October 1, 2023

PEGA, MATA E COME: o Centrão sem medo e a encruzilhada do PT

 

 


 MARCOS NOBRE 


“O Centrão não existe”,
decretou o presiden-
te Lula no final de ju-
lho. Não existe, mas
são dois. Há algum
tempo, o Centrão se bifurcou. Um dos
ramos é aquele que, por princípio, con-
tinua a topar ser base de apoio de qual-
quer governo, seja qual for, incluindo
um eventual novo governo liderado pela
extrema direita. O outro ramo é um Cen-
trão relutante, que continua com dispo-
sição de aderir, mas preferiria não ter de
ser base de um governo liderado pela
extrema direita.

 
Foi esse Centrão relutante que, desde
o início, entrou no governo Lula e, com
isso, atrelou seu destino ao destino do atual
governo. Pelo menos até 2026. É um exa-
gero dizer que irá automaticamente para
a oposição caso Lula (ou outro candidato
de seu governo) perca a próxima eleição.
Mas a adesão desse braço do Centrão a
um governo liderado pela extrema direita
deixou de ser favas contadas. É de um
Centrão temeroso que se trata.

 
Já o Centrão sem medo não terá ne-
nhuma dificuldade em aderir a um go-
verno abertamente de extrema direita.
É um Centrão que abraça o risco de
perder a democracia para manter seu
projeto de poder. É o Centrão carcará,
o Centrão que pega, mata e come. Na
versão cruzeiro marítimo com show ao
vivo de Wesley Safadão, é o “Centrão
raiz” de Arthur Lira.

 
Para preservar a possibilidade de ser-
vir também a um eventual governo lide-
rado pela extrema direita, o Centrão sem
medo pretende não aderir formalmente
ao governo Lula. Pretende receber os
cargos e as verbas e entregar os votos em
matérias consideradas cruciais, mas vai
fazer de tudo para não ser oficialmente
identificado à atual coalizão de governo.

 
O que mais se ouve das lideranças do
Centrão sem medo é a conversa de que
apoiam “projetos de Estado e não de go-
verno”. Tome-se aqui o exemplo, entre
muitos, de Luciano Bivar, presidente do
União Brasil, para quem o fato de seu
partido ter um representante no minis-
tério “não significa que dogmaticamen-
te a gente esteja com o governo”. Disse
isso na posse do ministro do Turismo,
Celso Sabino, filiado a seu partido e fiel
escudeiro do presidente da Câmara dos
Deputados, Arthur Lira. Esse presiden-
cialismo de coalizão cético, não dogmá-
tico, é, na verdade, um presidencialismo
flex, de conveniência, um presidencia-
lismo on demand, por assim dizer.

 
O que mostra o quanto mudou, em
relação a momentos anteriores, a cadeia
de distribuição do produto a ser entre-
gue. As unidades de aglutinação e dire-
ção não são mais apenas os partidos – daí
também o Centrão sem medo funcio-
nar em uma administração colegiada,
que vai além das siglas. As mudanças
trazidas pela reforma eleitoral de 2017,
com suas fusões, federações e confu-
sões de variados tipos, tornaram ainda
mais difícil alcançar a disciplina sem-
pre buscada pelas cúpulas partidárias.

 
Para que se tenha ideia da magnitude
da mudança, basta lembrar que entre
2018 e 2022, o chamado “número efeti-
vo de partidos”1 na Câmara dos Depu-
tados baixou de 16,6 para 9,9 – número
semelhante apenas ao que se observou
pela última vez em 2006. Ao mesmo
tempo, a taxa de renovação na Câmara
voltou a ficar abaixo de 40% em 2022,
depois de um pico de 47% na eleição d
2018. O que apenas demonstra a neces-
sidade de medidas – que deveriam ter
sido tomadas desde meados dos anos
2000, pelo menos – como a proibição
de coligações em eleições proporcio-
nais, a cláusula de desempenho e o fi-
nanciamento majoritariamente público
de partidos e de campanhas eleitorais.

 
Ainda assim, a base do governo Lula
deve chegar, no papel pelo menos, a ina-
creditáveis dezesseis partidos. Isso se deve
certamente ao fato de que a porcentagem
de votos entregues pelos partidos que es-
tão oficialmente na coalizão não atinge
mais os patamares observados em gover-
nos anteriores. Mas se deve, também, ao
fato de que o Centrão sem medo nego-
cia como bloco. E como bloco entrega
(ou não) os votos aos projetos prioritários
do governo, fazendo e desfazendo maio-
rias para a aprovação de projetos de lei e
emendas constitucionais. Ao votar em
bloco, o Centrão sem medo se tornou o
fiel que entorta de vez a balança.

 
Como a Câmara é o bastião do Cen-
trão sem medo, Lula se viu inicialmente
obrigado a construir sua coalizão de go-
verno a partir do Senado, onde o Centrão
sem medo não tem capacidade de blo-
quear a formação de maiorias em vota-

 ções importantes. Lula deixou para um
momento posterior a construção de uma
maioria também na Câmara, negociação
a ser concluída neste segundo semestre
do ano. Tendo clareza das dificuldades
de negociação com o Centrão sem medo,
Lula optou inicialmente pela construção
da aliança com o Centrão relutante, te-
meroso. Assim, foi oficializada uma bi-
furcação que já existia desde a eleição
para a presidência da Câmara em feverei-
ro de 2021 – quando Arthur Lira derro-
tou Baleia Rossi, do mdb –, mas que não
aparecia abertamente como tal.

 
O Centrão bifurcado de hoje foi o
resultado de uma longa constru-
ção. O renascimento do Centrão,
com esse nome, aconteceu na presidên-
cia de Eduardo Cunha na Câmara dos
Deputados, entre fevereiro de 2015 e
maio de 2016, quando a principal preo-
cupação era enfrentar, de modo organi-
zado e coordenado, a ameaça da Lava
Jato. Como o governo Dilma lavou as
mãos, deixando de oferecer proteção e
jogando a política oficial aos leões, a
resposta do sistema político foi o seu
impeachment. Com Michel Temer, o
Centrão chegou diretamente ao poder.
Mas o governo Temer não foi apenas
um governo de autodefesa do sistema po-
lítico contra a Lava Jato. Representou tam-
bém dois outros movimentos decisivos
para o entendimento da situação atual.

