October 1, 2023

Marco Temporal: Boiadeiros em fúria

 

 

 Em clara afronta ao STF, o Senado aprova a toque de caixa projeto que reaviva o “marco temporal”
 

P O R  M A R I A N A  S E R A F I N I

 As lideranças da Articulaçãodos Povos Indígenas no
Brasil, a Apib, estão com a
sensação de que obtiveram
uma vitória de Pirro. Na
quinta-feira 21, o Supremo Tribunal Fe-
deral sepultou a tese do “marco temporal”,
exótica proposição dos ruralistas para res-
tringir as demarcações de terras indíge-
nas às áreas ocupadas pelos povos origi-
nários em 5 de outubro de 1988. Foram 9
votos a 2. Apenas os ministros André
Mendonça e Kássio Nunes Marques, no-
meados por Jair Bolsonaro, toparam le-
galizar todo o esbulho ocorrido antes da
promulgação da Constituição. A decisão
foi um alívio, sem dúvida, mas o inferno
mora nos detalhes. Os magistrados deixa-
ram para um segundo momento a defini-
ção de como serão indenizados os fazen-
deiros que ocupam essas áres. O modelo
agora aprovado tende a encarecer demais
o custo das demarcações, a ponto de invia-
bilizá-las. Não bastasse, a reação da ban-
cada ruralista no Congresso veio a galope.

 
Na segunda-feira 25, líderes da Fren-
te Parlamentar da Agropecuária reuni-
ram-se para tramar um “contra-ataque”
ao STF. Decidiram acelerar a tramitação
de um projeto de lei que reaviva o marco
temporal, tornando inválidas as demarca-
ções de terras indígenas não ocupadas até
1988. Isso eliminaria 63% das atuais re-
servas. Pedro Lupion, presidente do bloco,
ameaçou ainda retirar da gaveta a PEC do
deputado Domingos Sávio, do PL, que al-
tera o artigo 49 da Constituição para que
o Congresso suspenda, por maioria qua-
lificada, decisões da Suprema Corte. “Há
um ativismo judicial claro, claríssimo.”

 
Toda essa movimentação ocorreu
às vésperas da retomada do julgamento
para definir o modelo de indenizações.
Pela regra vigente até então, a União só
era obrigada a pagar aos fazendeiros que
ocupam áreas demarcadas pelas benfei-
torias existentes, como casas e celeiros.
O ministro Alexandre de Moraes propôs,
porém, que o governo federal também in-
denizasse os ocupantes de “boa-fé” pela
terra nua – gerando um “gasto incalculá-
vel”, segundo um parecer da Advocacia-
-Geral da União. Pior: as terras só pode-
riam ser destinadas aos indígenas após o
pagamento dessas reparações.

 
Enquanto os magistrados se debruça-
vam sobre o tema, os ruralistas os golpea-
vam no Parlamento. Ignorando a deci-
são do STF, conseguiram aprovar o PL
do marco temporal no Senado em vota-
ção relâmpago. Foram 43 votos a 21. “Não
se trata de nenhum tipo de enfrentamen-
to com o Supremo”, desconversou o pre-
sidente da Casa Legislativa, Rodrigo Pa-
checo. “É apenas uma posição do Con-
gresso, considerando que temas dessa na-
tureza devem ser deliberados por aqui”.

 
A Corte rejeitou a tese
central dos ruralistas,
mas passou a prever
indenizações pelas
terras desapropriadas

 
Lula vetará o projeto, antecipa Ran-
dolfe Rodrigues, líder do governo no Con-
gresso. Ainda que não fosse, certamente
seria contestado judicialmente. “Não é
que o STF tenha criado esse direito fun-
damental. Ele só reconheceu o que estava
previsto na Constituição. Não há dúvida

e que o projeto é inconstitucional e cabe
ao STF declarar isso”, observa o advogado
Pedro Serrano, professor de Direito Cons-
titucional da PUC de São Paulo e colunis-
ta de CartaCapital. Não será tão simples,
porém, pacificar a crise entre os poderes.
Dinaman Tuxá, coordenador-executi-
vo da Apib, não ficou surpreso com a re-
belião parlamentar. “Sabemos que o Con-
gresso é anti-indígena, por isso prioriza-
mos a luta no STF”. Segundo ele, os po-
vos originários também estão insatisfei-
tos com a postura do Executivo, que não
vem atuando de forma incisiva em defesa
dos indígenas no Parlamento. “Agora, va-

os exigir mais da bancada governista.”

