, “havia sempre
procuradores e servidores engajados”.

 
Sobre seus investimentos, disse que
jamais usou informação privilegiada.
“Ao contrário de tantos investigados
pela Lava Jato, prefiro perder dinheiro
a ganhá-lo à custa da minha integri-
dade”, escreveu. Ressaltou que nunca
negociou com ações “de empresas in-
vestigadas ou vítimas na Lava Jato des-
de o início da operação” e que suas
aplicações “estiveram declaradas no Im-
posto de Renda”. Detalhou: “Por exem-
plo, eu tinha ações da Petrobras antes
de a Operação Lava Jato começar e não
as vendi até meses após ter deixado de
trabalhar na investigação. Durante o
período, não comprei e não vendi ações
da estatal, mesmo quando, com base
em informações públicas, parecia a me-
lhor decisão financeira.”

 
Ele não se lembra da “situação especí-
fica” em que teria pedido para investigar
o namorado de sua irmã, o “super suspei-
to de psicopata”, mas disse duvidar que as
mensagens sejam verdadeiras, porém – “se
forem” – não passavam de “uma conversa
familiar, que pode ser uma brincadeira”.
Em seguida, complementou: “Entrando
no terreno da especulação, caso tenha
ocorrido qualquer tipo de verificação [so-
bre o namorado] a partir dessa conversa
[...], posso assegurar que tal verificação
teria sido realizada exclusivamente por
meio de bases de dados públicas, inter-
net e redes sociais, sem implicar o uso
indevido de recursos estatais.”

 
Sobre a fila que furou para tirar pas-
saporte para a filha, disse desconfiar que
a mensagem que lhe é atribuída esteja
adulterada – porque o nome de sua filha
está escrito errado – e defendeu que, ao
contatar o delegado Felipe Hayashi, que
integrava a Lava Jato, não lhe pediu ne-
nhuma vantagem pessoal, nem solicitou
que os protocolos fossem violados. Em
sua resposta, Dallagnol deu a entender
que qualquer brasileiro comum, ao en-
frentar o mesmo problema, poderia li-
gar para um delegado federal e ainda
escolher a data em que gostaria de pegar
o passaporte. Disse que a interpretação
de que burlou a fila para viajar na data
desejada “é equivocada e ofensiva”.

 
No capítulo das palestras, Dallagnol
frisou que a grande maioria era gratuita.
Na campanha a favor das 10 Medidas,
contabilizou mais de 150, “todas gratui-
tas”. Em 2018, um ano particularmente
intenso, disse que fez 34 palestras gratui-
tas – sem citar o total das pagas – e deu
detalhes: das 34, vinte ocorreram “em
dias de folga, férias, fins de semana e fe-
riados” e três aconteceram “à noite em

Curitiba e Joinville (a uma hora e meia de
carro), o que demonstra que amar, servir
e lutar por boas causas é um propósito de
vida mais do que meramente um traba-
lho relevante de interesse público”.

 
Quanto às palestras remuneradas,
suas respostas são menos precisas. Es-
creveu que, entre 2016 e 2019, destinou
734 mil reais à filantropia e embolsou
“menos de 40% do total”. A piauí voltou
ao procurador para pedir que fornecesse
o valor exato que recolheu para o seu
bolso, evitando o uso de um percentual
impreciso, mas Dallagnol respondeu
que já havia dado todas as respostas ne-
cessárias. A revista voltou a insistir no
esclarecimento. Sua assessoria de im-
prensa tentou durante dois dias agendar
uma nova conversa, mas não conseguiu.

 
Sobre a escolha de jatinhos e heli-
cópteros para viajar, inclusive com a fa-
mília, Dallagnol explicou na nota que
só fez certos pedidos para facilitar os
deslocamentos e economizar seu tem-
po, mas explicou que “isso jamais foi
uma demanda que fiz, mas uma possi-
bilidade aberta para [viabilizar] certos
convites para palestra”. Esclareceu:
“Não creio que houve, nesses desloca-
mentos mais raros, preponderância de
‘jatinhos’, termo usado na pergunta que
pode sugerir um viés de exigência de
luxo e que não se reflete na realidade.
Houve preponderância de aeronaves de
menor porte, inclusive aeronaves sim-
ples, monomotor, de quatro lugares.”

