Tatiane de Assis |
Com uma máscara de onça e um manto estampado com as formas e cores do felino, o artista visual Denilson Baniwa percorreu os corredores da 33ª Bienal de São Paulo, em 2018, até se aproximar de um núcleo com fotos dos indígenas selk’nam, da Patagônia, entre outras obras. Eram imagens feitas no início do século XX pelo padre e etnólogo austríaco Martin Gusinde, e não havia na exposição nenhuma referência ao genocídio sofrido pelos selk’nam. Em repúdio à omissão, Denilson se postou perto das fotos, pegou um exemplar do livro Breve História da Arte, da britânica Susie Hodge, e começou a desfolhá-lo. Enquanto fazia isso, declamava um manifesto:
Breve história da arte.
Roubo, roubo, roubo, roubo, roubo.
Arte branca.
Roubo, roubo.
Os índios não pertencem ao passado.
Eles não têm que estar presos a imagens
que brancos construíram para os índios.
Estamos livres, livres.
Apesar do roubo, da violência e da
história da arte.
Chega de ter branco pegando arte in-
dígena e transformando em simulacros!
O protesto fazia parte de uma per-
formance que Denilson chamou de
Pajé-Onça Hackeando a 33ª Bienal de
Artes de São Paulo. Na cultura do povo
Baniwa, ao qual pertence o artista, pa-
jé-onça é o título máximo dado a um
pajé. Ele não pediu autorização à Bie-
nal para fazer a performance, mas tam-
bém não foi impedido de realizá-la.
Parecia um ato de rebeldia isolado.
O mainstream das artes plásticas no
Brasil ainda não percebera que estava
ocorrendo no país um “levante” artístico
de pessoas de origem indígena, como o
próprio Denilson Baniwa, Jaider Esbell,
Daiara Tukano, Arissana Pataxó, Glicé-
ria Tupinambá, Joseca Yanomami e o
coletivo Movimento dos Artistas Huni
Kuin (Mahku).
O levante não começou naquele ano
de 2018. Duas mostras inauguradas cin-
co anos antes, em capitais bem distantes,
foram pioneiras na exibição das novas
artes indígenas. Entre 11 e 19 de abril de
2013, aconteceu em Boa Vista, Roraima,
a exposição Primeiro Encontro de Todos
os Povos, organizada por Jaider Esbell,
com artistas de onze povos originários,
no Espaço de Cultura e Arte União Ope-
rária. “Vamos discutir de que forma nós
podemos e devemos incorporar outras
linguagens e expressões às manifestações
culturais de nosso povo”, disse Esbell na
época. “O artista indígena que queira se
expressar em outras formas, por exemplo,
nas artes plásticas, não deve achar ou per-
mitir que qualquer pessoa faça julga-
mento de que isso é errado ou que
diminui a questão da cultura.”
Em junho de 2013, foi aberta em
Belo Horizonte a mostra ¡Mira! Artes
Visuais Contemporâneas dos Povos Indí-
genas, com curadoria da pesquisadora
mineira branca Maria Inês de Almeida,
então professora da Faculdade de Le-
tras da Universidade Federal de Minas
Gerais (ufmg). “Usualmente, espaços
públicos e privados de exposição não
eram abertos aos povos indígenas para
além da etnografia ou do folclore, pois
suas artes visuais eram antes tratadas
como artesanato”, diz ela. A mostra
apresentou 125 trabalhos de 54 artistas
do Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador
e Peru. Curiosamente, ou sintomatica-
mente, a iniciativa não foi gestada na
Escola de Belas Artes, mas na Faculda-
de de Letras, a partir do Núcleo de Pes-
quisa Transdisciplinar Literaterras,
coordenado por Almeida.
Outras mostras aconteceram nos anos
seguintes, indicando a força crescente dos
artistas originários. Em outubro de 2020,
foi inaugurada na Pinacoteca de São
Paulo a exposição Véxoa: Nós Sabemos,
com trabalhos de 24 artistas e coletivos,
e curadoria de Naine Terena, artista e
pesquisadora de origem indígena – fato
inédito na instituição. Também foi a
primeira mostra dessa natureza feita
pela Pinacoteca, fundada há mais de
um século.
Em 2021, finalmente, a Bienal de
São Paulo abriu os olhos para o levante.
A maior vitrine internacional da arte
brasileira decidiu convidar nove artistas
indígenas – cinco brasileiros e quatro
estrangeiros – para a 34ª edição. Embo-
ra representassem apenas 10% do total
de nomes do evento, eles nunca haviam
sido tantos em toda a história da Bienal,
criada em 1951. Jaider Esbell, Daiara
Tukano, Sueli Maxakali, úyra e Gusta-
vo Caboco (do povo Wapichana) foram
os convidados brasileiros. Os estrangei-
ros foram Abel Rodríguez (ou Don
Abel, como é mais conhecido, do povo
Nonuya, na Amazônia colombiana), Se-
bastián Calfuqueo Aliste (do povo Ma-
puche, no Chile), Pia Arke (descendente
do povo Kalaaleq, da Groenlândia) e
Jaune Quick-to-See Smith (originária
de uma federação que reúne os povos
Salish-Kootenai e Shoshone-Bannocke
Métis-Cree, da América do Norte).
Os novos artistas indígenas traba-
lham com a pintura, a escultura, a fo-
tografia, o vídeo e a performance, sem
abrir mão de técnicas tradicionais de
seus povos, como a pintura corporal, a
cestaria e a arte plumária. Nas obras,
mesclam suas cosmologias com ques-
tões políticas urgentes. “Ninguém está
aqui em busca de fama, de virar Rome-
ro Britto”, diz Daiara Tukano à piauí.
“Queremos contar uma história dife-
rente sobre os povos originários. Não
cabe mais aos outros, mas sim a nós,
indígenas, escrevermos e desenharmos
quem somos.” Ela ressalta que os artis-
tas do levante são também educadores
e ativistas. “Estamos entrando nesse
campo e demarcando território, por-
que sabemos que as artes são usadas
para evidenciar a violência do invasor”,
diz ela. “Não chegamos de repente, nos
fazendo de espertos dentro do siste-
mão. É o sistema que viu só agora que
a gente não é idiota.”
Jaider Esbell, que foi companheiro de
Daiara, também não se expressava por
meias palavras. Na época da 34ª Bienal,
ele declarou a Artur Tavares, da revista
digital Elástica: “Não estamos satisfeitos.
Porque, primeiro, a Bienal disse que não
queria índio nenhum. Agora que está
saindo na mídia bonitinha que botou
não sei quantos índios, isso não é verda-
de, precisamos esclarecer. E tem mais.
Se já estão se arvorando disso, saindo
de bonzinhos, isso não está certo. Por-
que isso tem um custo, e quem está
pagando essa conta basicamente sou
eu – e estou falando de dinheiro mes-
mo. Porque a Bienal paga um cachê de
12 mil reais, pega sua obra e te esque-
ce. E aí, em se tratando da arte indíge-
na contemporânea, não basta. Porque,
quando você pega uma obra do artista,
pega toda a história dele muito antes
da colônia.”