 
Um deles foi a ampliação e a consolidação
das condições para uma relativa indepen-
dência do Centrão em relação à Presidên-
cia da República e ao Executivo – condições
criadas ainda quando Cunha ocupou o
comando da Câmara. Basta citar as novas
versões de orçamento impositivo e os au-
mentos indecorosos do Fundo Partidário
e do Fundo Eleitoral.

 
Ao aprovar essas cifras abusivas de fi-
nanciamento público a partidos e campa-
nhas sem qualquer resistência relevante
da sociedade e das instituições, o Centrão
entrou numa nova fase de vida. Em algu-
ma medida, retomou o poder das cúpulas
partidárias (que controlam o caixa) e for-
taleceu-se, diante do Executivo, na dis-
puta por recursos. Aliás, é essa nova força
do Centrão que explica, em parte, a crise do
presidencialismo de coalizão, cuja condi-
ção central de funcionamento, em sua
vida pregressa, era justamente o predomí-
nio do Executivo sobre os recursos.

 
O outro movimento realizado no go-
verno Temer foi a experiência do Cen-
trão como governo – e não apenas no
governo. Foi a primeira vez – desde 1994,
pelo menos – que governou diretamente,
sem intermediários e coordenadores
transversais. Foi a primeira vez que se
recusou a ser guiado e decidiu guiar.

 
Entre 2016 e 2021, o Centrão conse-
guiu produzir o que se parecia com um
programa de governo – o documento Uma
Ponte para o Futuro do então pmdb –,
realizar reformas (trabalhista, previden-
ciária) e formular e aprovar projetos de
caráter estruturante (Marco Legal do Sa-
neamento, Marco Regulatório do Gás
Natural), sem que nenhum partido em
especial tenha tido a liderança intelectual
e política deste processo.

 
O sonho original do governo Temer era
produzir um grau de articulação e de con-
sistência programática suficientes para
que o Centrão como bloco político pudes-
se se tornar uma força de direita eleitoral-
mente viável, sem estar a reboque daquele
que tinha sido até ali o líder do polo de di-
reita do sistema, o psdb. Também porque
o psdb se mostrou incapaz de reconquistar
a presidência da República depois do go-
verno fhc, e, aos poucos, tornou-se apenas
mais um dos integrantes do colegiado po-
lítico em que se transformou o Centrão.

 
O experimento não construiu uma
candidatura presidencial autônoma por-
que Temer não saiu do rés do chão em
termos de popularidade. Mas também
porque sua proposta não tinha ressonân-
cia ampla na nova aliança social, econô-
mica e política que já estava se formando
naquele momento e que se tornou a
aliança eleitoral com que Bolsonaro aca-
bou se elegendo em 2018. O Centrão do
governo Temer não conseguiu expressar
esse movimento de placas tectônicas da
política brasileira. O psdb também não
conseguiu, o que explica seu declínio
como partido-polo da direita.

1 O “número efetivo de partidos” é uma fórmula clássica
da ciência política, que leva em conta a relevância das
legendas, considerando que uma agremiação com três
deputados (caso do Novo) não tem o mesmo peso que
uma agremiação com 99 deputados (caso do PL). (N. R.)

 
Dois meses depois de assumir a presi-
dência – e antes mesmo do afasta-
mento definitivo de Dilma Rousseff,
em agosto de 2016 –, Michel Temer de-
clarou querer “desidratar essa coisa de
Centrão”. Para demonstrar que se trata
de um projeto de médio e longo prazo, bas-
ta lembrar, por exemplo, que, em entre-
vista à Veja em agosto passado, o atual
ministro do Turismo, Celso Sabino, re-
jeitou o nome Centrão e voltou a insistir
em “centro democrático”. O mesmo nome
que, durante todo o ano de 2019, o Cen-
trão tentou emplacar. Até filme publicita
rio chegou a ser divulgado com a tentativa
de repaginação.

 
Não funcionou, evidentemente. Ain-
da assim, o experimento do Centrão
como governo prosseguiu no mandato
de Jair Bolsonaro. Em um primeiro mo-
mento, ainda com Rodrigo Maia na
presidência da Câmara, operou como
uma espécie de parlamentarismo por
suplementação: em tudo o que não in-
teressava ao governo Bolsonaro (quase
tudo), o Legislativo seguia como se ain-
da estivesse sob o governo Temer. Teve
a hegemonia nesse momento, sob a li-
derança de Maia, aquele que viria a ser
posteriormente o Centrão temeroso.

 
Não havia, no entanto, coalizão de
governo propriamente dita, muito me-
nos, naquele momento, a possibilidade
efetiva de governar. Maia se propôs a
conviver com Bolsonaro, mas não se dis-
punha a governar com ele. E vice-versa.
Mesmo porque a proposta de entrar no
governo não estava na mesa no primeiro
ano do mandato de Bolsonaro.

 
Com a chegada da pandemia de Covid
ao país, no início de 2020, Bolsonaro co-
locou na mesa a proposta de aliança. Para
chegar a esse pacto, realizou uma das
operações políticas mais difíceis: no papel
de presidente antissistema fez um pacto
com o representante máximo do sistema
– o Centrão. A manobra certamente con-
tou com a ajuda do ambiente de confusão
e angústia diante da chegada da pande-
mia, mas o fato é que foi bem-sucedida.
Todas as pesquisas subsequentes mostra-
ram que, com variações, Bolsonaro tinha
conseguido manter o apoio de cerca de
um terço do eleitorado, fatia com a qual
contou, de maneira mais ou menos cons-
tante, desde o seu terceiro mês de manda-
to. E o Centrão voltou a governar.