 
No debate sobre as indenizações, a tese
de Moraes acabou prevalecendo, com al-
gumas nuances. Se não for possível pro-
mover o reassentamento em outro local,
os proprietários de “boa-fé” deverão ser
ressarcidos também pelas terras desa-
propriadas, decidiu o STF. “Só mesmo
no Brasil o governo compraria de volta
terrenos ilegalmente ocupados”, ironiza
Eliésio Marubo, coordenador jurídico da
União dos Povos Indígenas do Vale do Ja-
vari. “Isso não faz sentido e não tem o me-
nor fundamento constitucional”, avalia.

 
Tuxá também demonstra preocupa-

ção com o rumo que o julgamento tomou
no STF e teme que o novo modelo de in-
denizações paralise as próximas demar-
cações. O líder da Apib é taxativo ao afir-
mar que não existe orçamento para pa-
gar os valores de todos os terrenos so-
brepostos a terras indígenas. Um levan-
tamento feito pela Agência Pública nas
dez maiores áreas em litígio revela que o
custo pode ultrapassar a cifra de 1 bilhão
de reais, enquanto estão previstos ape-
nas 200 milhões de reais para demarca-
ções de terras indígenas no Projeto de Lei
Orçamentária de 2024. Neste ano, Lula
liberou, por medida provisória, um cré-
dito extraordinário de 640 milhões de
reais para a proteção dos povos indíge-
nas, mas somente 146,7 milhões foram
destinados para a Funai providenciar a
regularização fundiária das TIs.

 
Para a advogada Juliana de Paula
Batista, do Instituto Socioambiental, o
ideal seria manter as indenizações como
estava previsto na Constituição. “Toda
construção feita antes da portaria decla-
ratória emitida pela Secretaria de Patri-
mônio da União é considerada de boa-fé.

Depois disso, todos sabem que se trata de
uma terra indígena e, portanto, não há o
que ser indenizado.” Além do pagamento
pelas benfeitorias, a legislação já previa
o reassentamento de pequenos agricul-
tores que venham a ser impactados, por
meio do Instituto Nacional de Coloniza-
ção e Reforma Agrária, o Incra.

 
O STF passou a discutir a indenização
de terras nuas porque existem casos em
que governos estaduais emitiram títulos
de propriedade sobre terras indígenas e
essas áreas foram vendidas a particula-
res. “Nesses casos excepcionais, os preju-
dicados pela ação estatal podem pleitear
indenização também pela terra nua. Mas
isso deveria ser analisado caso a caso, co-
mo propôs o ministro Cristiano Zanin, e
não ser tratado como questão central.”

 
O secretário-executivo do Conselho
Missionário Indígena, Antônio Eduardo
Cerqueira de Oliveira, tem receio de um

umento dos conflitos no campo. “Pela
decisão do STF, os proprietários só serão
obrigados a sair das terras indígenas de-
pois de receber indenização. Eles devem
inflar o preço para dificultar o proces-
so”, alerta. Vale lembrar a situação do po-
vo Guarani Kaiowá, na região de Doura-
dos, em Mato Grosso do Sul, onde os fa-
zendeiros locais chegaram a formar mi-
lícias para afugentar os indígenas.

 
Durante o julgamento no STF, o mi-
nistro Dias Toffoli também levantou a
possibilidade de autorizar atividades
exploratórias em terras indígenas, como
garimpo e agropecuária, decisão que ca-
beria ao Legislativo. Para Oliveira, a pro-
posta é um acinte. “O movimento indíge-
na aceita o diálogo, mas somente após os
territórios estarem demarcados e regu-
larizados.” O líder indígena critica ain-
da a proposta de “meio-termo” defen-
dida pelo ministro da Agricultura, Car-
los Henrique Fávaro. “Esse ‘meio-ter-
mo’ pressupõe que os territórios indíge-
nas possam ser reduzidos ou explorados
por não indígenas. Fala-se na possibili-
dade de permitir arrendamento de ter-
ras, são iniciativas que beneficiam ape-
nas o agronegócio. Na prática, essa pro-
posta precariza os direitos garantidos
pela Constituição Federal.” 

 
Tuxá acrescenta que os povos estão re-
organizando a luta no âmbito regional,
dentro das terras indígenas, e também
no nacional. “Estamos em diálogo com
a base aliada na Câmara, com senadores
sensíveis à nossa causa, mas sentimos a
ausência do Executivo nessas articula-
ções.” O coordenador-geral do Centro In-
digenista de Roraima, Edinho Macuxi,
concorda: “O discurso é muito bonito,
mas, com quase um ano de governo, vi-
mos pouca ação em termos práticos”.

CARTA CAPITAL   

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