Por causa de sua atividade pioneira e
a campanha combativa que fazia, mas
também da tendência do mercado de
arte de eleger líderes para movimentos,
Esbell se tornou o principal nome do
levante de artistas originários. Com a
abertura da Bienal, em setembro de
2021, ele logo pôs de lado o título ofi-
cial da mostra, Faz Escuro Mas Eu
Canto (a partir de um verso do poeta
amazonense Thiago de Mello), adotando
outro epíteto para o evento, em suas de-
clarações públicas: “A Bienal dos Ín-
dios.” Seus trabalhos ainda estavam
sendo exibidos na mostra internacional
quando Esbell se suicidou, em 2 de no-
vembro de 2021, em uma pousada do
litoral paulista. Tinha 42 anos e estava
no auge de seu prestígio artístico.
Denilson Baniwa conta que, certo
dia, ele, Esbell e Daiara brinca-
ram de imaginar quais personali-
dades da Semana de Arte Moderna de
1922 os três seriam. “O Jaider, por ser
neto de Macunaíma, seria o Mário de
Andrade. Daiara seria a Tarsila. E eu,
por ser cheio de piadas, o Oswald de An-
drade.” Reivindicar o título de “neto de
Macunaíma” era um importante tópico
para Esbell. Ele sempre lembrava que o
personagem de Mário de Andrade vi-
nha de uma releitura de um mito dos
indígenas que vivem perto do Monte
Roraima, entre eles os macuxis, povo de
Esbell. Contra a fabulação do escritor,
que tachou Macunaíma de “herói sem
nenhum caráter”, o artista visual defen-
dia a grandeza da entidade mitológica,
responsável pela criação das plantas co-
mestíveis. E aconselhava que o nome do
mito fosse grafado com “k” e tivesse a
seguinte pronúncia: Makunaímã.
Esbell nasceu em 1979, no municí-
pio de Normandia, em Roraima. Ainda
jovem, se mudou para Boa Vista e tra-
balhou como eletricista concursado na
Eletrobras. Também estudou geografia
na Universidade Federal de Roraima
(ufrr), enquanto se dedicava às artes
plásticas e à literatura. Em 2012, lançou
seu primeiro livro, Terreiro de Makunai-
ma: Mitos, Lendas e Estórias em Vivên-
cias, sobre a cultura macuxi. No ano
seguinte, abriu uma galeria de artes
indígenas no bairro de Paraviana, em
Boa Vista, e organizou o Primeiro En-
contro de Todos os Povos, que o projetou
para além de Roraima. Em 2016, foi
indicado ao Prêmio Pipa online, láurea
importante para talentos que estão en-
trando no circuito de artes. Pela primeira
vez, o prêmio agraciou artistas indíge-
nas: Esbell ficou em primeiro lugar e
Arissana Pataxó, em segundo.
A consagração chegou em 2021,
quando Esbell foi um dos destaques
da 34ª Bienal. Ele apresentou quatro
projetos artísticos no evento, entre eles,
A Guerra dos Kanaimés (série produ-
zida de 2019 a 2020), hoje um de seus
trabalhos mais celebrados, composto
por onze telas em grande formato e
de efeito hipnótico, que fisgam o olhar
do espectador como um peixe em uma
rede. Sob um fundo negro, ele mescla
formas figurativas e abstratas, em pa-
drões variados e cores vibrantes. Na épo-
ca, Esbell explicou quem são os kanaimés,
entidades da cosmogonia macuxi, em
geral associadas a acontecimentos fatídi-
cos: “Eles são muito temidos, exatamen-
te por praticar uma ideia de justiça para
nossa sociedade (que é bem diferente de
uma justiça branca, ocidental).” O artis-
ta relacionava a ação dos kanaimés a si-
tuações de conflito vividas por seu povo,
como a demarcação morosa da Terra
Indígena Raposa Serra do Sol. O proces-
so foi iniciado em 1977, mas a homolo-
gação do lugar onde hoje vivem os
povos Macuxi, Taurepang, Ingarikó,
Patamona e Wapichana ocorreu so-
mente 28 anos depois, em 2005, devido
a embates com agricultores, garimpei-
ros e o próprio estado de Roraima.
O curador italiano Jacopo Crivelli,
que esteve à frente da equipe curatorial
da 34ª Bienal, diz que, além da produ-
ção artística “riquíssima” de Esbell, cha-
mou sua atenção a personalidade do
artista e o seu papel de articulador e fo-
mentador cultural. Crivelli ficou surpre-
so, em especial, com a habilidade de
Esbell para lidar com instituições artísti-
cas já fortemente consolidadas, como a
própria Bienal. “Mesmo eu sendo um
curador com vários anos de experiência,
aprendi muito com o conhecimento
dele no campo das relações institucio-
nais”, diz à piauí. “Por mais que nós,
curadores, critiquemos o sistema da arte,
muitas vezes não rompemos com ele e
reproduzimos o modus operandi. O Jai-
der, não: ele colocava as suas opiniões de
forma que fossem ouvidas e respeitadas.”
Crivelli traz à conversa uma sigla:
aic. “Não era um movimento, mas
uma provocação criada por Jaider: o
sistema da Arte Indígena Contemporâ-
nea. Uma forma de ele dizer que as
culturas dos povos originários pertencem
ao presente, e não ao passado.” A aic
também era uma estratégia para retirar
a produção de artistas originários de
categorias preconceituosas, como arte
primitiva, naïf ou étnica. “A arte indíge-
na contemporânea vem juntamente
com tudo o que há de tecnologia”, es-
creveu Esbell, na revista de artes Se-
LecT, em junho de 2018. No mesmo
texto, ressaltou a dimensão política e
cosmopolítica da produção indígena.
“Fazemos política de resistência decla-
rada, com a arte em contexto contem-
porâneo aberto. Em contexto fechado,
ressignificamos nossas estruturas cultu-
rais e sociais com arte e espiritualidade
em um mútuo alimentar de energias
para compor a grande urgência de sus-
tentar o céu acima de nossas cabeças.”
Em um texto publicado em seu blog,
em 16 de abril de 2020, ele aprofundou
a definição da Arte Indígena Contem-
porânea, ao dizer que era dotada da “ca-
pacidade literal de interagir com a ideia
de além”. Escreveu: “Passado para nós
nunca vai existir, assim como a ideia de
futuro ou outro tempo, senão o eterno.
O além para nós é aqui mesmo, diferen-
te. O além para o mundo não indígena
é algo realmente além. Eu sinto muito,
mas quem não está no círculo nunca vai
poder acessar. Respeitar é o que faz fa-
zer parte, parte de nossa arte. A gente só
está nesse ‘palco da Arte’ para falar da
existência de nossos sistemas. Eles exis-
tem independente de tudo.”
Durante a montagem dos trabalhos
da 34ª Bienal, no Pavilhão Ciccillo Ma-
tarazzo, no Parque do Ibirapuera, ele e
Daiara Tukano convidavam com entu-
siasmo o público para ver também ou-
tra exposição. Era Moquém_Surarî:
Arte Indígena Contemporânea, que reunia
piauí_abril 61
34 artistas e coletivos, com curadoria
do próprio Esbell, no Museu de Arte
Moderna de São Paulo (mam), distante
apenas três minutos a pé do pavilhão.
“Essa exposição é um desdobramento
da minha participação na Bienal”, ex-
plicou ele, na época, à Veja São Paulo.
“Inicialmente, me chamaram para pen-
sar uma individual só minha no mam,
mas fiz uma contraproposta, e defendi
que fosse uma mostra coletiva.” Esbell
não gostava de andar sozinho.