 
Mas Bolsonaro não fechou acordo
com qualquer Centrão. Pelas costas de
Rodrigo Maia, que ainda era o presiden-
te da Câmara, Bolsonaro costurou acor-
do com o que viria a ser o Centrão sem
medo. Apesar de ter entrado em vigor já
em meados de 2020, o acordo só foi ofi-
cialmente sacramentado com a eleição
de Arthur Lira para a presidência da
Câmara, em fevereiro de 2021.

 
A vitória de Lira marcou a subordina-
ção do Centrão com medo, liderado en-
tão por Rodrigo Maia, à sua bifurcação
temerária. Que Maia tenha sido vítima
de sua própria construção diz muito so-
bre o Centrão e suas vertentes temerosa
e temerária. Observe-se que, entre 2016 e
2023, dois presidentes da Câmara foram
reeleitos apesar da mudança de presiden-
te da República, fato inédito e muito
significativo da continuidade da coali-
zão legislativa a despeito da mudança na
liderança do Executivo.

 
Ciente de que outros ventos já sopra-
vam e que era preciso se adaptar, Maia
foi uma espécie de último moicano da
República do Real. Foi o último repre-
sentante de certa elite política tradicional
a ocupar a posição de articulador da di-
reita, do que se costumava chamar de “alto
clero” do Congresso. A derrota de seu can-
didato à presidência da Câmara, Baleia
Rossi, também presidente do mdb, em fe-
vereiro de 2021, marcou a troca de guar-
da definitiva da elite política congressual
e partidária. Algumas figuras da elite an-
terior conseguiram se manter no jogo.
Mas o preço para isso foi justamente ofi-
cializar a bifurcação do Centrão: aceitar
os termos da nova elite política empode-
rada durante o governo Bolsonaro ou se
aliar ao novo governo Lula. Não por aca-
so, Maia decidiu não escolher entre essas
duas opções e não concorreu a qualquer
cargo nas eleições de 2022.

 
OCentrão sem medo negocia, de
fato, como se fosse um único parti-
do em busca de um contrato de
coalizão em que possa governar e não
apenas renovar mandatos e posições den-
tro do aparelho de Estado. Não sendo
possível governar com Lula, ficará com os
cargos e com as verbas. Mas seu objetivo
é preparar uma coalizão alternativa à do
atual governo. Como tantos outros vários
grupos que se rebelaram contra a posição
subalterna que lhes foi imposta pelo arran-
jo político do Real, também o Centrão
sem medo não vê razões para continuar
como mero coadjuvante de governo.

 
Para isso, o Centrão na sua versão
sem medo pretende representar a corre-
lação de forças da eleição de 2018, a
eleição modelo para a nova elite política
congressual. A mesma coalizão social,
econômica e política que o psdb não foi
capaz de representar, a mesma coalizão
que chegou ao poder com Bolsonaro.
Na eleição de 2018, forjou-se uma alian-
ça de conveniência entre os setores que
se consideravam sub-representados na
política oficial e que viram na candi-
datura de Bolsonaro a oportunidade de
convergir e tomar o poder federal. Foi
uma eleição em que os outsiders desafia-
ram e venceram os estabelecidos.

 
Dado o crescimento de sua participa-
ção no pib, o agronegócio reivindicou a
posição de hegemonia que antes tinha
sido da indústria. Dado seu contínuo e
impressionante crescimento demográfico,
o eleitorado evangélico não mais aceitava
a subordinação ao catolicismo ainda do-
minante na política oficial. As Forças Ar-
madas e as forças policiais não pretendiam
mais se sujeitar às limitações de participa-
ção em governos e às iniciativas de contro-
le e de accountability que consideravam
nocivas. Segmentos do mercado financei-
ro descontentes com o tipo de acomoda-
ção habitualmente buscado pelas grandes
instituições do setor resolveram entrar de
cabeça na aliança revoltosa, exigindo re-
formas liberalizantes. E assim por diante.
Não se trata de dizer que esses grupos
não tinham poder antes. Pelo contrário,
tinham muito poder, não são outsiders
nesse sentido. A diferença é que não que-
rem mais apenas restringir seu poder a
ditar políticas de seus setores de atuação,
não querem apenas o Ministério da Agri-
cultura, ou os comandos das Forças Ar-
madas sob o guarda-chuva do Ministério
da Defesa, não querem apenas o Banc

 

 entral. Assim como o Centrão sem
medo, esses grupos querem governar.

 
É muito comum que esses movimen-
tos de insubordinação eleitoral contra o
“sistema” vigente sejam confundidos com
“antipetismo”. De um lado, faz sentido, já
que o pt ficou treze anos seguidos no po-
der federal e, no governo, foi sempre o
partido que manteve a indústria e o cato-
licismo em posições de destaque e hege-
monia, sendo refratário, ao mesmo tempo,
à participação militar no governo, a regu-
lamentações mais frouxas para polícias e
armamentos e ao liberalismo do mercado
financeiro. De outro lado, o “antipetismo”
é uma explicação simplificadora, para di-
zer o mínimo: o “anti” é meramente nega-
tivo, quer dizer apenas rejeição, quando o
que está em causa é também um movi-
mento positivo, uma agenda de tomada
do poder com pretensões de organização
em bloco político e eleitoral. Ignorar essa
realidade impede, não poucas vezes, que
se entenda o que se passa hoje.

 
Isso não quer dizer que a aliança de
conveniência de 2018 com vistas à toma-
da do poder tenha conseguido produzir
um programa coerente e articulado. Até
o momento, pelo menos. Uma articula-
ção coerente e com cara programática só
funcionou na primeira parte do governo
Bolsonaro porque Maia seguiu imple-
mentando o programa do governo Te-
mer. Já na fase do governo Bolsonaro
com Arthur Lira na presidência da Câ-
trão sem medo de governar. Foi assim
que passamos do pemedebismo no go-
verno típico da República do Real para
um pemedebismo que quer governar.

