Neste mês de novembro faleceu um dos programas sociais mais reconhecidos mundialmente, o Bolsa Família. Em seu lugar, entra o confuso Auxílio Brasil. Mas quem, afinal, matou o Bolsa?
Ora, o contexto nos faz buscar o caminho óbvio ao apontar o culpado —o governo federal e seu desdém pela área social. Porém, tal assassinato parece envolver trama mais complexa: o governo apertou o gatilho, mas a perícia indica que o local do crime foi organizado por muitos de nós. Sim, também ajudamos a matar o Bolsa Família.
Nós ajudamos a matar o programa quando, no exercício essencial da atividade de imprensa, optamos por linhas editoriais preconceituosas e sem embasamento empírico. E, negando as evidências, insistimos em chamá-lo, durante anos, de assistencialista, gerador de dependência ou mecanismo de compra de votos. Atuando nos órgãos de controle, também ajudamos a executá-lo ao colocar nosso desejo de aparecer acima da sobriedade necessária à fiscalização das políticas públicas.
Alardeamos achados iniciais de auditoria como se fossem fatos conclusivos. Lembram-se dos beneficiários com propriedade de veículos caros ou que fizeram doações eleitorais de alto valor? Pois é, a apuração mostrou que a maioria expressiva desses casos era fraude fiscal: pessoas pobres usadas como laranjas.
Ajudamos a matar o Bolsa com a nossa vaidade intelectual. Divulgamos simulações com desenhos de novos programas cujo foco seria, em tese, muito melhor. Mas fizemos isso sem esclarecer que a focalização do Bolsa Família estava profundamente em linha com os programas internacionais de mesmo tipo e que nossos modelos analíticos baseavam-se em pressupostos pouco aderentes: Estado onisciente, pessoas pobres com total clareza das regras e incluídas digitalmente, rede de assistência social completamente ágil. E quando nós, servidores públicos cuja função seria assegurar a boa atuação estatal, nos dispusemos a fazer qualquer serviço, também o matamos. "Estamos simplesmente cumprindo ordens", dissemos, num bom exemplo de banalização do mal.
Colaboramos com sua morte por nossa paciência com o tiozão polemista na ceia de Natal. Era batata: em toda família, em todo Natal, lá estava o tiozão bradando o famoso caso da "empregada da prima de uma tia de uma amiga dele" que deixou de trabalhar e agora só quer saber de fazer filho por conta do Bolsa Família. Para não estragar a ceia, nos calamos diante da maledicência sobre essa personagem tão famosa quanto irreal.
E o matamos de sobrecarga. O Bolsa não podia somente dar o peixe: era preciso que ensinasse a pescar, instruísse o pescador sobre a devida manipulação do alimento, o conectasse à indústria alimentícia e, quiçá, o transformasse num empresário de sucesso. Exigimos do Bolsa Família, um programa de renda assistencial articulado à saúde e à educação, que resolvesse toda a complexidade da pobreza brasileira.
Pois toda vez que agimos conforme esses exemplos, ou os reverberamos, ajudamos a construir a percepção de que seria um programa antiquado. E o Bolsa não foi antiquado. Foi inovador e com excelentes resultados. De fato, tinha lacunas que careciam de correção, e nós inclusive facilitamos sua morte ao lhe negar, durante 18 anos, melhorias importantes, como a fixação de critérios e periodicidade de atualização das suas linhas de pobreza e valores de benefícios, o fim das filas e a extensão de benefícios a famílias pobres sem filhos. Sim, mata-se também por omissão.
O Bolsa Família precisava ser melhorado, mas não merecia ser assassinado no improviso de uma medida provisória sem parâmetros monetários, com benefícios pulverizados e tão calcada na ideia de que a pobreza é um fenômeno de responsabilidade individual. O Auxílio Brasil, este sim, nasce ultrapassado, pois se pauta numa concepção de pobreza comum ao século 19.
Resta ao Bolsa o reconhecimento póstumo de um programa que viveu com dignidade e contribuiu para que milhões de pessoas pudessem experimentá-la. A nós, cujas ações, palavras ou omissões colaboraram com o cenário do crime, resta a reflexão de que ele morreu também por soberba. No caso, a nossa.
FOLHA
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