Antes da Bienal, Esbell apresentou
em São Paulo a mostra individual Apre-
sentação: Ruku, na galeria Millan, uma
das principais da capital. As relações
dele com a galeria foram bastante atípi-
cas, o que é uma constante entre os
artistas indígenas. Entrevistado sobre a
exposição, o artista disse: “Eu não sou
representado por essa galeria, o que es-
tamos fazendo aqui é uma experiên-
cia.” O galerista André Millan conta
que queria representá-lo, mas Esbell
não quis. “Ele preferia ter autonomia
total sobre tudo que fazia, e vendia suas
obras pelo Instagram, na galeria dele”,
diz. “O Jaider era muito inteligente.
Perspicaz. Era duro, mas colocava as
pessoas no bolso.”
Para Millan, o trabalho de Esbell traz
mais perguntas que respostas. “Ele insti-
ga, você quer saber como foi feito, se
aquilo é uma lenda, se é figurativo, se é
abstrato. É um trabalho extremamente
provocativo e belíssimo. Acho que arte
não foi feita para ser bonita ou ser feia,
mas no caso dele, o trabalho é muito bo-
nito.” O galerista ressalta que o objetivo
de Esbell não era só fazer arte: era ajudar
o seu povo, comprando terras. “Era meio
um projeto de governo. Eu mesmo não
conheço direito esse projeto, não conse-
gui alcançar. Ele sempre dizia: ‘Eu tô
aqui comendo com você, mas quero que
você também vá lá comer com meu
povo, participar de uma fogueira.’”
O ano de 2021 foi tão intenso para o
artista, que talvez se possa dizer que,
nas artes plásticas, o ano foi de Jaider
Esbell. Além de participar da 34ª Bie-
nal, fazer a curadoria da exposição Mo-
quém_Surarî e apresentar a individual
Introdução: Ruku, ele integrou as mos-
tras Frestas – Trienal de Artes, no Sesc
de Sorocaba, no interior de São Paulo,
e Brasilidade Pós-Modernismo, no Cen-
tro Cultural Banco do Brasil, no Rio.
Também exibiu trabalhos na exposição
Véxoa: Nós Sabemos, na Pinacoteca de
São Paulo. Em outubro daquele ano, o
Centro Georges Pompidou, em Paris,
adquiriu dois trabalhos dele, Carta ao
Velho Mundo e Na Terra Sem Males,
por indicação de Paulo Miyada, recém-
empossado curador de arte latino-ame-
ricana da instituição francesa.
No início de 2022, poucos meses de-
pois de sua morte, Esbell foi anunciado
como um dos nomes da mostra princi-
pal da Bienal de Veneza. A curadora
italiana Cecilia Alemani optou por
apresentar as pinturas fulgurantes da
série Transmakunaimî: O Buraco É
Mais Embaixo (produzida entre 2017 e
2018), em que ele reforça a dimensão
cosmopolítica do mito de Macunaíma.
“Mesmo quando suas imagens beiram
a abstração total, as pinturas de Esbell
expressam a continuidade e o poder da
natureza como resposta às explorações
da sociedade hegemônica”, escreveu o
crítico britânico Ian Wallace no catálo-
go da Bienal italiana.
Tudo isso tornou os trabalhos de Es-
bell bastante cobiçados pelo mercado de
artes. Seu espólio é gerido pela Galeria
Jaider Esbell de Arte Indígena Contem-
porânea, em Boa Vista, que tem a mãe
dele como diretora honorária e um ami-
go, Parmênio Citó, professor da Univer-
sidade Federal de Roraima, como
con selheiro. A galeria é parceira da
Millan desde 2021, mas disse que “atual-
mente essa relação está sendo reconfigu-
rada, no contexto da estruturação do
espólio”. A galeria Millan não informa
os valores atuais das obras de Esbell, mas
estima-se que uma pintura de tamanho
médio chegue a ser comercializada atu-
almente por cerca de 200 mil dólares
(aproximadamente 1 milhão de reais).
Foi por intermédio das redes sociais
que Denilson Baniwa e Esbell se
conheceram. O primeiro contato
presencial aconteceu no Rio de Janeiro,
em 2017, em um encontro de escritores
promovido pelo ativista Daniel Mundu-
ruku. Os dois travaram amizade e, no
final de 2018, passaram uma temporada
em São Paulo, durante a qual arregi-
mentaram curadores, críticos e galeris-
tas para a causa dos artistas indígenas.
“Muita gente que hoje me abraça, nessa
época me virava a cara”, diz Denilson.
O artista de 38 anos descreve assim
sua relação com Esbell, cinco anos mais
velho. “A gente concordava em muita
coisa, mas brigava muito também. Em
2018, quando eu invadi a Bienal, para a
performance Pajé-Onça Hackeando a
33ª Bienal, o Jaider estava no Parque
Ibirapuera, não quis participar e foi dor-
mir na grama”, ele conta. Denilson
demarca a principal diferença entre
seu comportamento e o de Esbell: o
modo de lidar com os contatos pessoais.
“O Jaider conversava com muita gente
que eu não converso ainda hoje.”
A distância entre os dois se ampliou
durante a 34ª Bienal. Entre os cinco ar-
tistas brasileiros de origem indígena con-
vidados para o evento, não estava o
nome de Denilson. “Eu não fui, e nem
aceitaria um convite para essa exposição,
que nasceu como um grande organismo
de visibilidade para jovens artistas no
Brasil e virou uma feira de arte.” Para
ele, o “grande gesto” de Esbell durante o
evento não foram as obras mostradas na
Bienal, mas sim a exposição Moquém_
Surarî, no mam.
Após a morte de Esbell, em novem-
bro de 2021, Denilson escreveu uma
carta, impressa e apresentada na expo-
sição Máscaras: Fetiches e Fantasma-
gorias, inaugurada no mesmo mês,
o Paço das Artes, em São Paulo. Dizia
o seguinte:
Jaider chegou a esse lugar, e o que
para os brancos é considerado sucesso
(ou a melhor fase de sua carreira, como
li em matérias de jornais), para nós dois
esse fake-sucesso-branco foi dia a dia
tornando-se um peso. Infelizmente ficou
pesado demais para ele, mas poderia ter
nsido para qualquer um de nós, artistas
indígenas. A cobrança de respostas para
salvar a arte, a pressão por não falhar em
nossa caminhada ou com nossos paren-
tes indígenas, a ininterrupta fome de
quem nos vê como uma novidade devo-
rável no mercado, tudo isso que é consi-
derado sucesso e o auge da carreira é um
muro que nos cerca e nos tira do que é
mais importante: uma vida saudável.
Denilson de Oliveira Monteiro é o
nome do registro civil do artista,
que nasceu em 1984, na aldeia
Dari, no município de Barcelos, no
Amazonas. Denilson Baniwa é como o
chamam desde os 14 anos, quando co-
meçou a atuar no movimento indíge-
na. “Minha família é de um território
tradicional Baniwa, o Aiairi”, diz ele.
“A gente desceu para este lugar, Barce-
los, que foi construído por meio da es-
cravidão de povos indígenas.”
Quando criança, foi matriculado em
regime de internato na Escola São
Francisco de Sales, em Barcelos. Ficou
um ano nesse colégio católico, um pe-
ríodo conturbado segundo ele. “Os li-
vros e a música foram meu refúgio.”