 
Para se manter coeso, o Centrão sem
medo depende umbilicalmente da ma-
nutenção de seu principal e praticamen-
te único grande trunfo institucional, a
presidência da Câmara dos Deputados.
Não pode se permitir dissensões inter-
nas neste assunto. Mas, sobretudo, o
Centrão sem medo, para manter o co-
mando da Câmara nas mãos de alguma
figura do triunvirato pp, União Brasil e
Republicanos, depende da firme manu-
tenção da aliança com a extrema direita.
Em sua versão de futuro polo da direi-
ta, esse triunvirato de partidos mantém
uma aliança preferencial com o pl. Mas
o projeto do triunvirato é aliar-se à extre-
ma direita sem ser obrigado a lhe conce-
der a liderança das alianças eleitorais,
tanto em 2024 quanto em 2026.

 
Em termos de candidatura presiden-
cial, o Centrão sem medo segue sendo
um Centrão pemedebista, ou seja, con-
tinua dependente de quem tem viabili-
dade presidencial. No final de julho, o
cabeça de ponte do Centrão sem medo
em território bolsonarista, o presidente
do pl, Valdemar Costa Neto, disse o se-
guinte à Folha de S.Paulo: “Nós temos
de preservar o Bolsonaro porque ele é
uma máquina de votos e o partido vive
disso.” A diferença agora é que o Cen-
mara, o projeto foi quase que meramen-
te reeleitoral, tanto para mandatos no
Congresso como para a tentativa de re-
condução do então presidente.

 
Para as forças revoltosas que se alia-
ram na candidatura de Bolsonaro em
2018, o principal problema é de pactua-
ção programática. A Presidência de Bol-
sonaro adiou esse encontro programático
ao adotar uma lógica de mera destrui-
ção, seguindo o figurino antissistema
típico de projetos autoritários. Diante
de anos de regressão econômica, diante de
um governo cambaleante como o de Te-
mer, sem candidatura presidencial com-
petitiva, a postura antissistema pareceu
crível e foi eleitoralmente viável. Nada
indica que manter essa postura será sufi-
ciente para 2026, ainda que o peso elei-
toral do impulso antissistema não deva
ser subestimado. Além disso, faltam hoje
ao Centrão sem medo os quadros neces-
sários para produzir a articulação progra-
mática de que necessita.

 
Na ausência de um partido de lide-
rança inconteste no campo da di-
reita, como foi o psdb por mais de
20 anos, a disputa se abriu. Mas em vez
de uma luta autodestrutiva pelo lugar
antes ocupado pelo psdb ou do estabele-
cimento de um programa prévio, como
foi o Uma Ponte para o Futuro, o Centrão
sem medo decidiu estabelecer uma con-
certação colegiada. É também um Cen-
trão sem medo tem a expectativa de ter
Bolsonaro sob seu controle.

 
Logo depois da eleição de 2018, não
faltaram candidatos a amansadores de
Bolsonaro. Ou adeptos da teoria da ca-
misa de força institucional. (Escrevi so-
bre essas duas fantasias interessadas na
piauí de dezembro de 2018.) O desfile de
amansadores e de repetidores do mantra
de que “as instituições estão funcionan-
do” se estendeu durante todo o governo
Bolsonaro, apesar das incontáveis evidên-
cias em contrário.

 
A situação agora é diferente. Ou pelo
menos essa é a expectativa do grande
consenso do sistema político na atuali-
dade: a inelegibilidade sem a prisão de
Bolsonaro. Trata-se de uma tentativa
de diminuir as chances de a extrema di-
reita ser eleitoralmente hegemônica sem
que perca sua eficácia eleitoral. Em ou-
tras palavras, o Centrão sem medo acre-
dita que pode colocar Bolsonaro a seu
serviço. Bolsonaro sabe bem que ser cabo
eleitoral do Centrão sem medo talvez
seja seu único trunfo contra a formação
de um consenso político em torno de sua
prisão. Quanto mais o cerco se fecha so-
bre Bolsonaro, mais importante se torna
a blindagem que o Centrão sem medo
tem a lhe oferecer. E mais cara passa a
custar essa blindagem.

 
Do seu lado, o Centrão sem medo
acredita ter a oportunidade de chegar ao
poder pelo voto. Não mais como recurso
de emergência anti-impeachment, não
mais como coadjuvante, como aconteceu
no governo Bolsonaro a partir de meados
de 2020. Mas sim como a força política
dirigente, numa composição em que a
extrema direita seja minoritária na alian-
ça eleitoral. Há o risco de Bolsonaro virar
esse jogo, em uma dessas reviravoltas de
conjuntura que passaram a fazer parte do
cotidiano da política. E isso mesmo sem
pensar no impensável de uma nova elei-
ção de Donald Trump em novembro de
2024, que daria um enorme empurrão na
mobilização da extrema direita. Mas é
por isso mesmo que se trata de um Cen-
trão sem medo. Sendo necessário, dará
novamente seu apoio a um governo lide-
rado pela extrema direita.

 
Com o Centrão sem medo, um novo
polo eleitoral e de governo está se
formando. Tem pouco a ver com
os antigos dois polos, liderados por psdb
e pt. Trata-se de uma coalizão de parti-
dos e grupos políticos com regras de
decisão colegiada e de divisão do poder,
sem um partido líder. Ou, antes, trata-
se de um colegiado que pratica o rodí-
zio da posição de liderança.

 
Pode ser que o governo Lula consiga
alterar essa configuração, trazendo o
Centrão sem medo de volta para um
pacto pemedebista tradicional, nos mol-
des dos governos petistas dos anos 2000
e 2010. Pode ser que o Centrão sem
medo não consiga manter a relativa coor-
denação e disciplina que conseguiu até
agora. Mas, hoje, é pouco provável que
qualquer uma dessas possibilidades ve-
nha a se concretizar.

