October 16, 2023

Paz violenta

 

 

 A COMUNIDADE INTERNACIONAL
CONTENTASE COM UMA PALESTINA
“CALMA”, EMBORA MISERÁVEL E OPRIMIDA

REGINALDO NASSER

O atual conflito na Faixa de
Gaza é praticamente uma
reedição de conflitos ante-
riores, a não ser pela forma
como foram realizados os
ataques do Hamas. Por
meios aéreos, marítimos e
terrestres articulados com
o lançamento de foguetes, os combatentes
do Hamas causaram surpresa pela ousa-
dia e intensidade das ações em território
ocupado por Israel e provocaram centenas
de mortes de civis e militares israelenses.
Assim como nos outros episódios de
violência na região, o debate pautado
pela mídia foi em torno do Hamas e com
isso a questão da ocupação, opressão e
humilhação que o povo palestino, em
geral, e os habitantes de Gaza, em par-
ticular, vivem há 75 anos sob regime de
apartheid foi esquecido.

 
Sob a perspectiva geopolítica, talvez
o fato de os militantes do Hamas terem
ultrapassado as fronteiras seja o ponto
mais perturbador para a doutrina de se-
gurança nacional de Israel. Não por aca-
so, dois dias depois dos ataques, o Minis-
tério da Defesa repetiu várias vezes que
havia “restaurado o controle total” sobre
a fronteira de Gaza. É compreensível essa
preocupação do governo israelense, pois,
como está reconhecido no sistema inter-
nacional vigente, fronteiras definidas e
seguras são um elemento essencial para
o exercício da soberania nacional. Mas
quais foram os fundamentos que orien-
taram a constituição dessas fronteiras?

 
Em 29 de novembro de 1947, a Assem-
bleia-Geral da ONU, com o apoio decisivo 

 das grandes potências, aprovou a Reso-
lução 181, que resultou no plano de par-
tilha da Palestina. Os colonos judeus, an-
tes proprietários de 6% das terras e 30%
da população local (600 mil habitantes),
passaram a ter 55% do território. Os pa-
lestinos, que representavam 70% da po-
pulação (1,3 milhão), ficaram com os 45%
restantes. Portanto, houve um processo
violento de expropriação e expulsão de
palestinos, marcando definitivamente
a história desses povos.

 
Durante a guerra da Palestina, entre
1947 e 1949, os palestinos foram expulsos
de cerca de 400 cidades e vilarejos onde
eram maioria. Várias cidades e comuni-
dades tomadas temporariamente pelo Ha-
mas eram habitadas, em sua maioria, por
palestinos que se refugiaram na Faixa de
Gaza. Portanto, na perspectiva dos palesti-
nos, essa mobilização iniciada em 7 de ou-
tubro era a realização do sonho do retorno.

 
Houve outros momentos históricos
importantes que moldaram o destino de
Gaza. Em junho de 1967, como decorrên-
cia da vitória de Israel na guerra com os
países árabes (Síria, Egito e Jordânia), a
Cisjordânia e a Faixa de Gaza foram ocu-
padas militarmente pelas forças israelen-
ses e passaram a ser chamadas de Territó-
rios Palestinos Ocupados (TPO). Em 2005,
teve início o chamado plano de desenga-
jamento de Gaza proposto pelo então pri-
meiro-ministro israelense Ariel Sharon.

 
A retirada de todos os seus assentamen-
tos causou boa impressão na comunida-
de internacional, pois poderia ser o início
de um Estado em Gaza, abrindo um ca-
minho para a paz. O porta-voz do Hamas
chegou a afirmar que se tratava de uma vi-
tória da resistência armada e que “Israel
deixou Gaza porque se tornou um fardo”.