Em 1999 participou de uma atividade
importante para sua futura trajetória:
um curso de comunicação e multi-
meios, promovido pela usp, o Instituto
Socioambiental e a Federação das Or-
ganizações Indígenas do Rio Negro,
entidade na qual atuava um tio seu,
Benjamin Baniwa. O curso, realizado
em São Gabriel da Cachoeira (a cerca
de 470 km de Barcelos), incluiu a pro-
dução de um jornal e de programas de
rádio. Em 2000, aos 16 anos, Denilson
foi morar com uma jovem baniwa, e
logo tiveram um filho.
Quatro anos depois, ele se mudou,
sozinho, para Manaus, a fim de traba-
lhar na Coordenação das Organiza-
ções Indígenas da Amazônia Brasileira
(Coiab). Também ingressou no curso de
tecnologia em processamento de dados,
na Universidade do Estado do Amazo-
nas, que não chegou a concluir. Partici-
pou de duas bandas: uma de covers do
grupo de heavy metal Black Sabbath,
outra de rap. “Na de covers, em Ma-
naus, eu tocava guitarra, era uma coisa
entre amigos. No grupo de rap, eu era
vocal, e os outros integrantes eram meus
primos.” Ele também gostava, desde a
adolescência, do trabalho em rádio
O ritmo intenso de atividades na ca-
pital manauara acabou por distanciá-lo
da esposa e do filho. O casal se separou
de forma amigável. Alguns anos mais
tarde, Denilson se casou com uma co-
lega de trabalho sem ascendência indí-
gena direta, com quem teria dois filhos.
Em 2013, o casal se mudou para Nite-
rói. Denilson decidiu voltar à universi-
dade e optou pelo curso de publicidade
na puc-rj, que não chegou a terminar.
Em Niterói, criou a primeira rádio indí-
gena na internet, a Yandê, com a jorna-
lista Renata Machado Tupinambá e o
comunicador Anápuáka Muniz Tupi-
nambá Hãhãhãe. De programação va-
riada, a Yandê, que ainda existe, chegou
a transmitir músicas feitas em mais de
190 idiomas originários.
Além de atuar na rádio, Denilson
trabalhou em uma agência de comuni-
cação como designer gráfico. Um dia,
descontente com o emprego, pediu de-
missão e resolveu voltar para o Amazo-
nas. “Eu estava bem desmotivado, não
me reconhecia”, diz. Um convite, po-
rém, o fez mudar de planos. Ele foi cha-
mado para participar da exposição Dja
Guata Porã – Rio de Janeiro Indígena,
no Museu de Arte do Rio (mar), inau-
gurada em maio de 2017. “Primeiro, o
Denilson veio para pensar as instala-
ções sonoras, comissionadas à Rádio Yan-
dê. Depois, desenvolveu um trabalho
artístico, a obra Grande-Trovão-Cobra-
Canoa. Por fim, criou, com a designer
Priscila Gonzaga, o material gráfico da
mostra”, lembra Clarissa Diniz, uma das
curadoras da exposição.
Pamëri Pirõ Yuhkësë [Grande-Trovão-
Cobra-Canoa] trata de um mito parti-
lhado por diferentes povos amazônicos,
segundo o qual o mundo foi gestado
no ventre de uma gigantesca serpente.
A pintura da cobra, com quase 60 me-
tros de comprimento, percorria grande
parte do espaço expositivo, apresentan-
do uma linha do tempo das populações
originárias no território brasileiro por
meio de grafismos, vídeos, fotografias e
recortes de jornais. O trabalho projetou
o nome de Denilson e o estimulou a se
enveredar pelas artes plásticas.
Seguiram-se várias exposições no
Rio e em São Paulo, embora ele não
fizesse parte de nenhuma galeria e ven-
desse os trabalhos pessoalmente ou pela
internet. “Até pouco tempo, quem man-
teve nossa vida de mimos foram os co-
lecionadores, sobretudo um de São
Paulo. Foi natural. Algumas pessoas se
interessaram pelo meu trabalho e foram
comprando”, conta o artista. Em 2022,
ele passou a ser representado pela pres-
tigiosa A Gentil Carioca, à qual estão
ligados alguns nomes significativos da
arte brasileira atual, como Maxwell
Alexandre, Renata Lucas, Laura Lima
e Marcela Cantuária.
Na tarde de 11 de novembro passado,
vestido de bermuda jeans e camiseta pre-
ta com o nome da banda punk Cólera,
Denilson finalizava no sobrado da Gen-
til Carioca – um belo exemplar da arqui-
tetura do Centro do Rio no início do
século xix –, a montagem dos trabalhos
da exposição Frontera, que seria inaugu-
rada no dia seguinte. O tema do desci-
mento dominava a mostra, com treze
telas e cinco esculturas. A palavra “des-
cimento” é utilizada nos livros de histó-
ria para definir as violentas expedições
de arregimentação e escravização de
indígenas, ocorridas a partir do século
xvii – e que, de fato, nunca cessaram. As
obras faziam referência, mais especifica
mente, ao trabalho servil dos indígenas
na extração de borracha e na comercia-
lização de piaçava e peixes ornamentais.
Barcelos, a cidade natal de Denilson, é
um dos polos do comércio de peixes or-
namentais, que o pai do artista, Delmo
de Almeida Monteiro, costumava pescar
e vender, recebendo na época cerca de
1,5 real (em valores corrigidos) por 1 mil
peixes entregues.
Para a exposição, Denilson trouxe da
aldeia de Canafé, na região de Barcelos,
cinco esculturas com fibra da piaçava, o
nome popular de dois tipos de palmeira.
As peças longilíneas lembram as obras
do artista baiano Mestre Didi (1917-
2013). “A diferença é que essas são feitas
pelos povos indígenas do Rio Negro há
mais de dois mil anos. Fazem parte do
cotidiano das comunidades daquela re-
gião, e não só dos baniwas, e são vistas
no contexto de ensinamentos e histó-
rias”, comentou o artista.
As telas figurativas mostravam mulhe-
res, homens e crianças indígenas. Na
pintura Ocupação dos Sonhos (2022),
grafismos à maneira de petróglifos – ins-
crições rupestres – povoam um fundo
azul e se precipitam para o primeiro pla-
no, no qual se vê uma garota de cabelos
longos lendo um livro, Ideias para Adiar
o Fim do Mundo, de Ailton Krenak. “Eu
tinha esse livro sempre à mão, como uma
espécie de missionário, para presentear
as pessoas”, recorda Denilson. “Eu falava
para elas: ‘Se você quer entender mais
como a gente pensa, vê isso aqui.’”
Em Conexões (2022), também mos-
trada na exposição Frontera, vê-se um
rapaz com um aparelho de rádio no
ombro e, ao fundo, mais imagens ru-
pestres. Em letras brancas, no canto
esquerdo do quadro, aparece a expres-
são on line. Como em outras telas,
Denilson reforça a relação das comuni-
dades originárias com instrumentos
contemporâneos, numa atitude contra
o engessamento temporal dessas culturas.
É como se ele dissesse ao espectador:
“Sim, indígena tem rádio, televisão, ce-
lular. Por que a surpresa?”