 
Se o processo de restruturação do sis-
tema político vier a se consolidar mais
ou menos nos termos descritos até aqui,
dificilmente irá se restringir apenas a
esse novo polo do Centrão sem medo.
Mais cedo ou mais tarde, atingirá tam-
bém o polo hoje ainda liderado pelo pt.
Nesse quadro, o governo Lula terá de
brigar para manter o Centrão temeroso
junto a si. Movimentações nesse sentido
parecem já estar acontecendo, ainda que
de maneira tímida. A especulação sobre
uma possível saída de Alckmin da vice-
presidência para concorrer ao governo
do Estado de São Paulo, por exemplo,
seria uma maneira de abrir a posição de
vice para negociação em 2026.

 
A consolidação da “frente ampla” com
que Lula se elegeu em termos de bloco po-
lítico pode vir a ser o único caminho para
que o atual governo tenha condições de
evitar o risco de vitória presidencial do Cen-
trão sem medo. Pode ser o único caminho
para evitar uma reunificação do Centrão
sob a hegemonia do Centrão sem medo,
o que seria fatal para o projeto petista.
Porque, assim como o Centrão sem medo,
também o Centrão temeroso não quer só
puxar a carroça. Quer sentar-se na boleia
de vez em quando. Para que essa “frente
ampla” se torne de fato um bloco político,
acordos programáticos e novos arranjos
em termos de operação política e de go-
verno terão de ser alcançados, de modo a
funcionar de forma mais colegiada do
que tem funcionado.

 
Ocorre que um movimento como esse
exigirá uma crucial mudança de postura
do pt, tão difícil de acontecer quanto a
formação da “frente ampla” de 2022: será
preciso deixar de tomar como evidente
que o partido tem direito, por princípio, à
posição vanguardista do início dos anos
2000, cabendo às demais forças políticas
do bloco se submeterem à sua orientação.
Uma mudança dessa magnitude na his-
tória do pt se justificaria para evitar não
apenas a derrota na próxima eleiçã

sidencial, mas para evitar um isolamento
político que, no futuro, poderá custar ao
partido a perda da posição central que
tem hoje. Além, evidentemente, de servir
de última barreira contra a ameaça auto-
ritária, sempre presente.

 
Afora isso, abrir mão do vanguardismo
típico dos governos petistas de Lula e de
Dilma para produzir um programa típico
de uma frente ampla gera uma dificuldade
adicional: poderia abrir um espaço à es-
querda do pt, algo que o partido sempre
evitou com sucesso. Com ou sem uma
força política eleitoralmente relevante à
esquerda do pt, está na ordem do dia a
reorganização em novos termos do espaço
da esquerda. Não é de hoje que a esquerda
brasileira precisa de uma conversa ampla
sobre seu programa, sobre qual país pre-
tende construir. Não é mais possível con-
tinuar a tirar da gaveta o programa dos
anos 2000 como solução para a situação
atual, inteiramente diversa. Como tam-
bém não é possível permanecer colado ao
noticiário do dia e aos embates pontuais
nas redes, por decisivos que sejam.

 
A conversa sobre o que pretende a es-
querda se tornou urgente. Não só em ter-
mos programáticos mais amplos, mas
também em relação a questões táticas
prementes. Hoje, a única estratégia visível
para lidar com a ameaça da extrema direi-
ta é acuar Bolsonaro, mas mantê-lo como
adversário preferencial, especialmente na
condição mais ou menos permanente de
inelegibilidade. Não há, de fato, estratégia
para desmantelar a extrema direita. Da
mesma forma, o governo Lula já deixou
claro que não pretende tomar nenhuma
iniciativa para um novo enquadramento
legal das Forças Armadas, tanto no que
diz respeito, por exemplo, às operações de
Garantia da Lei e da Ordem como em
relação ao artigo 142 da Constituição
como um todo. O governo não tem inicia-
tiva nem mesmo quando se trata de pro-
moções ou nomeações de militares.

 
Essas duas omissões do campo pro-
gressista, em um momento em que tem a
iniciativa e os meios, não ficarão impu-
nes: sob fogo cerrado, a extrema direita
recua, mas retoma a iniciativa assim que
tem a oportunidade. O progressismo tem
vivido entre a ilusão de que o recuo da
extrema direita é permanente e o susto de
quando ela reaparece, como se ressurgis-
se do nada. Diverte-se com a estupidez do
golpismo bolsonarista na mesma medida
de sua incapacidade de entender que até
a extrema direita aprende com seus erros.

 

2 Seria de grande interesse comparar a divisão qua-
dripartite atual – o polo liderado pelo PT, o Centrão
temeroso, o Centrão sem medo e a extrema direita
– com a hipótese de André Singer (em seu Lulismo
em crise) dos “três partidos” brasileiros que, sob a
superfície cambiante dos períodos democráticos e di-
tatorial, operariam desde a República de 1946. Mas
a comparação levaria longe demais do argumento
principal que desenvolvo aqui. (N. A.)

 
3 A versão registrada em uma conversa com Cristo-
vam Buarque em 2004 tem a seguinte formulação:
“Não discutimos nem disputamos ideologia. É poder,
é quem comanda. Minha ideia para o Brasil é a se-
guinte: você tem uma massa atrasada no país, e par-
tidos que representam esse atraso, clientelismo. Os
dois partidos que têm capacidade de liderança para
mudar isso são o PT e o PSDB. Em aliança com outros
partidos. No fundo, disputamos quem é que comanda
o atraso. O risco é quando o atraso se comanda. É um
pouco o negócio do pacto com o diabo, do Fausto,
não é? Você pode perder a sua alma nesse processo,
porque o atraso pode te comandar.” “A luta de PT e
PSDB é política, não ideológica”, PSDB, 29 de no-
vembro de 2004. Disponível em: <www.psdb.org.br/
acompanhe/noticias/a-luta-de-pt-e-psdb-e-politica-
nao-ideologica>. Acesso em: 30 jun. 2023. (N. A.)

