October 25, 2023

Nas mãos do inimigo

 

 p o r    R U T H M I C H A E L S O N E S U F I A N T A H A
 

PALESTINOS NA
CISJORDÂNIA SÃO ALVO DA REVANCHE DE
SOLDADOS E COLONOS ISRAELENSES

 Mahmoud Abu Latifa cortava ocabelo pre-
to e brilhante de seu sobri-
nho no estilo “cuia”, e estremeceu ao ouvir
as notícias na tevê sobre os bombardeios
em Gaza. “É só o que eu faço: corto cabe-
los e assisto ao noticiário. Isso está me dei-
xando doente. Quero me livrar desta guer-
ra horrível”, disse. Na véspera, Abu Latifa
tinha decidido comprar pão numa cidade
que exigia que ele passasse perto do pos-
to de controle de Qalandiya, uma fortale-
za com torres de vigilância e paredes de
concreto queimadas, cobertas de grafite
e pinturas com figuras políticas palesti-
nas. “Percebi como fui idiota em passar por
ali. Eles podem atirar em você facilmente e
não se importam”, afirmou, em referência
aos militares israelenses estacionados no
posto de controle. “Eles querem vingança.
Parece que estão dizendo: ‘Ou nós morre-
mos ou você morre’. Não há meio-termo.”

 
O ataque sem precedentes do Hamas,
que matou mais de 1,3 mil israelenses,
com cerca de 130 mantidos em cativei-
ro em Gaza, foi recebido com uma dura
reação das forças israelenses em toda a
Cisjordânia. Além dos postos de contro-
le fechados e das estradas vazias, os mo-
radores de Ramallah temiam o aumen-
to da violência por parte das forças mi-
litares e de segurança israelenses, as-
sim como dos cerca de 700 mil colonos
israelenses espalhados pela região.

 
O Ministério da Saúde palestino dis-
se que 54 cidadãos, incluindo crianças,
foram mortos e mais de 1,1 mil ficaram
feridos na Cisjordânia desde o ataque
do Hamas a Israel. Grupos de monito-
ramento disseram que os mortos in-
cluem menores baleados na cabeça, no
peito ou no abdome com munição viva.
Atos violentos fatais cometidos por co-
lonos israelenses foram registrados du-
as vezes em vídeo. A organização israe-
lense de direitos humanos B’Tselem di-

v ulgou imagens de um colono na aldeia
de At-Tuwani, ao sul de Hebron, empur-
rando um palestino antes de atirar ne-
le à queima-roupa, enquanto o homem
caía de joelhos, com um soldado das
Forças de Defesa de Israel parado nas
proximidades.

 
Na véspera, imagens de vídeo mos-
traram colonos israelenses armados
em um ataque à aldeia de Qusra, ao
sul de Nablus. “Cinco colonos chega-
ram à aldeia vindos do sudeste. Ao me-
nos um deles tinha uma arma. Eles fo-
ram à casa de Awad Odeh, que foi mor-
to pelos colonos em 2014”, disse Abdul
Azim al-Wadi, líder do conselho da al-
deia. “Eles atiraram em seu filho, Awad,
que está gravemente ferido, e em sua fi-
lha de 8 anos, que ficou ferida no ombro.
Eles queriam matar, miravam na cabe-
ça. Os aldeões saíram e as FDI também
chegaram. Eles dispararam contra os
moradores”, descreveu. No total, qua-
tro foram mortos no ataque.

 
Os colonos também ata-
caram o cortejo fúne-
bre em Qusra no dia se-
guinte. “Meu irmão e
meu sobrinho foram
mortos”, disse Wadi. “Estavam limpan-
do a estrada para o cortejo passar e fo-
ram atacados tanto pelos colonos quan-
to pelas forças de segurança. Eles atira-
ram no meu irmão Ibrahim Wadi e no
seu filho Ahmed a sangue-frio. Estou
no funeral deles agora”, contou, com a
voz tensa de tristeza.

 
Israel ocupa a Cisjordânia desde que
capturou a região em 1967, impondo um
sistema de controle no qual centenas de
milhares de colonos israelenses podem
ter acesso à água e expandir suas casas,
bem como utilizar transporte rápido e
eficaz para o território israelense. Os
palestinos e os beduínos da Cisjordâ-
nia enfrentam há décadas uma realida-
de completamente diferente, com pos-
tos de controle lotados, transportes di-
fíceis e pouca liberdade de circulação.
Várias organizações de direitos huma-
nos, entre elas a Human Rights Watch, a
Anistia Internacional e a B’Tselem, ca-
racterizam esse sistema de discrimina-
ção como “crime de apartheid”.