No térreo da galeria, estava a pintura
Época de Pesca e de Abrir as Roças (2022),
de 3,4 metros de altura por 3,9 metros de
largura, formada por seis telas ajustadas
umas ao lado das outras. Sobre o fundo
dourado, navegam desenhos de peixes
ornamentais recortados de livros, entre-
meados por figuras de animais em pre-
to, como uma tartaruga ou uma cobra,
tudo construído à maneira dos petrógli-
fos encontrados na região do Rio Negro,
que banha Barcelos.
As obras de Denilson apresentadas
na exposição no Rio lembram, numa
primeira mirada, os trabalhos do afro-
americano Jean-Michel Basquiat (1960-
1988). Mas ele diz: “Se for para pensar
em uma referência, acho que olhei
mais para o Cy Twombly.” O pintor nor-
te-americano Cy Twombly (1928-2011)
ficou conhecido por suas telas abstratas,
cobertas por caligrafias, formando
composições visuais carregadas de velo-
cidade e certa violência. “Convivem no
trabalho de Denilson uma camada,
com mais cara de pintura e outra, mais
gráfica”, diz a curadora branca Clarissa
Diniz, que assinou o texto de apresen-
tação da mostra na Gentil Carioca.
“Mas essa leitura da forma não pode se
dar de forma isolada, como se fosse um
campo autônomo, como quer a arte
moderna. Denilson é um ativista, e essa
leitura dita formal anda junto, colada,
com as estratégias de negociação e co-
municação que o artista utiliza, inclu-
sive ao fazer seus trabalhos adentrarem
uma galeria.” Alguns trabalhos estão
em processo de aquisição pelo Instituto
Inhotim, que prefere não se pronunciar
até a conclusão da compra. A Gentil
Carioca não divulga os preços das
obras. Pessoas do mercado de arte esti-
mam que comecem em 50 mil reais.
Os trabalhos da exposição Frontera
foram produzidos em pouco mais de
um mês num ateliê alugado no Centro
do Rio. Denilson se lembra de Elsa
Ravazzolo Botner, uma das diretoras da
Gentil Carioca, comentar, surpresa:
“Nossa, você pensou muito rápido no
que fazer.” Ao que o artista respondeu:
“Rápido, não. São 38 anos que eu resol-
vi em um mês.” Ele diz que, para reali-
zar a exposição, passou alguns dias em
Manaus. “Fiz uma viagem para lá e fi-
quei um tempo, acumulando informa-
ção, conversando com a minha mãe,
meu pai, minha avó, lendo muito, visi-
tando museus.”
Apesar de seus conhecimentos sobre
arte ocidental, Denilson prefere recor-
rer às referências da cultura indígena.
É uma estratégia para que sua produ-
ção não seja legitimada a partir de câ-
nones externos à sua cultura de origem
– cânones com os quais, aliás, ele gosta
de brincar, como ao fazer uma Gioconda
Kunhã \\ Mona Lisa Kunhã, em que a
personagem de Da Vinci aparece com
pinturas indígenas no rosto e em meio
a folhagens tropicais. “Eu apresento
meu trabalho de forma a não tolerar
que ele seja colocado em categorias,
como arte primitiva ou arte étnica. E de
modo que não se possa falar de branco
como influência. Minha influência na
exposição foi Feliciano Lana (Sibé), do
povo Desana, foi Gabriel Gentil, pajé
do povo Tukano.” Sibé foi artista plásti-
co e morreu em 2020, aos 83 anos. Gen-
til (1953-2006) foi um intelectual e
xamã que escreveu sobre a história e os
mitos dos tukanos.
Denilson observa que o levante indí-
gena nas artes, apesar de expressivo na
cena cultural, não possui unidade nem
direção única. “Há certa falta de comu-
nicação entre a gente, o que é uma fa-
lha.” Outro ponto levantado por ele é a
respeito da crítica. “Tem muito artista
indígena, mas tem pouco escritor, pes-
quisador, crítico de artes indígenas. Os
textos sobre nossos trabalhos ainda es-
tão sendo feitos por brancos.”
A situação de escassez de obras críti-
cas afeta bastante a análise dos trabalhos
indígenas, feita em geral por pessoas
que não estão inseridas nas culturas e
cosmogonias dos diferentes povos. As
dificuldades para os “brancos” não são
pequenas, como ressalta Fernanda Pitta,
professora da usp e ex-curadora-sênior
da Pinacoteca de São Paulo. “O artista
Ibã Huni Kuin, por exemplo, fala que
quem o ensinou a pintar foi a cobra. Se
você vai para uma análise calcada na
história oficial, vai tentar interpretar o
que é a cobra dentro das categorias da
antropologia, da arte, da ciência”, diz
ela. “Mas a questão não é essa. Para os
Huni Kuin, a cobra não é apenas um
bicho: é um ser, outro agente, que tem
os seus processos de relação com os hu-
manos. Ou seja, você precisa entrar por
outra percepção da história dessas rela-
ções, suas dinâmicas e protocolos.”
A escassez no Brasil de textos críticos
aprofundados sobre as artes indígenas e
os artistas em particular, do passado e do
presente, chamou a atenção inclusive
da curadora da última edição da Bienal
de Veneza, a italiana Cecília Alemani,
radicada em Nova York. “Há pouca lite-
ratura sobre esse assunto, uma falta de
conhecimento sobre artistas originá-
rios”, afirma ela à piauí. Apesar disso,
Alemani ressalva que no Brasil a produ-
ção desses textos é mais expressiva do
que nos Estados Unidos. “Fiquei bas-
tante impressionada com a exposição
Véxoa: Nós Sabemos, feita na Pinacote-
ca de São Paulo e com o catálogo pro-
duzido.” Em 2022, Denilson esteve à
frente, com a curadora afroindígena
Beatriz Lemos, da exposição Nakoada:
Estratégias para a Arte Moderna, no
mam do Rio de Janeiro, quando foi edi-
tado um catálogo também relevante,
com textos de Francy Baniwa, Idjahure
Kadiwel, Braulina Baniwa, Daniel Dina-
to e Jaider Esbell, entre outros. Até 30
de julho, ele apresenta na Pinacoteca de
São Paulo um novo projeto artístico, a
Escola Panapaná, uma construção em
três pavimentos, na forma de um casu-
lo, dentro do qual serão realizados de-
bates, apresentações musicais, aulas da
língua baniwa, entre outras atividades.
Na época em que era curadora da
Pinacoteca de São Paulo, Fernan-
da Pitta participou da equipe que
reformulou a exposição permanente
com obras do acervo do museu. Duran-
te o processo de seleção dessas obras,
ela ficou assustada. Até 2019, a Pinaco-
teca tinha apenas uma obra de artista
de origem indígena no acervo, uma
boneca produzida por mulheres kara-
jás, na década de 1940. O debate inter-
no sobre essa carência resultou num
convite para que a artista e curadora
Naine Terena, de origem indígena, fi-
zesse a curadoria de Véxoa: Nós Sabe-
mos, inaugurada em outubro de 2020.
A exposição reuniu artistas e coletivos
contemporâneos, entre eles Jaider Es-
bell, Denilson Baniwa, Daiara Tukano
e a Ascuri (Associação Cultural dos Re-
alizadores Indígenas), que congrega a
produção audiovisual de jovens terenas,
quéchuas e kaiowás. O catálogo, edita-
do pelo poeta e antropólogo Idjahure
Kadiwel, contém textos da própria
Naine, do escritor Daniel Munduruku,
dos artistas Denilson Baniwa e Gustavo
Caboco e da antropóloga branca Ilana
Seltzer Goldstein. A apresentação é
assinada por Jolchen Volz, diretor da
Pinacoteca.