 
Foi apenas com a ditadura civil-
militar de 1964 que o projeto mo-
dernizador brasileiro se dividiu
claramente em duas vertentes – a auto-
ritária e a democrática. Antes disso, a
distinção parecia meramente teórica.
Importantes figuras do projeto moder-
no brasileiro, identificadas com ideais
democráticos, aderiram à ditadura de
Getúlio Vargas, por exemplo. Naquela
etapa, a modernização era mais impor-
tante do que o regime político. Em es-
pecial porque o credo modernizador
incluía a ideia de que a democracia
resultaria de alguma maneira, em al-
gum momento, do próprio processo
de modernização.

 
Os quase quarenta anos de perspectiva
de ascensão econômica – muitíssimo de-
sigual, com certeza, mas também mais
ou menos generalizada e contínua – que
se seguiram ao final da Segunda Guerra
Mundial se dividiram em duas partes:
uma ordem política democrática moder-
nista (1946-64) e outra ditatorial moderni-
zadora iniciada em 1964, cujo ciclo de
crescimento econômico se esgotou em
1980. Foram essas duas versões do nacio-
nal-desenvolvimentismo que ficaram
como modelos duradouros de sociedade,
ainda que o nacional-desenvolvimen-
tismo, ele mesmo, tenha sido deixado
para trás a partir de meados dos anos
1990, e a versão autoritária tenha deixado
o poder em inteiro descrédito.

 
No final de 1945, o que se tinha no
país era, sem dúvida, uma ditadura. Ao
mesmo tempo, o país tinha se aliado às
forças que derrotaram no campo de ba-
talha o fascismo e o nazismo. O ditador
era um civil. O presidente que tomou
posse em janeiro de 1946 foi um gene-
ral profundamente comprometido com
a ditadura do Estado Novo. A vitória
eleitoral de Eurico Gaspar Dutra, além
disso, dependeu do apoio decisivo, de
última hora, que lhe deu o ditador de-
posto, Getúlio Vargas. Contradições
não faltavam, mas nenhuma delas era
suficiente para isolar o autoritarismo.

 
Em 1985, quando se encerrou a dita-
dura civil-militar, deu-se o contrário:
não houve batalha campal pela demo-
cracia, mas o grande derrotado foi o
amálgama de autoritarismo e militaris-
mo. A parte da direita brasileira partici-
pante do amálgama, sua maior parte,
perdeu qualquer capacidade de dar di-
reção à redemocratização. Ser “de
direita” virou xingamento, razão inape-
lável de cancelamento social. Isso mos-
tra que não foi apenas a extrema direita
que teve de aceitar uma posição subal-
terna na transição para a democracia.
Também a direita que se aliou à sua
vertente extrema teve sua capacidade
de influência muito diminuída.

 
Quem liderou a transição para a de-
mocracia foi o progressismo, essa aliança
de setores originários da esquerda com
setores da direita democrática – além de
trânsfugas do autoritarismo dispostos a
se submeter à liderança progressista. Jun-
tamente com forças de uma nova esquer-
da – da qual o pt pretendia ser o grande
representante – fez-se a Constituição de
1988, o documento por excelência da
liderança progressista. Diante da clara
hegemonia do progressismo no processo
constituinte, o que restou à direita que
não podia dizer seu nome foi construir
uma trincheira defensiva. Assim nasceu
a primeira figura do Centrão.

 
Não por acaso a situação atual se pare-
ce com a de 1987. O governo Lula, encar-
nando o progressismo, encontra em parte
relevante do Congresso a posição defensi

 va do Centrão. Mas há pelo menos duas
diferenças decisivas em relação ao perío-
do constituinte. Depois de 35 anos da
democracia menos limitada que o país já
teve, trata-se agora de um Centrão sem
medo e de uma extrema direita desinibi-
da. Além disso, a posição do Centrão sem
medo não é mais unicamente defensiva,
mas vocaliza uma direita com pretensões
de ganhar e governar, não mais se resig-
nando ao papel anterior de se deixar levar
pelo líder da vez do condomínio de po-
der, como aconteceu entre 1994 e 2014.2

 
Oprogressismo que dominou a re-
democratização foi também um
vanguardismo modernista. Esse
vanguardismo democrático desdobrou-
se em duas versões de concretização do
texto progressista da Constituição de 1988.

 
A versão do governo fhc retomou o mo-
delo clássico do pós-guerra do moder-
nismo pelo alto, com um conjunto de
quadros bem formados que comparti-
lhavam um projeto de transformação de
bases comuns. Mesmo que sua versão do
moderno já fosse a do desmonte do na-
cional-desenvolvimentismo e a da adap-
tação a uma nova fase do capitalismo.

 
A versão dos governos petistas foi a
novidade de uma modernização a partir
de baixo, a partir da leitura da Consti-
tuição feita por movimentos sociais e
sindicatos. É certo que se moveu já den-
tro dos limites estabelecidos pela nova
moldura deixada pelo governo fhc, mas
introduziu elementos de equidade e de
solidariedade social inéditos.

 
Existem algumas versões registradas
da tese de Fernando Henrique Cardo-
so de que a vanguarda política demo-
crática no Brasil é aquela que dirige o
atraso.3 Deixando de lado discussões
fáusticas sobre o que se nomeia como
“atraso”, o fato é que esse entendimento
do vanguardismo político não serviu
apenas para o projeto do presidente do
Plano Real. Serviu igualmente para o pro-
jeto do pt em seus períodos na presidên-
cia da República. Tanto psdb como pt
sempre viram a política oficial como atra-
sada, ainda que tenham dado sentidos
diferentes a esse atraso.

 
Ao mesmo tempo, esse vanguardismo
só seria possível se esses dois partidos tives-
sem em suas mãos o controle dos vagões
da política oficial, de maneira a dirigi-los
para o rumo que tinham decidido impri-
mir ao país. A condição para isso, eviden-
temente, é que a maior parte da maioria
de direita se deixasse puxar. Era uma con-
dição inédita se comparada à democracia
limitada do período 1946-64. Ao mesmo
tempo, foi uma condição dada pela dife-
rença entre o fim da ditadura do Estado
Novo, em 1945, e a ruína própria do fim
da ditadura civil-militar de 1964.

