Oito anos após o rompimento
da barragem da Samarco em Mariana,
os danos ambientais e sociais persistem
P O R FA B Í O L A M E N D O N Ç A
Com a voz embargada, o pescador Alexandre Ribeiro fala da difícil
realidade que vive em Aracruz, no Espírito Santo, município a 80
quilômetros da capital Vitória e a mais de 500 quilômetros de Mariana,
em Minas Gerais. A cidade histórica mineira foi devastada pelo
rompimento da barragem de Fundão, em 2015, sob a gestão da Samarco
Mineração, empresa controlada pelas gigantes Vale e BHP Billiton. O
saldo do desastre não se resume, porém, aos 19 mortos, trabalhadores
soterrados pela lama tóxica, o que já seria demasiadamente grave. Ainda
hoje, o episódio afeta milhares de pessoas que perderam sua fonte de
renda e tiveram a saúde abalada, sem falar dos danos ambientais
irreversíveis que se expandem a cada dia e atingem toda a região cortada
pelo Rio Doce e parte do litoral capixaba.
“A pesca está parada. Temos muitos pescadores doentes, com depressão, que estavam acostumados com aquela rotina. Antes de o sol nascer, a gente já estava saindo para navegar. De uma hora para outra, acabou tudo”, relembra Ribeiro, explicando que, desde o rompimento da barragem, o Ministério Público Federal proibiu a pesca, devido à contaminação por metais pesados ao longo da calha do rio e do litoral do Espírito Santo.
Uma pesquisa realizada pela Univer-
sidade Federal do Espírito Santo revela
um elevado índice de contaminação da
biota de toda a região, mesmo passados
oito anos do acidente. Segundo o estudo,
os mais de 60 milhões de metros cúbi-
cos de rejeitos de mineração que foram
liberados com o rompimento da barra-
gem provocaram ao longo dos anos a di-
minuição da população de algumas espé-
cies aquáticas e o surgimento de outras,
além de devastação irreversível de parte
dos manguezais. Formou-se ainda uma
grande área lamosa que agora integra a
composição geológica da foz do rio. O es-
tudo consta no 4º Relatório Anual do Pro-
grama de Monitoramento da Biodiversida-
de Aquática da Área Ambiental I – Porção
Capixaba do Rio Doce e Região Marinha
e Costeira Adjacente. O trabalho contou
com contribuições de cerca de 500 pes-
quisadores de mais de 30 instituições.
Foram identificados pelo menos 295
impactos ambientais associados à con-
taminação dos metais pesados, sendo
96 concentrados no ambiente dulcícola
(rios), 130 no ambiente marinho e 69 no
ambiente costeiro. De acordo com o rela-
tório, são evidentes as modificações nas
comunidades aquáticas em decorrên-
cia do impacto na qualidade ambiental
a coluna d’água, sequela dos rejeitos li-
berados no rompimento da Barragem do
Fundão. “De forma geral, destacaram-
-se os impactos negativos causados pe-
los metais particulados Al (alumínio), Fe
(ferro), Mn (manganês), Ni (níquel) e Cr
(cromo) sobre as comunidades aquáticas
nos setores mais diretamente influencia-
dos pelo aporte do Rio Doce, sendo as co-
munidades bentônicas tanto do ambien-
te dulcícola quanto do ambiente marinho
as mais afetadas negativamente por es-
ses metais”, diz um trecho da pesquisa.
“Depois do rompimento da barra-
gem, você tem um impacto significativo
no ambiente aquático por dois motivos. O
primeiro é pelo material em si, carregado
de metais que causam danos. O segundo é
pelo efeito de arraste, aquele fluxo de re-
jeito descendo o rio com toda força”, ex-
plica Frederico Drumond, coordenador
da Câmara Técnica de Biodiversidade
do Comitê Interfederativo, criado des-
de o acidente para analisar e reparar os
danos causados pela tragédia. Drumond
também é analista ambiental do Institu-
to Chico Mendes de Conservação da Bio-
diversidade, o ICMBio, e acompanhou a
realização da pesquisa desenvolvida pela
Ufes. Ele explica que a força dos rejeitos
escavou o fundo do rio, levantando ou-
tros contaminantes, além dos próprios
rejeitos em si, o que potencializou a des-
truição da vida aquática. “Esse fenômeno
não ficou paralisado. Todo o rejeito que
foi carregado e esse outro material levan-
tado do fundo do rio estão descendo para
o mar, mas não de uma vez. O material fi-
ca depositado, depois se move novamen-
te. A cada evento de chuva, com alta nas
cheias, ele é redisponibilizado, tendo um
novo ciclo de impacto a cada elevação do
nível das águas. No ambiente marinho, a
cada grande evento de maré, uma ressa-
ca, quando as ondas estão muito fortes,
vemos o mesmo efeito.”