Naine Terena tem 42 anos, vive em
Cuiabá, no Mato Grosso, é doutora
em educação pela puc-sp, mestre em
artes pela Universidade de Brasília
(unb) e uma das raras curadoras de ori-
gem indígena. Em 2022, depois de um
imbróglio no Museu de Arte de São
Paulo (Masp), ela foi convidada a assu-
mir o lugar da antropóloga Sandra
Benites – primeira curadora indígena
de um museu brasileiro –, que havia se
demitido e é atualmente consultora de
programação cultural e exposições do
Museu das Culturas Indígenas, em São
Paulo. Naine preferiu chamar uma con-
vocatória informal com parentes (termo
usado entre os indígenas para designar
diferentes povos irmãos), que resultou
na indicação de um trio de curadores
para a divisão de artes indígenas do
Masp: Edson Kayapó, Renata Tupi-
nambá e Kássia Borges Karajá.
Um dos grandes desafios para o en-
tendimento das artes indígenas, segun-
do Naine, é narrar a própria história
dessas artes. Ela acha que o próprio con-
ceito “arte indígena contemporânea”,
formulado por Esbell, apaga artistas ve-
teranos da narrativa oficial. Mas Naine
diz que alguns são lembrados, como
Ailton Krenak, de 69 anos, mais conhe-
cido como escritor e ativista. Em 1998,
ele expôs 48 gravuras na galeria Kaki-
baia, em Tóquio. No ano passado, teve
uma pintura e um desenho incluídos na
exposição Contramemória, no Theatro
Municipal de São Paulo. Também fa-
zem parte dessa lista de veteranos os
artistas Feliciano Lana (Sibé), do povo
Desana, apontado por Naine como um
dos precursores das artes indígenas feita
atualmente, e Carmézia Emiliano, do
povo Macuxi. No passado, ambos tive-
ram suas produções classificadas na ca-
tegoria “arte primitiva”. No último dia
24 de março, uma mostra de Carmézia
Emiliano, que tem 62 anos, foi inaugu-
rada no Masp, com 35 pinturas, agora
livres de rótulos pejorativos. No mesmo
mês, ela foi anunciada como artista da
Central, uma nova galeria de São Paulo,
com prestígio no meio.
Até o fim do século xix, era corriquei-
ro ler a produção material de povos origi-
nários apenas pelos olhos da antropologia
e da arqueologia. Assim, qualquer traba-
lho artístico era classificado na categoria
de “artefato”. Isso começou a mudar no
século xx, quando se adotou a expressão
“arte primitiva”, na qual cabia tudo: des-
de as artes indígenas até os trabalhos pro-
duzidos por pessoas com transtorno
mental. “Nos primeiros autores, quando
se usa essa categoria, ‘arte primitiva’, há
todo um processo de valorização de
produções culturais que não eram en-
tendidas como arte e passaram a ser com-
preendidas assim. Há uma tentativa de
rompimento com as práticas acadêmicas
das belas-artes”, explica Pitta. Ela salien-
ta, porém, que a inserção dessas obras
ditas “primitivas” no sistema da arte não
se deu em pé de igualdade: trabalhos
fiéis à tradição ocidental dominante ain-
da eram vistos como superiores.
Nos anos 1950, outras expressões
surgiram, como “arte índia” e “arte
indígena”, usadas tanto pelo casal de
antropólogos Berta Gleizer Ribeiro
(1924-97) e Darcy Ribeiro (1922-97)
quanto por relevantes historiadores,
como Walter Zanini (1925-2013) e
Ulpiano Bezerra de Menezes (1936-).
Berta Ribeiro é autora de Arte Indígena:
Linguagem Visual, de 1978, estudo pio-
neiro sobre a produção propriamente
artística dos povos originários.
Todas essas questões têm preocupa-
do atualmente o meio artístico e
curatorial, e não só no Brasil.
Como os descendentes de indígenas
ganham espaço em mostras e museus
em várias partes do mundo, esses temas
emergem nos debates críticos em vários
países. “O primeiro que começou a ter
essa movimentação foi a Austrália”, diz
Daiara Tukano. “Mas a gente também
tem artistas no Canadá, nos Estados
Unidos, na Ásia e na África.” A pesqui-
sadora Ilana Goldstein explica que, na
Austrália, o boom das artes indígenas se
deu entre os anos 1990 e 2000. “O que
está ocorrendo hoje no Brasil não faz
cócegas no que acontece há décadas
por lá, apesar da velocidade impressio-
nante que o movimento está adquirin-
do aqui”, diz ela. “Todos os museus
australianos que visitei tinham uma
coleção originária ou uma ala para arte
indígena. Os principais têm também
curadores aborígines, responsáveis pela
aquisição de obras e a organização das
exposições. O governo financia coope-
rativas de arte, mas quem toma as deci-
sões são os líderes aborígenes.”
No Canadá, um dos especialistas no
assunto é o artista e curador indígena
Gerald McMaster, professor da Univer-
sidade Ocad (antes chamada Ontario
College of Art and Design), em Toron-
to. Quando indagado por que ainda há
tão poucos indígenas em exposições,
sejam artistas ou curadores, ele solta
uma risada, antes de responder. “É uma
questão muito fácil de responder. Ob-
viamente, é uma situação de poder”,
diz. “No caso do Brasil, o país continua
voltado para a história da arte europeia,
nas suas atitudes e perspectivas. De um
modo geral, segue rejeitando as contri-
buições das artes indígenas, colocando
esses agentes como passageiros de se-
gunda classe.” McMaster, que recebeu
em 2005 a comenda Ordem do Cana-
dá, conta que em seu país já existem
indígenas lecionando nas universida-
des, como ele próprio. “Na National
Gallery do Canadá, em Ottawa, tam-
bém temos essa presença, fora de uma
perspectiva colonial.”
Daiara Tukano, de 40 anos, diz que
faz parte de uma geração “descarada” e
que “não tem paciência nenhuma em
ser subserviente”. “Se hoje conseguimos
um espaço para falar da arte indígena
contemporânea, é porque a gente preci-
sou insistir e criar certo desconforto
com os representantes desses espaços”,
afirma. “Chegamos para constrange
mostrar que essa dinâmica de apa-
gamento de visões e abordagens indíge-
nas é feia, é racista, é brega, totalmente
démodé. É preciso se atualizar, e isso
passa pelo nosso protagonismo.”
O discurso de Daiara casa com sua
produção. Em uma série de pinturas
chamada Hori, ela trabalha com grafis-
mos tradicionais e faz experimentações
cromáticas. Hori, na língua dos tuka-
nos, se refere à “miração”, diz Daiara.
“São as visões do caapi [ayahuasca],
que é a medicina de origem de todos os
conhecimentos, histórias, línguas, can-
tos e desenhos do meu povo. É uma
forma de debater o que é arte para nós.”
A artista apresentou algumas telas de
Hori na exposição Amõ Numiã, exibida
até 11 de março, na galeria Millan, que
agora representa Daiara. No Museu da
Língua Portuguesa, em São Paulo, ela
fez a curadoria da mostra coletiva Nhe’ẽ
Porã: Memória e Transformação, em
cartaz até o dia 23 deste mês de abril.