 
Dito de outra maneira, o pemedebis-
mo do sistema político – o aderir ao go-
verno seja ele qual for – foi justamente
o que permitiu o vanguardismo. O van-
guardismo, por sua vez, permitiu que a
grande maioria dos partidos pudesse se
reproduzir sem a ameaça de que os par-
tidos líderes dos dois polos usassem do
poder federal para conquistar maioria
para si. Isso porque, para permanece-
rem como líderes, psdb e pt estavam
obrigados a terceirizar a busca de votos
para os demais partidos, que se valiam
das vantagens competitivas de estar
sempre no governo para conquistar po-
sições nos Legislativos. Como ideologia
e como prática, o vanguardismo político
da redemocratização brasileira se amol-
dou a seu adversário “arcaico” para im-
plementar o programa modernizador
que deveria, ao final, resultar no desapa-
recimento de todos os arcaísmos.

 
O que a implementação em amálgama
do projeto modernista produz é sempre
um novo amálgama e não a eliminação
de um dos seus componentes. Essa é a
grande lição do mais arguto observador do
fenômeno, o sociólogo Francisco de Oli-
veira. No ambiente democrático a partir de
1985, o amálgama tinha se tornado ainda
mais complexo. Não só porque a econo-
mia brasileira já tinha atingido um grau
incomparavelmente maior de complexi-
dade em relação às décadas anteriores.

 
A organização e a mobilização de forças
políticas e sociais as mais variadas, de gru-
pos de pressão e de interesse, de setores
historicamente marginalizados, de novos
movimentos sociais, levou a disputas iné-
ditas, em múltiplas arenas e dimensões.
A modernização em amálgama da
redemocratização se reinventou para
responder a essa nova moldura. Foi a
complexidade da regulação democráti-
ca que produziu o arranjo do pemede-
bismo, esse conservadorismo em versão
democrática. Foi assim que o vanguar-
dismo político moderno democrático se
amoldou a seu duplo arcaico, tanto no
caso do psdb como no caso do pt. Foi
assim que a grande massa do sistema
político se subordinou a esses dois polos.

 
Aadaptação à ordem neoliberal dos
anos 1980 em meio a uma transição
para a democracia representou um
grau de turbulência política, social e eco-
nômica que só não levou a um retrocesso
porque a ditadura já não tinha qualquer
lastro para além das Forças Armadas.
A geração que liderou a redemocratização
tinha se formado sob o nacional-des   
vimentismo e não foi senão com muita
dificuldade que parte dela se convenceu
de que não seria mais possível voltar a
este modelo, agora em condições demo-
cráticas, reconectando-se com o projeto
interrompido pelo golpe militar de 1964.
O emblema dessa dificuldade é o próprio
texto constitucional de 1988, marcado
pelo nacional-desenvolvimentismo mo-
dernista, só posteriormente – e aos pou-
cos – adaptado à modernização própria
da era neoliberal.

 
A porção da elite política que, aos pou-
cos, convenceu-se da necessidade de adap-
tação a uma nova realidade do capitalismo
planetário é a mesma que se elegeu para
governos estaduais em 1982, nas primeiras
eleições diretas para governador desde
1965, que dominou a discussão de políti-
ca econômica no governo de José Sar-
ney (1985-90), que liderou os trabalhos da
Constituinte encerrados em 1988. Foram
figuras como Franco Montoro, José Richa,
Mário Covas, Fernando Henrique Cardo-
so, José Serra, Euclides Scalco.

 
Ao mesmo tempo, esses então inte-
grantes do pmdb, partido que liderou a
transição para a democracia, chegaram
à conclusão de que o partido-ônibus a
que pertenciam jamais alcançaria con-
senso interno suficiente para realizar
por si mesmo essa adaptação, vista como
inevitável. Em um primeiro momento,
esse grupo procurou espelhar no texto
constitucional o tipo de liderança que
tinha conseguido durante o processo
constituinte, lutando pela adoção do
parlamentarismo. Em um governo par-
lamentarista, tinham a expectativa de
poder liderar o pmdb rumo a essa nova
etapa do capitalismo brasileiro.

 
Poucos meses antes da promulgação
da Constituição, com a hipótese parla-
mentarista já derrotada, esse grupo se viu
compelido a romper com o pmdb e a fun-
dar um novo partido, o psdb. A aposta era
muitíssimo arriscada. Mas o timing da
eleição presidencial de 1989 exigia a
ruptura com o pmdb naquele momento.
O marco programático da ruptura reali-
zada no ano anterior foi o discurso feito
no Senado por Mário Covas em 1989,
em preparação para sua candidatura pre-
sidencial daquele mesmo ano. No discur-
so, Covas defendeu a necessidade de um
“choque de capitalismo”.

 
Esse partido de quadros nascido dire-
tamente do sistema político pretendia, no
mínimo, fazer boa figura na primeira
eleição presidencial direta desde 1960 e,
com isso, negociar participação em um
futuro governo, segundo uma estratégia
de crescer a partir da ocupação de espa-
ços desde cima. Com muitos bons qua-
dros e relativamente poucas perspectivas
eleitorais majoritárias, esse grupo sabia
que sua única chance de dirigir o país
seria pelo alto. Quase cometeram o erro
fatal de integrar o governo de Fernando
Collor. Mas a estratégia de ocupação aca-
bou sendo bem-sucedida no governo
pós-impeachment de Itamar Franco,
com o lançamento do Plano Real.

 
Depois da eleição de 2014, o partido
que quis se construir “da cabeça para o
pé” acabou ficando só com o que tinha,
a cabeça, sem ter onde apoiá-la. A partir
do governo Temer, perdeu inclusive a ca-
beça. Passou a contar apenas como mais
um integrante do pemedebismo nacio-
nal, um sócio menor desse condomínio.
Agrande novidade da redemocratiza-
ção foi o surgimento de um partido
popular de massas voltado para o
combate ao atraso sem pactuar com ele.
O pt pretendia representar uma inédita
versão do moderno brasileiro: con

uma sociedade moderna “do pé para a
cabeça”. Para quadros formados no pro-
jeto modernista da República de 1946
parecia um projeto não apenas imprová-
vel, mas lunático mesmo.

