February 24, 2024

O GATILHO DA INDIFERENÇA

 

 

SERGIO LIRIO

Varia, de conflito a conflito,
o momento exato em que a
avalanche de informações
e imagens começa a pro-
duzir o efeito inverso. De
repente, não mais do que
de repente, a indignação
transforma-se em indife-
rença. Os ucranianos experimentam essa
sensação faz tempo. A invasão russa ultra-
passou a marca dos 500 dias e, apesar das
promessas dos aliados ocidentais, a Ucrâ-
nia nunca esteve tão à mercê do Kremlin.
 
Nos Estados Unidos, os republicanos blo-
queiam o envio de armas e dinheiro. Na
União Europeia, o entrave tem sido a Hun-
gria de Viktor Orbán. Desfeita a ilusão –
ou a propaganda – de uma decantada vitó-
ria sobre a Rússia, quase ninguém se lem-
bra do sofrimento da população ucrania-
na, em mais um inverno sem energia e sem
perspectiva. Enquanto isso, Volodymyr
Zelensky cumpre o vaticínio do chance-
ler russo, Sergey Lavrov. Tornou-se, a con-
tragosto, no “mendigo de Kiev”. Quanto
mais implora a Washington e a Bruxelas,
menos migalhas recebe. Zelensky é obri-
gado a se contentar com tapinhas na cos-
ta e declarações de incentivo.
 
A caminho do quarto mês, o conflito
na Faixa de Gaza parece seguir o mes-
mo traçado. Diariamente, os corpos dos
palestinos continuam a ser empilha-
dos às centenas e um processo na Cor-
te de Haia, aberto a pedido da África
do Sul, vai determinar se Israel pratica
ou não genocídio no enclave (análise de
Reginaldo Nasser à pág. 14), mas a con-
tagem do número de vítimas reverbera
um processo mecânico. Na segunda-feira
15, segundo as autoridades de saúde pa-
lestina, eram 24.118 mortos e mais de 60
mil feridos. No dia seguinte, os ataques
israelenses acrescentaram cerca de 200
vítimas às estatísticas. Ao mesmo tem-
po, o Hamas divulgou nas redes sociais
a imagem de dois reféns israelenses mor-
tos em cativeiro. Há ainda 132 prisionei-
ros em poder do grupo islâmico – não se
sabe quantos vivos. Quem se comove?
 
O martírio está longe do fim. As duas
primeiras semanas do ano estabelece-
ram uma nova dinâmica na região e, a es-
ta altura, o mundo encontra-se mais perto
 de assistir a um conflito generalizado no
Oriente Médio do que à retirada das tropas
israelenses do território palestino, embo-
ra o ministro da Defesa, Yoav Gallant, te-
nha, na terça-feira 16, anunciado para bre-
ve o fim da ofensiva em “alta intensidade”
na Faixa de Gaza. Parênteses: na noite do
anúncio de Gallant, mísseis e soldados is-
raelitas mataram 163 palestinos em Gaza
e sete na Cisjordânia. Na fronteira norte,
o Hezbollah, grupo armado xiita libanês,
mantém a prontidão e faz ataques fortui-
tos às tropas israelenses. O Irã destruiu su-
postas “bases de espionagem do Mossad”
no Iraque e na Síria. Outra ação de Teerã
provocou um incidente diplomático com
o Paquistão, que acusa o regime dos aia-
tolás de matar duas crianças em seu ter-
ritório durante o lançamento de mísseis
contra aparentes redutos do grupo sunita
Jaish al-Adl, acusado de assassinar 11 poli-
ciais iranianos. “A responsabilidade pelas
consequências recairá diretamente sobre
o Irã”, protestou em nota o Ministério das
Relações Exteriores paquistanês.
 