Os passos dos artistas indígenas são
velozes e múltiplos. E, agora, eles po-
dem ganhar ainda mais fôlego com o
novo governo, que parece ter uma ge-
nuína preocupação com as populações
originárias, tanto assim que tomou duas
iniciativas inéditas nessa área. Criou o
Ministério dos Povos Indígenas, chefia-
do por Sonia Guajajara, e indicou uma
indígena, Joenia Wapichana, para pre-
sidir a Fundação Nacional dos Povos
Indígenas (Funai). Não à toa, aconte-
ceu na época da posse de Lula, no Mu-
seu Nacional da República, em Brasília,
a mostra Brasil Futuro: As Formas da
Democracia, que deu destaques às obras
de vários indígenas, entre eles Jaider
Esbell, Denilson Baniwa, Daiara Tuka-
no, Arissana Pataxó, Gustavo Caboco,
Yacunã Tuxá e um nome mais jovem
do levante: Aislan Pankararu.
Aislan Pankararu – registrado ao
nascer como Aislan Felipe da Silva San-
tos – foge bastante do estereótipo físico
de um indígena. Tem 1,90 metro de
altura, e cabelos crespos, cortados bem
rentes. Ele nasceu há 32 anos em Pe-
trolândia, em Pernambuco, onde seu
pai tinha um restaurante no qual Aislan
e seu irmão ajudavam, fazendo pastel.
A mãe era professora, formada em his-
tória. “Ela me influenciou muito. Sem-
pre acreditou na educação como uma
forma de mudança”, diz o artista, que
hoje mora em São Paulo. Seu pai e sua
mãe são do povo Pankararu, cujo nome
Aislan acabou por adotar.
Antes de se dedicar inteiramente à
arte, ele se formou em medicina na
Universidade de Brasília. “Na universi-
dade, fui juntando o quebra-cabeça do
racismo estrutural: era a palavrinha de
um professor ali, a indireta de um ges-
to aqui. Ficou evidente que aquele lu-
gar não era para mim.” Em 2019, um
amigo da república onde vivia em Bra-
sília se mudou e deixou para trás um
punhado de folhas de papel Kraft.
Com uma escova de dente e uma tinta
que achou, ele fez duas pinturas: uma
de um corpo e outra de um mandaca-
ru. “Eu tinha uma saudade da Caatin-
ga e de participar das atividades do
meu povo”, ele recorda.
A primeira exposição, Abá Pukuá:
Homem Céu, aconteceu em 2020, no
Hospital Universitário de Brasília. “De-
pois não teve nenhuma grande exposi-
ção ou grande movimento. O que
projetou meu trabalho, na verdade, fo-
ram as redes sociais.” Em dezembro de
2022, a nova galeria Galatea, de São
Paulo, passou a representá-lo. “O que
me chama atenção nos trabalhos dele é
a organização espacial dos elementos
na superfície, seja tela ou papel. Há
uma iminência de movimento. O uso
das cores também é bastante complexo
e intuitivo, o que gera obras extrema-
mente vibrantes”, diz Tomás Toledo,
um dos sócios da Galatea e ex-curador-
chefe do Masp.
Aislan diz que traz dentro de si a de-
fesa dos povos indígenas do semiárido
nordestino. “São comunidades que pri-
meiro enfrentaram os invasores, quase
desapareceram e que passam até hoje
por um apagamento maior, porque o
fenótipo esperado de populações origi-
nárias é o das comunidades amazôni-
cas, com cabelos lisos e olhos puxados.
Há muito mais que isso. Indígena tam-
bém tem cabelo crespo.” Ele adiciona à
conversa o complexo tema dos “indíge-
nas em retomada”. São pessoas que,
criadas fora do contexto cultural, bus-
cam agora voltar e reconhecer as suas
origens. “É preciso olhar caso a caso.
É importante esse reconhecimento,
mas eles não podem tomar o lugar dos
aldeados, que não vivem em um con-
texto urbano, às vezes não dominam
bem o português e passam por muito
mais dificuldades”, diz. Para ele, seu
trabalho é essencialmente político.
“Porque não é só beleza: estou entrando
em espaços que não estou acostumado
a entrar. A arte serve de canal para o
meu grito, para o grito do meu povo.”
No final da conversa com a piauí, ao sa-
ber que Arissana Pataxó também seria
entrevistada, Aislan retirou um dese-
nho de uma pasta e disse: “Você pode
entregar para ela? Admiro o trabalho da
Arissana.”
Em 2013, quando ainda era estudan-
te, o antropólogo branco Daniel
Dinato, hoje com 32 anos, foi a
Belo Horizonte especialmente para ver
a mostra ¡Mira! Artes Visuais Contem-
porâneas dos Povos Indígenas. A exposi-
ção pode ser considerada – com o
Primeiro Encontro de Todos os Povos,
promovida por Jaider Esbell – o marco
zero da difusão das novas artes indíge-
nas no Brasil.
Ao visitar a ¡Mira!, o que primeiro
chamou a atenção de Dinato foi o espa-
ço expositivo. “Tinha paredes brancas,
mas nem de longe lembrava um cubo
branco: era um espaço estranho, meio
recortado e labiríntico.” Ele conta que
ficou “incrédulo e deslumbrado” com
piauí_abril 65
as obras expostas. “Eu não tinha baga-
gem de leitura para entender aqueles
trabalhos. Cheguei, no máximo, a esta-
belecer uma correspondência entre
uma pintura de Jaider Esbell, O Parto
(2012), com a A Origem do Mundo
(1866), de Gustave Courbet.”
De volta a Porto Alegre, Dinato deu
prosseguimentos aos estudos para en-
tender aquele movimento que se forma-
va e dedicou seu mestrado ao coletivo
Mahku. “É impressionante pensar nos
espaços que os artistas indígenas con-
quistaram no circuito tradicional desde
aquela época até agora.” Ele também
conheceu Denilson e Esbell. Deste úl-
timo, recebeu uma divertida dedicató-
ria: o artista desenhou um homem
pendurado numa corda sobre um abis-
mo e escreveu embaixo a frase ambígua
“Salve o antropólogo”.
A exposição em Belo Horizonte foi
importante não apenas para os brancos,
mas para os artistas originários. Arissa-
na Pataxó, uma das participantes da
¡Mira!, conta: “Eu expus duas telas, em
uma retratei minha mãe, com mais ou
menos 20 anos, e em outra, minha pri-
ma. Quando eu vi a exposição, fiquei
encantada com a diversidade da produ-
ção dos artistas. Eu não tinha até então
nenhuma referência de nomes indíge-
nas. Na universidade onde estudei eles
não falavam disso.” Em 2016, quando
ficou em segundo lugar no Prêmio Pipa
online, Arissana foi a primeira mulher
indígena a receber a premiação.
Ela também foi a primeira de sua
família a nascer em um hospital, há
39 anos. Com os sete irmãos, Arissana
vivia em uma região chamada Serra do
Gaturama, na região de Porto Seguro,
na Bahia, onde seu pai tinha uma pe-
quena propriedade. Aos 16 anos, mu-
dou-se para a “metrópole Pataxó”,
como ela apelidou de forma brincalho-
na a parte urbana da Terra Indígena
Coroa Vermelha, no município de San-
ta Cruz Cabrália, a cerca de 20 km de
Porto Seguro. Arissana foi morar com
uma tia e ficar mais perto da escola
onde concluiu o ensino médio. “Estu-
dar abre a mente e eu sempre estimulei
meus filhos nesse caminho”, diz a mãe
de Arissana, Cremilda Braz Bomfim, de
62 anos, mais conhecida por seu nome
indígena, Meruka.