 
Em 2006, houve eleições na Palestina
e o Hamas conseguiu 74 dos 132 assen-
tos parlamentares, contra 45 do Fatah.
Isto se devia principalmente à sua his-
tórica atuação como organização de ca-
ridade aliada à insatisfação popular em
relação ao governo do Fatah, acusado de
corrupção e de ser conivente com a ocu-
pação israelense. A vitória do Hamas foi
vista com grande apreensão na comuni-
dade internacional e desencadeou verda-
deira guerra civil com o Fatah, que resul-
tou na tomada de poder na Faixa de Gaza.

 
Em 2007, Israel declarou formalmen-
te que a Faixa de Gaza é uma entidade
hostil e instaurou o bloqueio terrestre,
marítimo e aéreo da região que perdura
até hoje. Para se ter uma dimensão das
consequências desse cercamento, a ONU
publicou um relatório em 2012 prevendo
que em 2020 a região se tornaria um lu-
gar inabitável. Aproximadamente, 97%
da água é considerada imprópria para
uso, mais da metade da população vive
abaixo da linha da pobreza, 80% depen-
dem de ajuda externa e 64% dos jovens
estão desempregados. Além das péssi-
mas condições de vida, os habitantes de
Gaza sofrem graves crises humanitárias
decorrentes de seis guerras assimétricas.
Diferentemente de outros conflitos béli-
cos, não podem escapar de seu território,
que conta com uma das maiores densida-
des populacionais do mundo.

 
Uma pergunta inevitável refere-se à
forma de luta legítima que o povo pales-
tino deve empreender contra um opres-
sor muito superior em termos militares.
As ações bélicas do Hamas, além de cau-
sarem danos na população civil israelen-
se, só fazem aguçar o ímpeto destrutivo e
cruel da retaliação de Tel-Aviv a um custo
enorme para os palestinos. Desde 2007, o
governo israelense diz que o objetivo do
uso intensivo e desproporcional da força é
acabar com o terrorismo do Hamas e pro-
teger os civis israelenses.

 
O ministro da Defesa de Israel
declarou ter ordenado “um
cerco completo” à Faixa de
Gaza. “Não haverá eletrici-
dade, nem comida, nem com-
bustível... Estamos lutando
contra animais humanos e agiremos em
conformidade.” Com isso, pretende cul-
par a vítima de sua própria tragédia, des-
de uma suposta superioridade moral. As
frases que mais se repetem durante esses
anos são: merecem um “castigo exem-
plar”, “pagarão um preço insuportável”,
“lhes daremos uma lição”. Entretanto, a
lógica da resistência é que, quanto mais
punições coletivas se infligem a uma po-
pulação, há mais determinação.

 
Entre 2018 e 2019, uma ampla mobi-
lização pacífica envolveu dezenas de mi-
lhares de palestinos que se dirigiram à
fronteira reivindicando a suspensão do
cerco. O movimento foi realizado à re-
velia do Hamas, que não teve nenhuma
participação nos eventos. Mesmo as-
sim, as forças de Israel mataram 170 ma-
nifestantes e deixaram centenas de fe-
ridos, com graves consequências físi-
cas. Foi um recado muito claro do gover-
no israelense de que estava pouco se im-
portando com os métodos empregados.

 
Em curto prazo, o mais importante
agora é cessar as hostilidades, a fim de
preservar a vida dos civis. A população de
Gaza voltará a uma situação que a comu-
nidade internacional chama de “calma”.
Na verdade, trata-se de uma paz violen-
ta, uma espécie de calmaria de miséria
e opressão que antecede as tempestades
e, quando isso voltar a acontecer, vamos
falar das mesmas coisas que estamos a
debater agora. Triste constatar que es-
te terrível ciclo de violência não termi-
nará até que seja constituído um Esta-
do palestino soberano e autônomo. Pa-
ra isso, é necessário que voltemos ao iní-
cio de todo esse processo, isto é, quando
as grandes potências na ONU criaram o
Estado de Israel. Agora seria o momento
de quitar essa dívida moral, maior causa
das tragédias na Palestina

CARTA CAPITAL 

   

 

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