Para Drumond, as sequelas do desastre
causado pela Samarco têm um momento
agudo, o rompimento da barragem, e um
crônico, que são os impactos permanen-
tes. “A cada mexida, o rejeito suspendido
traz novas consequências, que vão des-
de a piora da qualidade da água ou do se-
dimento, até os efeitos na biodiversida-
de. Várias espécies animais apresentam
alto teor de metais. Parece que no rio a
água está mais contaminada, enquanto
no mar o maior problema é o sedimento”,
diz. “Essa presença de metais é transferi-
da para os seres vivos que se alimentam
desse sedimento e dessa água. Então vo-
cê tem uma piora da qualidade do siste-
ma ambiental como um todo.”
Tão preocupante quanto os danos am-
bientais é o impacto social que o desas-
tre de Mariana tem causado na vida das
pessoas. Assim como Alexandre Ribeiro,
milhares de outros pescadores, pequenos
agricultores e comerciantes percorrem
uma verdadeira via-crúcis para ser reco-
nhecidos pela Fundação Renova, respon-
sável pela reparação às vítimas. Muitos,
até hoje, não tiveram direito a indenização
ou auxílio financeiro pelos prejuízos sofri-
dos. “Essa tragédia impacta todo um sis-
tema por afetar a biota, matar o rio e cau-
sar, para as populações mais vulneráveis,
uma série de transtornos no modo de vi-
da. E o mais sério é que foi feito um termo
de ajuste de conduta com toda uma buro-
cracia que dificulta a reparação dos atin-
gidos. Se você não estiver naquela margem
definida pelo termo, que é bem estreita,
não é reconhecido. Os pequenos agricul-
tores, que não estão bem do lado do Rio
Doce, não são reconhecidos, mas eles ti-
veram muitos prejuízos. Foram impedi-
dos, por exemplo, de fazer irrigação por-
que a água estava contaminada. Perderam
colheitas, sofreram danos”, ressalta a pes-
quisadora Marta Zorzal, professora do De-
partamento de Ciências Sociais da Ufes.
Juliana Stein Nicoli, coordenadora es-
tadual do Movimento dos Atingidos por
Barragem no Espírito Santo, acrescen-
ta que a maioria dos atingidos nem se-
quer conseguiu se cadastrar para plei-
tear indenização. “Dos cadastrados, me-
nos da metade obteve alguma reparação
e, entre os que conseguiram, grande par-
te ganhou valores muito aquém do que
deveria ter recebido”, explica. Segundo
Nicoli, está em curso uma nova repactu-
ação com a Fundação Renova para am-
pliar o programa de auxílio emergencial.
O MAB, que vem mobilizando os atingi-
dos, também defende a implantação de
um plano de monitoramento da saúde,
para dar assistência ao grande número
de adoecidos por conta dos efeitos cau-
sados pelo desastre de Mariana.
A Samarco informou que, até junho
deste ano, indenizou mais de 423,7 mil
pessoas, com a destinação de 30,7 bi-
lhões de reais para as ações executadas
pela Fundação Renova. Como forma de
reparar os danos ambientais, a entidade
implementou o Programa de Monitora-
mento Quali-quantitativo Sistemático
de Água e Sedimento, cujos dados ana-
lisados apontam para a progressiva me-
lhora das condições ambientais após o
rompimento, indo na contramão do que
concluiu a pesquisa da Ufes. A fundação
vê com cautela o relatório dos pesquisa-
dores e defende que os dados devem ser
integrados a outros estudos, “no senti-
do de suprir as lacunas do conhecimento
que não permitem traduzir nos resulta-
dos encontrados a inequívoca associação
causal com o rompimento da barragem”.
E conclui: “É importante destacar que,
mesmo havendo indícios de rejeitos da
Barragem do Fundão nos ambientes es-
tudados, os elementos constituintes des-
se material são os mesmos encontrados
nos sedimentos naturais da bacia do Rio
Doce, existindo similaridades geoquími-
cas e mineralógicas comprovadas nos di-
versos estudos pré e pós-rompimento,
por isso é pouco provável que apresen-
tem qualquer risco ecológico”
CARTA CAPITAL
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