 
Sentado entre pilhas de canos e latas
de tinta em sua loja de ferragens, Abu
Mahmoud bebia café e fumava um ci-
garro, enquanto reclamava dos sol-
dados israelenses que tinham ataca-
do o campo de refugiados vizinho de
Qalandiya naquela manhã. “Desta vez,
as coisas estão realmente difíceis. São
dias duros”, avaliou. “Você podia sen-
tir o cheiro do gás lacrimogêneo aqui na
rua.” A estrada para o posto de controle
de Qalandiya estava coberta de fuligem
preta e acre dos pneus queimados du-
rante confrontos com militares israe-
lenses estacionados lá, e a passagem
foi fechada. Dias antes, dois menores
foram baleados no posto durante um
confronto com soldados, que responde-
ram com tiros reais depois de um grupo
atirar pedras e coquetéis molotov. “To-
dos os postos de controle estão fecha-
dos, então nenhum trabalhador con-
segue trabalhar. Todo mundo está em
casa assistindo ao noticiário”, afirmou
Abu Mahmoud. “Tudo parou, a econo-
mia está falindo. Qalandiya é um meio
de milhares de pessoas chegarem ao
trabalho e agora está fechada, então o
que podemos fazer? Está afetando sua
situação financeira. Como eles podem
se sustentar? Hebron, Nablus, todas
as cidades da Cisjordânia estão isola-
das umas das outras.”

 
Uma onda de violência ainda maior
percorreu a Cisjordânia no decorrer dos
dias. Na sexta-feira 13, dia tradicional
de protestos, vieram notícias de con-
frontos armados entre militares israe-
lenses e palestinos em bolsões rurais e
estradas que levam a postos de contro-
le em toda a Cisjordânia, bem como ata

 
ques de colonos. Ao menos 14 civis fo-
ram mortos em pouco mais de 24 horas.
Muitos em toda a Cisjordânia lamen-
taram a liderança esclerosada e enve-
lhecida da Autoridade Palestina, espe-
cialmente seu presidente, Mahmoud
Abbas, de 87 anos, que está no poder h

quase duas décadas e adiou várias elei-
ções marcadas durante esse período.
“Se os colonos atacarem Ramallah, os
primeiros a protegê-los serão os mem-
bros da Autoridade Palestina”, reclama
Ramez Abu Jaber, 24 anos, do campo de
refugiados de Qaddura, enquanto pre-
para abacate batido em sua loja perto
da Praça Al-Manara. “Os militares is-
raelenses protegem os colonos. Mas a
Autoridade Palestina também os prote-
ge, e não a nós.” Abu Jaber acrescentou:
“Se a Autoridade Palestina não conse-
gue cumprir suas obrigações, deveria
sair e deixar outros fazerem o traba-
lho. Nós podemos lidar com isso”.

 
Enquanto a maioria murmurava ou
gritava sua frustração diante da fal-
ta de liderança política, a história que
surge na Cisjordânia é de uma bruta-
lidade crescente. Alguns adquirem ar-
mas freneticamente ou recorrem à vio-
lência, pois temem que não exista ou-
tra opção diante da pressão crescente e
mortífera das forças de segurança e do

colonos israelenses. Ao mesmo tempo,
a mídia israelense informou que o mi-
nistro de Segurança Nacional, Itamar
Ben-Gvir, de extrema-direita, ordenou
que 10 mil rifles de assalto fossem dis-
tribuídos entre os assentamentos israe-
lenses na Cisjordânia e cidades com po-
pulações mistas, israelenses e palesti-
nas, dos quais 4 mil foram entregues
imediatamente.

 
Enquanto vendedores e
clientes negociavam no
mercado de verduras de
Ramallah, a farmacêu-
tica Ola Sherif, de jaleco
branco, encostou-se num carro para
uma pausa do trabalho. Gente de toda
a Cisjordânia, incluídos muitos de seus
clientes, disse ela, armazenavam me-
dicamentos freneticamente, por teme-
rem um confinamento prolongado e a
possível eclosão de combates, para não
falar em uma forte redução da entrada
de mercadorias provenientes de Israel.

 
Muitos, entre eles Ola Sherif, queixa-
ram-se de que os preços dos alimentos
dispararam, especialmente dos produ-
tos frescos. “Nunca vi nada parecido”,
declarou. “As pessoas estão em pânico
porque temem que os medicamentos
acabem, por isso compram em grandes
quantidades. Alguns medicamentos es-
tão presos no porto. Não tenho Nexium,
usado para tratar problemas de estôma-
go e esôfago, nem fórmula para bebês.
Não tenho nenhuma.” A farmacêutica
continua: “Tememos que haja uma gra-
ve escassez. As pessoas estão indo aos
supermercados para comprar tudo. Você
entra e vê que não tem pão. Não conse-
guimos encontrar farinha”. A escola de
seu filho, acrescentou, adotou as aulas
online porque temia o trajeto dos ônibus
escolares por estradas que passam perto
de assentamentos e instalações milita-
res israelenses. “É claro que as pessoas
estão com medo”, conclui.

 
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

CARTA CAPITAL

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