A mais recente e preocupante frente de
tensão desenrola-se, no entanto, no Mar
Vermelho. Os bombardeios norte-ameri-
canos, apoiados pelo Reino Unido, a alvos
militares no Iêmen não foram suficientes
para dissuadir os rebeles houthis (repor-
tagem à página 16). Em solidariedade aos
palestinos e com a bênção dos aiatolás ira-
nianos, o grupo xiita tem infernizado, des-
de o fim de 2023, as rotas comerciais no es-
treito de Bab-el-Mandeb, por onde trafe-
gam 15% dos produtos enviados pela Ásia
à União Europeia. Em seu mais recente
relatório, o Banco Mundial alerta para
os efeitos da instabilidade sobre a recu-
peração da economia global. “Os recen-
tes ataques a navios comerciais começa-
ram a perturbar as principais rotas marí-
timas”, descreve o texto, “o que desgasta
a folga nas redes de abastecimento e au-
menta a probabilidade de estrangulamen-
tos inflacionários. Em um cenário de con-
flitos crescentes, o fornecimento de ener-
gia também poderá ser substancialmente
perturbado.” Grandes empresas e opera-
dores de logística suspenderam o trânsi-
to de mercadorias até segunda ordem, en-
quanto os houthis prometem intensificar
os ataques em retaliação aos bombardeios
ordenados por Washington. Na terça-fei-
ra 16, afundaram uma embarcação de ban-
deira grega. “O navio não precisa neces-
sariamente estar em direção a Israel para
que possam atingi-lo. Basta que seja norte-
-americano. Os EUA estão à beira de per-
der a sua segurança marítima”, ameaçou
Narsuldeen Amer, porta-voz dos rebeldes.
 
O único beneficiário de uma conflagra-
ção regional é o primeiro-ministro de Is-
rael, Benjamin Netanyahu. Quanto maio-
res as chances de o conflito envolver ou-
tras nações do Oriente Médio, mais forte
se torna o argumento em favor da manu-
tenção de um governo de coalização na-
cional, o que adiaria não só o fim do man-
dato de Bibi, a quem a maioria dos compa-
triotas culpa pelos atos do Hamas em 7 de
outubro, mas o afastaria por tempo inde-
terminado do acerto de contas com a Jus-
tiça israelense, em decorrência das acusa-
ções de corrupção. Netanyahu agradece e
mantém o fósforo aceso perto do rastilho
de pólvora. O Parlamento israelense aca-
ba de aprovar um aumento de 15 bilhões
de dólares (cerca de 75 bilhões de reais)
no orçamento militar, para fazer frente à
promessa de uma longa operação em Ga-
za, sem data para acabar.
 
Os alertas das entidades de direitos
humanos, por sua vez, continuam per-
turbadores. A despeito dos acordos pa-
ra a entrada de ajuda humanitária, o úl-
timo anunciado pelo Catar na quarta-
-feira 17, a escassez de alimentos é outra
forma de punir os palestinos. “A guerra
trouxe a fome com uma velocidade in-
crível para a frente das linhas”, afirmou
Martin Griffiths, subsecretário-geral
das Nações Unidas. No Fórum Econô-
mico Mundial, em Davos, o chefe de Gri-
ffiths, António Guterres, voltou a pedir
um cessar-fogo: “O mundo está de braços
cruzados, enquanto civis, na sua maioria
mulheres e crianças, são mortos, mutila-
dos, bombardeados, forçados a abando-
nar suas casas e lhes é negado o acesso
ao apoio humanitário”. Diretor-geral da
Organização Mundial da Saúde, Tedros
Adhanom, define a situação como uma
“mistura letal de doença e fome”.
 
Um relatório de especialistas da ONU,
divulgado na terça-feira 16, detalha a cala-
idade de modo instrutivo e acusa Israel
de usar o bloqueio como arma de guerra.
Eis alguns trechos: “Atualmente, toda a
população passa fome e luta para encon-
trar comida e água potável (...) As mulheres
grávidas não recebem nutrição e cuidados
de saúde adequados, colocando suas vidas
em risco. Além disso, todas as crianças
com menos de 5 anos – 335 mil – correm
alto risco de desnutrição grave, à medida
que (...) as condições de fome continuam a
aumentar. Uma geração inteira corre o ris-
co, agora, de sofrer de nanismo. Isso pre-
judicará a capacidade de aprendizado”.
 