Os primeiros trabalhos de Arissana
foram colocados à venda na loja de ar-
tesanato de sua mãe em Coroa Verme-
lha. “Vendi tudo”, lembra a artista.
Eram pinturas feitas em telas, com tinta
acrílica, que retratavam pessoas da fa-
mília. Levando à risca o conselho da
mãe, ela fez vestibular para artes plásti-
cas em 2005, um ano depois que come-
çou a ser aplicada a Lei de Cotas na
Universidade Federal da Bahia (ufba).
“Vinte pessoas de Coroa Vermelha ten-
taram entrar na universidade. Três con-
seguiram.” Um ano depois, seu marido,
Jussimar Guedes de Souza, também
pataxó, foi para Salvador fazer ciências
sociais na ufba.
mãe a decidir qual o melhor caminho
para um trabalho. Outro dia, Arissana fi-
cou em dúvida onde situar a figura de um
garoto em um desenho feito a pedido de
Daniel Munduruku. “Coloca ali”, suge-
riu a menina. A mãe seguiu à risca.
Algumas das pinturas de Arissana são
figurativas, retratando pessoas e cenas da
vida dos povos originários. Outras são
abstratas, a partir de grafismos pataxós.
Ela também se aventurou pela cerâmica,
como em Kitok (2009), um de seus prin-
cipais trabalhos, no qual criou um grupo
de crianças brincando, em roda. “Eram
netos do meu tio-avô, o Albino. Eles es-
tavam brincando e tirei uma foto”, diz a
artista. “Quando vou produzir, tiro mui-
tas fotos. É a cena que me captura. Eu
deixo guardadas e depois penso como
trazer isso. Nesse caso, dei ênfase às li-
nhas do contorno do corpo das crianças,
como elas estão em um círculo, os traços
reforçam essa ideia de união.”
Arissana acha que fazer o curso uni-
versitário foi essencial para sua trajetó-
ria, porque lhe deu acesso aos espaços
da arte. “Por mais que se diga que não é
preciso ter graduação em artes visuais
para se inserir, a coisa não é bem assim.
Tem muitos artistas dentro da comuni-
dade que são tão artistas quanto os ou-
tros, mas não são integrados, porque
não fizeram graduação.” A outra ques-
tão é que nem toda pessoa que faz facul-
Outros pataxós começaram a chegar,
ano após ano, juntando-se a eles. “A gen-
te vivia uma vida meio nômade, de um
contrato de aluguel para o outro, com as
roupas na mala, cada qual com um col-
chão, e só”, recorda Arissana. “No come-
ço, não tinha ajuda nenhuma para a
gente viver lá. Fomos à pró-reitoria de
assistência estudantil e a funcionária dis-
se que ‘coisa de índio era com a Funai’.”
A ignorância da comunidade universitá-
ria sobre os povos indígenas funcionou
como tema para a obra dela. “Eu pintava
telas não apenas sobre o povo Pataxó,
mas também sobre outros povos. Na
aula, esses trabalhos eram uma oportu-
nidade para falar aos meus colegas.”
Depois de se graduar, ela fez mestra-
do no Centro de Estudos Afro-Orientais
com um trabalho sobre a produção e
distribuição de adornos corporais pata-
xós. O Centro fica em Salvador e foi lá
que o escritor Itamar Vieira Junior, au-
tor de Torto Arado, também defendeu o
seu doutorado. Em 2020, Arissana vol-
tou à Escola de Belas Artes da ufba para
o doutorado, que está em andamento.
Como pesquisadora, ela integra o proje-
to Culturas de Antirracismo na América
Latina (Carla), uma iniciativa da ufba
com a Universidade de Manchester.
Arissana dá aulas de artes e de patxo-
hã, língua do seu povo, no Colégio Es-
tadual Indígena Coroa Vermelha,
voltado para o ensino médio. Seu mari-
do é professor de história e geografia.
Ela segue atuando na comunidade
sempre que tem a oportunidade, indi-
cando artistas que ainda não tiveram
reconhecimento. “Você precisa conhe-
cer o Oiti”, diz. “Ele criou uma casa da
memória pataxó com obras dele e de
outros artistas na Jaqueira.” Trata-se
de Oiti Pataxó (Fernando Santana Car-
valho), da Reserva Indígena Pataxó da
Jaqueira, em Porto Seguro.
Com o marido e a filha Atxinãy, de
12 anos, Arissana vive num sobrado na
área urbana da Coroa Vermelha, perto
de uma avenida movimentada, com su-
permercado, farmácia e restaurantes.
Os cobogós garantem o charme da
construção de pé-direito alto, com mais
de 3 metros, e janelões de madeira. “As
paredes de fora ainda não foram pinta-
das, estão só rebocadas, mas estamos
nessa luta aí, desde 2014, para terminar”,
diz Arissana, sorrindo. O conjunto forma
uma típica casa de classe média do inte-
rior, não fosse por várias peças indígenas,
como uma panela de barro do povo Kiri-
ri, um samburá pataxó e um cesto guara-
ni. “Uma vez uma pesquisadora branca
veio aqui e pareceu estranhar que a mi-
nha casa não fosse ‘exótica’”, diz.
O ateliê da artista fica no segundo piso
e funciona também como quarto de visi-
tas, com uma cama de casal e duas camas
de solteiro. São nelas que dormem sua
mãe, as irmãs e os sobrinhos, quando vão
visitá-la. Perto da mesa de trabalho da ar-
tista, fica uma pequena estante com pin-
céis e livros. Atxinãy é presença constante
no ateliê. De vez em quando, ela ajuda a
dade de artes plásticas conseguirá entrar
no circuito artístico. “Isso depende mui-
to do diálogo. Entrar nesse mundo nada
mais é do que ter indicações e contato.
Não tem nada a ver com o seu trabalho
ser melhor do que o dos outros.”
A artista não está ligada a nenhuma
galeria e diz que, atualmente, nem co-
loca seus trabalhos à venda. “Recebo
mais projetos comissionados, e pessoas
que eu conheço também me procuram
para comprar”, diz. O marido conta
que Arissana é determinada, estudiosa,
escreve muito bem e sempre teve um
jeito despretensioso. “Mas, depois que o
pai dela morreu, ficou mais assim, sem
dar muita importância ao sucesso.”
O pai de Arissana, Wilson Garcia do
Bonfim, morreu em 2017. “Foi ele quem
criou meu nome, dizia que significava
‘Sol da tarde’”, ela conta. Para os que es-
tranham ao saber que seu pai era branco,
a artista responde com uma história:
“Outro dia, um aluno me contou que
um turista na praia perguntou se ele era
pataxó. O menino disse que sim. Então,
a pessoa falou: ‘Ah, mas você não pare-
ce.’ E o garoto respondeu: ‘É porque eu
sou mais escuro, sou misturado.’ Eu dis-
se a meu aluno: ‘Você não tem que dar
justificativa nenhuma. No Brasil, todo
mundo é misturado. Por que só indígena
não pode ser misturado?’ Não explique
nada, mande a pessoa ler, estudar.” J
PIAUI
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