 
Erraram feio. Hoje, é impossível re-
construir a história da política brasileira
desde a redemocratização sem o pt. É o
que mostra com muito talento Celso Ro-
cha de Barros em seu PT, uma história.
Que não é uma história do pt, mas uma
história da política brasileira dos últimos
quarenta ou cinquenta anos. Que não
tem como ser contada sem que o pt ocu-
pe uma posição central. Porque, junta-
mente com o pemedebismo do sistema
político, o pt é o que há de original e de
peculiar na redemocratização. Na mi-
nha maneira de ler, o livro de Celso Bar-
ros é orientado para e por esse encontro
entre a novidade do pt e a novidade do
pemedebismo do sistema político.

 
Tal como contada por Celso Barros,
é a história de um partido que queria
seguir a trilha clássica das agremiações
social-democratas europeias de cem
anos antes. Um partido popular de mas-
sas que pretendia se construir desde fora
do sistema político, um ineditismo, que,
no caso brasileiro, significa também se
construir fora do Estado, desde a própria
sociedade. Mas o surpreendente sucesso
do projeto na década de 1980 bateu no
muro do capitalismo neoliberal de iní-
cio dos anos 1990. “Quando São Ber-
nardo foi à social-democracia, ela já não
estava mais lá”, diz a frase que sintetiza
a análise de Celso Barros a esse respeito.

 
Tal como interpreto essa encruzilhada
da vida do partido, ocorreu nesse momen-
to uma reorientação radical do projeto
inicial. Assim como o grupo que fundou
o psdb constatou que o nacional-desen-
volvimentismo tinha caducado, também
o pt descobriu ali que o projeto de cons-
truir uma sociedade moderna “do pé para
a cabeça” tinha perdido seu possível las-
tro. Da maneira como vejo, a decisão que
o pt tomou naquele momento foi de reo-
rientar a impressionante organização que
já tinha para tomar o poder desde cima.
Não no sentido tucano de ocupar go-
vernos e, pelo alto, construir um partido.
Mas no sentido de concentrar todas as
suas forças de outsider, de partido de
massas, na eleição presidencial – custas-
se o que custasse essa decisão em termos
de arranjos locais, estaduais e munici-
pais. Foi assim que o pt se tornou o pen-
dant presidencialista do parlamentarismo
sonhado pelo psdb. Foi assim que essa
reorientação tornou inevitável o encon-
tro institucional do pt com seu adversá-
rio histórico, o pemedebismo.

 
Foi assim que também o pt se tornou
o outro partido vanguardista do moder-
nismo democrático, uma posição bas-
tante diferente de suas origens basistas,
de “caixa de ressonância” dos movimen-
tos sociais. Nada mais estranho, por-
tanto, do que Lula e o pt reclamarem
porque a esquerda não tem bancada
congressual suficiente para fazer avan-
çar seu programa. Essa opção foi feita
em 1994 e nunca foi revista. Também a 

opção por um Congresso de maioria
conservadora foi feita ali.

 
Veio para ficar a atual rebelião de tan-
tos partidos e grupos contra a posi-
ção subalterna em relação a psdb e
pt à qual se submeteram durante pelo
menos 20 anos, de 1994 a 2014. Está des-
feita a configuração histórica e política
que permitiu a hegemonia inconteste do
progressismo e, a partir de meados da dé-
cada de 1990, do vanguardismo de psdb
e pt. Grande parte do sistema político
brasileiro não mais se deixa guiar pelo
duo de partidos de pretensões vanguardis-
tas, do qual apenas o pt sobreviveu.

 
Deixou de ser óbvio que o partido
vencedor da eleição presidencial terá as
condições de levar o restante do sistema
político na direção da implementação
de seu programa político, mesmo que se
amolde ao “atraso”. E não apenas porque
“o Congresso é conservador”. Foi o ar-
ranjo vanguardista do Plano Real que se
esgotou, é a ideia de um “partido líder”
que perdeu seu lastro no funcionamento
da política oficial.

 
A situação é mais complicada ainda,
na verdade. Nos governos petistas dos
anos 2000 e 2010, o programa era o da
realização da Constituição de 1988 se-
gundo as aspirações de sindicatos e movi-
mentos sociais dos anos 1990. O programa
incluía todos os experimentos de delibe-
ração e de participação realizados nesses
mesmos anos 1990 e que foram naciona-
lizados a partir dos anos 2000.

 
Um programa político analógico
como esse é claramente insuficiente
nas atuais condições. E voltar ao pacto
dos anos 2000 não é apenas indesejável,
é inviável. Daí Lula ter vencido a elei-
ção de 2022 sem programa, contando
com a fortaleza do eleitorado que ga-
nha até dois salários mínimos e com a
parcela da população que rejeitava Bol-
sonaro antes de qualquer outra coisa.
Também no governo, o programa polí-
tico do pt é até agora bem pouco claro.
Trinta anos depois, uma segunda
encruzilhada se apresenta para o pt.

 
Na primeira, no início da década de
1990, a opção foi trocar o basismo de
sua origem pelo vanguardismo institu-
cional que veio a caracterizar os gover-
nos petistas dez anos depois, a partir de
2003. Agora, com o sistema político se
reorganizando em torno de coalizões
colegiadas de partidos e de grupos, as
opções se dividem entre tentar manter
o vanguardismo, ainda que em novas
condições, ou aceitar os termos de um
novo pacto e de um novo programa po-
lítico compartilhado. Ou, ainda, ver o
pt se bifurcar, cada ala mantendo uma
das duas posições possíveis. O que im-
porta é que a opção que o partido fará
até 2026 decidirá em boa medida os
rumos da democracia no país.

PIAUI

 

 

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