 
Em novembro de 2021, quando aban-
donou a carreira de dezoito anos no
Ministério Público, desiludido com
o desmonte das operações contra a cor-
rupção, Deltan Dallagnol já estava no
mercado de palestras, atividade tão
malvista pelos procuradores quando in-
vestigavam Lula, e entrou no mercado
político, outra área que tantos procurado-
res consideravam suja. Filiou-se ao Pode-
mos durante um evento em Curitiba
com a presença de Sergio Moro, outro
que criminalizara a política e, na época,
já estava filiado ao mesmo partido. Não
era um destino inusitado. Os grupos de
Telegram de Dallagnol mostravam que,
havia alguns anos, ele cogitava lançar-se
como candidato a algum cargo eletivo.

 
Com a Lava Jato no auge, ele ainda
dispensava a política. Em mensagens no
Telegram, comentou sobre as desvanta-
gens da carreira: “Ganha menos, tem
menos férias, fica tomando pedrada na
vitrine num jogo de mentiras.” Mas não
era um caso encerrado. Escreveu: “A ver-
dade é que quero em minha vida, em
primeiro lugar, servir a Deus, e a Bíblia
coloca que a vida do cristão é como o
vento, que não sabe para onde vai. Se um
dia decidir tentar, é porque entendi que
é o melhor modo de servir a Deus e aos
homens e por puro espírito público.”

 
Pouco tempo depois, o empresário
Joel Malucelli – implicado em investi-
gações da Lava Jato – mandou sondá-lo
sobre uma candidatura ao Senado pelo
Podemos. Nas mensagens, não fica
claro se a negociação avançou, mas, em
certo momento, Vladimir Aras, procu-
rador do Distrito Federal, perguntou ao
colega se ele estava “firme na candida-
tura”, ao que Dallagnol respondeu: “Eu
não descarto também (assim como não
descarto várias outras coisas), mas hoje
minha saída [do MP], a meu ver e salvo
alguma mudança radical de cenário,
mais prejudicaria a causa anticorrup-
ção do que ajudaria.” Mas disse: “Pelas
pesquisas, estaria eleito, mas tem muito
mais coisa importante em jogo.”

 
Na mesma época, escreveu uma lon-
ga mensagem a um colega em que vol-
tou a falar sobre os aspectos negativos de
uma eventual candidatura. Disse que
perderia credibilidade pública, vários
apoiadores na sua igreja não entende-
riam a decisão, os eleitores do Paraná
talvez ficassem insatisfeitos com suas
viagens constantes pelo país e, por fim,
faria com que o movimento em favor das
10 Medidas contra a Corrupção pareces-
se uma plataforma pessoal. Na eleição
de 2022, Dallagnol declarou patrimô-
nio de 2,7 milhões à Justiça eleitoral e
elegeu-se deputado federal com 344 917
votos – o mais votado do Paraná.

 
Durou pouco. Em maio de 2023, per-
deu o mandato por decisão unânime do
Tribunal Superior Eleitoral sob a alega-
ção de que pediu exoneração do Minis-
tério Público para escapar de eventual
punição em processos administrativos
abertos para apurar sua conduta durante
a Lava Jato. Caiu atirando. Afirmou que
era vítima de perseguição porque decla-
rara uma guerra sem fronteira contra
poderosos políticos corruptos, que não
havia processo disciplinar contra ele na
época em que deixou o mp e concluiu
que, para cassá-lo, o tse fez “malabaris-
mo jurídico”. Trocou o Podemos pelo
Novo, cuja assessoria informa que lhe
paga 44 mil reais, mais ou menos o que
ganha um deputado. Sua tarefa é atrair
novos filiados e dar palestras para candi-
datos nas eleições municipais, nas quais
concorrerá à prefeitura de Curitiba.

 
Hoje o Novo tem apenas um prefeito no
país: em Joinville, Santa Catarina.
Dallagnol conta com uma força ge-
nerosa de apoiadores – aos quais ele
chama de “agentes de Deus”. Quando
foi condenado a pagar os 75 mil reais de
indenização para Lula em razão do epi-
sódio do PowerPoint, nem precisou re-
correr ao fundo de reserva que disse ter
constituído para essa emergência. Seus
apoiadores fizeram uma avalanche de
Pix para a sua conta, totalizando 500 mil
reais. Mais tarde, o Tribunal de Con-
tas da União – com votos de ministros
citados ou investigados pela Lava Jato
– condenou Dallagnol e o ex-procura-
dor-geral Rodrigo Janot a devolverem
2,8 milhões de reais pelo uso indevido
de diárias e de passagens aéreas durante
a Lava Jato. Cada um ainda deverá pa-
gar multa de 200 mil reais. Dallagnol
voltou às redes sociais e, em menos de
24 horas, conseguiu recolher 150 mil
reais dos “agentes de Deus”.

PIAUI     

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