Os especialistas prosseguem:
“Nenhum lugar é seguro em
Gaza. Desde 9 de outubro,
Tel-Aviv declarou e impôs um
‘cerco total’, privando 2,3 mi-
lhões de palestinos de água, ali-
mentos, combustível, medicamentos e for-
necimentos médicos, isso no contexto de
um bloqueio israelense de 17 anos, que an-
tes da guerra fez com que metade da popu-
lação de Gaza sofresse de insegurança ali-
mentar e mais de 80% dependesse de aju-
da humanitária (...) É sem precedentes fa-
zer com que toda uma população civil pas-
se fome de forma tão completa e rápida”.
 
ISRAEL USA A FOME
COMO ARMA DE
GUERRA, ACUSAM
ESPECIALISTAS
EM DIREITOS
HUMANOS DA ONU

 
Diante da perspectiva de um conflito
regional de consequências incertas, as
conversas em torno do futuro do enclave
após o fim da incursão militar israelense,
quando e se vier, têm sido infrutíferas. Em
entrevista à CNBC, Antony Blinken, se-
cretário de Estado norte-americano, que
pela quarta vez desde o início do conflito
realizou um tour pelo Oriente Médio pa-
ra tentar evitar uma guerra generalizada,
afirmou que os países árabes se recusam a
assumir os custos da reconstrução de Ga-
za por uma razão simples: a possibilida-
de de Israel voltar a pôr abaixo o territó-
rio em pouco tempo. De forma mais dire-
ta, o xeque Mohammed bin Abdulrahman
al Thani, primeiro-ministro do Catar,
expressou o horror e a desconfiança do
mundo árabe ante a destruição: “Gaza
não está mais lá. Quer dizer, não há nada
lá. Há bombardeios em todos os lugares”.
O melhor para o governo de Netanyahu
e seus aliados de extrema-direita e o pior
para o resto do planeta é o conflito tomar
outra proporção, a ponto de tirar o foco
da responsabilidade israelense pelo mas-
sacre e transformar-se em palco de uma
disputa geopolítica de maior amplitude.
 
Os ataques a navios no Mar Vermelho pe-
los houthis têm sido usados como pretexto
à retórica beligerante de governos ociden-
tais claudicantes e desesperados. É o caso
do Reino Unido, onde a mal avaliada ad-
ministração do Partido Conservador, em
posição de aviso prévio até as eleições par-
lamentares do segundo semestre, busca
uma bandeira de campanha capaz de ge-
rar esperança de vitória. Parceiro dos Es-
tados Unidos nos bombardeios a instala-
ções dos rebeldes do Iêmen, Grant Shapps,
secretário de Defesa da Grã-Bretanha, dis-
cursou na segunda-feira 15 a uma plateia
de oficiais e lideranças políticas. Embora
os meios de comunicação estrangeiros te-
nham dedicado notas de rodapé ao evento,
as declarações de Shapps condensam o es-
pírito dos tempos atuais – não só em Lon-
dres. “Acabou-se a era dos dividendos da
paz”, afirmou o secretário, ao defender o
aumento urgente e substancial nos gastos
de defesa no Ocidente, em resposta à nova
“Guerra Fria”, e prometer um incremento
no orçamento militar da Inglaterra de 2%
para 2,5% do PIB. “Daqui a cinco anos, po-
deremos olhar para vários lugares, entre
eles a Rússia, a China, o Irã e a Coreia do
Norte. Pergunte-se: é mais provável que
esse número aumente ou diminua? Sus-
peito que todos sabemos a resposta. Pro-
vavelmente, crescerá. Portanto, 2024 deve
marcar um ponto de inflexão.”  
 
CARTA CAPITAL  

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