November 12, 2021

A periferia contra a fome

 

GUILHERME BOULOS

Muita gente se pergunta o
porquê de o povo não ir às
ruas diante do desempre-
go explosivo e da epidemia de fome no
Brasil. A tese de que o brasileiro é pas-
sivo e conformado acaba por ecoar, in-
clusive, em meios progressistas. É um
retumbante equívoco. De fato, os tem-
pos de passagem da insatisfação à re-
volta e da revolta à mobilização não
são definidos por nossa vontade e en-
volvem variados fatores sociais e cultu-
rais. Mas as periferias e os movimentos
sociais fazem mobilizações locais coti-
dianas no Brasil, em geral destituídas
de visibilidade na mídia.


No sábado 13, por organização do
MTST e da Frente Povo Sem Medo,
ocorrerão “Marchas Contra a Fome”
em várias cidades. A partir da rede das
mais de 20 Cozinhas Solidárias e de ar-
ticulações com lideranças de comunida-
des, as manifestações reunirão milha-
res de brasileiros que sentem na pele os
efeitos da política antipopular de Jair
Bolsonaro e Paulo Guedes. O esforço
de dar maior visibilidade ao sofrimen-
to de tantos brasileiros teve um marco
importante na ocupação simbólica da
Bolsa de Valores em setembro.


O objetivo das marchas é justamente
este: colocar na agenda pública um de-
bate que o establishment prefere manter
oculto. A pauta dos movimentos es-
tá centrada na construção de uma po-
lítica emergencial de combate à fome.
Levantamento do Instituto Vox Populi
publicado no início deste ano apontou
que 19 milhões de cidadãos passam fo-
me no Brasil, praticamente o dobro de
três anos atrás. O aumento deve-se a uma
combinação explosiva de desemprego,
inflação dos alimentos e desmonte das
políticas de segurança alimentar.


Um plano emergencial contra a fo-
me passa por quatro medidas princi-
pais. Primeiro: garantir uma Renda
Básica permanente para atender as fa-
mílias mais vulneráveis nas periferias
e no interior do País. O fim do Bolsa
Família e as incertezas de critérios e
abrangência do Auxílio Brasil colocam
essa meta em xeque. Segundo: recupe-
rar os estoques públicos de alimentos da
Companhia Nacional de Abastecimento,
que têm justamente o papel de colocar
produtos no mercado para reduzir pre-
ços em momentos de surto inflacioná-
rio. Bolsonaro desmontou a Conab. Em
2019, o governo vendeu mais de 30 ar-
mazéns públicos. É preciso recuperar os
estoques reguladores. Terceiro: retomar
imediatamente os programas de estímu-
lo à agricultura familiar, a exemplo do
Programa de Aquisição de Alimentos
(PAA), para aumentar a produção des-
tinada ao mercado interno. Os progra-
mas de crédito e compra pública dos pe-
quenos produtores têm hoje o pior or-
çamento da história. E, por fim, quar-
to: apoiar as redes de distribuição de ali-
mentos nas zonas urbanas mais vulne-
ráveis, como restaurantes populares e
cozinhas solidárias.


É possível combater a fome de modo
rápido e eficiente, desde que se tenha
empenho político. É isso que o ciclo
de mobilizações das “Marchas Contra
a Fome” pretende pautar na agenda
nacional. Nosso país tem um histórico
de importantes lutas nessa área, com
destaque para o Movimento Contra a
Carestia, organizado no início dos anos
1980, em São Paulo, para exigir o conge-
lamento dos preços dos alimentos e au-
mento do salário mínimo. Naquele pe-
ríodo, ainda na ditadura, o Brasil vivia
uma grave crise econômica, com fortes
paralelos com o momento atual. O mo-
vimento nasceu das periferias da cidade,
numa articulação com as Comunidades
Eclesiais de Base, e promoveu importan-
tes mobilizações e um abaixo-assinado
com mais de 1,2 milhão de assinatu-
ras. A falta de respostas do ditador João
Figueiredo fez com que a luta se desdo-
brasse numa radicalização, com a ocu-
pação do Palácio dos Bandeirantes e sa-
ques na região de Santo Amaro.


São momentos em que o Brasil real
grita e vai às ruas. Nenhum processo
de mobilização começa com milhões
nas ruas. A dinâmica é de acúmulo de
forças. As manifestações do dia 13 vão
acontecer em São Paulo, Rio de Janeiro,
Belo Horizonte, Recife, Maceió, Aracaju,
Ceilândia, Boa Vista e Montes Claros. É
um importante começo. Em São Paulo,
terminará em frente à Catedral da
Sé com um evento com o padre Júlio
Lancelotti. Mais do que reclamar que o
povo está acomodado e não se mobiliza,
o papel dos progressistas é apoiar e parti-
cipar das manifestações populares quan-
do elas surgem. A fome não espera até as
eleições de 2022. •

 

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