A cada nova entrada do pianista no palco, sempre tímida, quase amedrontada, o soar do teclado fazia com que a mágica acontecesse novamente
EMMANUELE BALDINI *
"Meu filhinho, ao tomar a
decisão de transferir-me com toda a
nossa família para a capital da República,
julguei oportuno registrar no teu álbum
de reminiscências alguns fatos que inti-
mamente dizem respeito à tua existência,
para que sirvam de orientação para a tua
biografia, isso porque nossa mudança se
faz unicamente por tua causa.”
Foi assim que, em 21 de julho de 1950, o
farmacêutico José Freire Silva registrou
nas páginas do diário do filho Nelson, en-
tão com 6 anos, a difícil escolha que fi-
zera. Depois de o menino ter realizado
o seu primeiro concerto, aos 5 anos, no
teatro de São João Del Rey, José Freire
Silva, com impressionante visão e cora-
gem, tomou uma decisão que seria fun-
damental para o futuro do jovem pianis-
ta. Mudou-se, com a família, da pequena
Boa Esperança, em Minas Gerais, para o
Rio de Janeiro.
O pai de Nelson, ao tomar a decisão,
não apenas abriu as portas para que seu
filho tivesse uma carreira espetacular,
mas possibilitou que todos nós pudésse-
mos usufruir, no campo da arte, de um
exemplo de senso de missão, de simpli-
cidade e de genuinidade.
José, falecido prematuramente, em
um acidente de ônibus, que vitimou tam-
bém a mãe do pianista, em 1967 – no traje-
to entre o Rio de Janeiro e Belo Horizonte
– não chegou a vivenciar os sucessos do fi-
lho. Mas nós, que vimos seu filho tocar,
lhe agradecemos pela sabedoria da deci-
são, documentada no filme Nelson Freire
(2003), de João Moreira Salles.
Nelson Freire morreu em sua casa, no
Rio de Janeiro, na segunda-feira 1º, aos
77 anos, tendo deixado um legado fono-
gráfico impressionante, que inclui grava-
ções com a grande parceira e amiga ínti-
ma Martha Argerich, pianista argentina,
e concertos com as principais orquestras
e regentes do mundo.
Ouvir o Nelson tocando nos reconecta-
va com aquilo que a arte tem de mais es-
sencial. A ausência de efeitos especiais, a
discrição de sua presença e a sobriedade
de sua pessoa formam um contraste
Freire enquanto estudava violino,
na Sala São Paulo, sede da Orquestra
Sinfônica do Estado de São Paulo
(Osesp), na região central da cidade. Tive
de parar imediatamente. Aflito, sentei-
-me e comecei a revê-lo na memória. No
filme que correu pela minha cabeça,
lembrei-me da primeira vez em que es-
tive ao lado dele, ao vivo.
Eu estava então sentado a poucos
centímetros das mãos do gigante, pa-
ra um concerto de Rachmaninov, com
John Neschling na regência. As primei-
ras notas me encantaram a ponto de pa-
recer que eu nunca tinha ouvido a sono-
ridade daquele mesmíssimo instrumen-
to, na Sala São Paulo. E não deixava de ser
verdade, pois o som que dali saía era al-
go único. E essa unicidade se renovaria
no futuro, a cada nova visita do Nelson.
Quando Nelson se sentava ao pia-
no para executar as peças dos grandes
compositores românticos – Chopin,
Rachmaninov, Brahms e Schumann es-
tavam entre os seus prediletos –, ele con-
seguia magnetizar a atenção de cada um
dos músicos de orquestra, levando-nos,
literalmente, para uma viagem que con-
tinuava na memória mesmo meses e anos
após a noite do concerto.
Depois daquele primeiro concerto e
de haver me conquistado com as notas,
Nelson Freire continuou, ao longo de duas
décadas, me conquistando com a sua sim-
plicidade e a sua alma profunda e rica –
sem que houvesse nela qualquer pretensão
de profundidade ou sinal de ostentação.
Foram muitos os concertos juntos,
muitas as viagens com a Osesp, muitos os
encontros nos hotéis nos cafés da manhã
em horários improváveis. Havia ainda as
conversas nos jantares após as apresen-
tações, sempre inspiradoras. Eram con-
versas sobre música, mas também so-
bre arte e vida em geral. Durante esses
encontros, eu tentava, em vão, capturar
por meio das palavras de Nelson os se-
gredos de uma arte interpretativa. No
fim, a conclusão era sempre a mesma:
no fundo, essa arte, única, não possui
segredos. No entanto, mais ainda que
suas palavras, o que nunca conseguirei
esquecer são seus olhinhos brilhando,
quando gostava de algo.
Certa vez, na mesma Sala São Paulo,
Nelson Freire estava percorrendo as te-
clas do piano em algumas das sinuosas
harmonias de Debussy. Ouvindo os cami-
nhos fascinantes e imprevisíveis das no-
tas, comentei algo a respeito daquela mú-
sica. Ele respondeu ao meu comentário
virando para mim seu rosto gentil e me
olhando, em silêncio. Naquele instante,
os olhos dele, luminescentes como um co-
meta, guardavam todo o seu amor pela
música. Eu, minúsculo testemunho da-
quele momento, retirei-me discretamen-
te e deixei o imenso Nelson a sós com o
também imenso Debussy trocando os se-
gredos daquela mágica. •
*Emmanuele Baldini, violinista e maestro
italiano, é spalla da Osesp.
CAR TACAP I TAL
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