November 28, 2021

Guedes, do paraiso á frigideira

 


 p or A N DRÉ BA R RO C A L

O ministro Paulo
Guedes participou
nos últimos dias,
em Washington,
de reuniões peri-
ódicas do Fundo
Monetário Inter-
nacional, do Banco Mundial e de autori-
dades econômicas de países do G-20. Ape-
sar de se sentir em casa nos States, ele teve
dissabores na viagem. O FMI cortou para
1,5% a previsão de crescimento brasileiro
no eleitoral ano de 2022. O Prêmio Nobel
de Economia consagrou três pesquisado-
res e um deles, o canadense David Card,
provou que aumentar o salário mínimo
não causa desemprego, ao contrário, um
golpe na teimosia neoliberal do Posto Ipi-
ranga. De quebra, o Chicago Old teve de
responder a jornalistas estrangeiros so-
bre aquela sua empresa no paraíso fiscal
das Ilhas Virgens Britânicas revelada nos
Pandora Papers.


No Chile, outra pátria amada pelo
ministro devido ao pinochetismo, o es-
cândalo custou ao presidente Sebastián
Piñera, dono de offshore nas mesmas
ilhas, um pedido de impeachment no Con-
gresso. Aqui, o caso dá munição para o tal
Centrão governista, senhor do Parlamen-
to, intensificar a fritura de Guedes, com o
objetivo último de tirá-lo do cargo. O mi-
nistro foi convocado a dar explicações no
plenário da Câmara, e os deputados pre-
param temas indigestos para embaraçá-
-lo na arapuca. Assuntos que não se li-
mitam aos resultados pífios da econo-
mia brasileira, mas também a “negó-
cios ocultos” mantidos por ele no Bra-
sil e comparações com Eduardo Cunha,
cassado em 2016 por ter mentido sobre
(adivinhe?) uma firma em paraíso fiscal.
Um dos temas à espera de Guedes é
a mudança no projeto de nova cobran-
ça do Imposto de Renda enviado em ju-
nho ao Congresso. Diante da revelação
da offshore em nome do ministro, a mo-
dificação admite novas interpretações.
O artigo 6° do projeto taxava os lucros
de empresas em paraísos fiscais contro-
ladas por brasileiros. Mais: considerava
ganho de capital passível de tributação o
lucro com a variação do dólar na hora da
prestação de contas ao Fisco. As taxações
haviam sido idealizadas pela Receita Fe-
deral, em virtude de esforços internacio-
nais contra paraísos fiscais.


As taxações sumiram do projeto quan-
do o relator na Câmara, Celso Sabino, en-
tão no PSDB, hoje no PSL, apresentou seu
parecer, em 10 de agosto. “Por que (o pre-
sidente) não fala que o Paulo Guedes in-
termediou, no projeto sobre o Imposto de
Renda, a retirada da taxação de recursos
no exterior, para poder aliviar os seus (do
ministro) rendimentos em dólar?”, per-
gunta o deputado Júlio Delgado, do PSB.


Acusação ecoada pelo neoliberal Kim
Kataguiri, do DEM, para quem houve “um
esquema criminoso de uso de cargo públi-
co para enriquecimento ilícito”. Questio-
nada sobre a participação de Guedes no
sumiço do artigo, a pasta da Economia diz
que Sabino nega ter havido pedido do mi-
nistro. E que não “faz sentido” supor que o
governo proporia a taxação e, depois, pe-
diria à Câmara para derrubá-la. Não faz?


A Lei de Conflito de Interesses, a
12.813, de 2013, diz, no artigo 5°, que há
conflito se um ministro “praticar ato em
benefício de interesse de pessoa jurídica
de que participe (...) e que possa ser por
ele beneficiada ou influir em seus atos de
gestão”. Se Guedes tentasse impedir que a
proposta de taxar offshore fosse formula-
da em sua seara, poderia despertar a aten-
ção de testemunhas à volta. Nessa hipóte-
se, a exclusão no Congresso lhe seria con-
veniente: passaria como obra alheia. “Se
o ministro de fato intercedeu para obs-
taculizar a taxação periódica de paraí

sos, se autobeneficiou”, afirma o advoga-
do Mauro Menezes, presidente da Comis-
são de Ética Pública de 2016 a 2018. Seria,
prossegue, um ato de improbidade admi-
nistrativa previsto na lei de 2013 e na Lei
de Improbidade, a 8.429, de 1992, que fixa
como punição a proibição de ocupar car-
gos públicos por oito anos, ressarcimento
ao Erário do dano causado e multa.


A oposição cobrou do Minis-
tério Público Federal que
investigue Guedes por im-
probidade. O procurador-
-geral da República, Au-
gusto Aras, abriu uma “averiguação pre-
liminar”. Os advogados do ministro envia-
ram à Procuradoria provas, segundo eles,
de que seu cliente se afastou da gestão da
offshore em dezembro de 2018, antes de
tomar posse no governo. Detalhe: são os
mesmos defensores de Eduardo Cunha no
passado, Ticiano Figueiredo e Pedro Ivo
Velloso. Afastar-se bastaria? Guedes mon-
tou a empresa em 2014 com a filha, Paula,
e 8 milhões de dólares, dinheiro guardado
em Nova York. Em 2015, sua esposa, Ma-
ria Cristina, entrou como sócia e depositou
mais 1,5 milhão. Quer dizer, o Posto Ipi-
ranga pode até não ter feito negócios com
a Dreadnoughts, mas o que o impediria de
telefonar para a família e dar umas dicas?


Em 2019, a Comissão de Ética recomen-
dou a Guedes que a empresa não fizesse
negócios, enquanto ele estivesse no car-
go. Idem ao presidente do Banco Central,
Roberto Campos Neto. O banqueiro abriu
uma offshore, a Cor Assets, no mesmo pa-
raíso fiscal, em 2004, com 1 milhão de dó-
lares. Diz tê-la fechado em 12 de agosto de
2020. Curioso: foi uma semana após o BC
reduzir a taxa de juros para 2%, a menor
da história. Quanto menor a Selic, mais
chance de o dólar subir. Outra curiosida-
de: um mês antes, o Conselho Monetário
Nacional, integrado por Guedes e Campos
Neto, decidira que movimentações acima
de 100 mil reais, se feitas no exterior, de-
veriam ser registradas no BC.


Campos Neto foi convidado, na compa-

nhia de Guedes, a comparecer ao Senado.
A dupla deveria prestar esclarecimentos
na segunda-feira 18, mas como será vés-
pera do relatório da CPI da Covid, a “con-
versa” ficou para mais adiante. Quanto
aos deputados, deixaram Campos Neto
de lado e miraram em Guedes. A propos-
ta de obrigar o ministro a ir ao plenário
partira da oposição. Sem os votos da base
governista, porém, não teria sido aprova-
da, em 6 de outubro, por 310 a 142, placar
que por si só foi um sinal para o ministro.
Este terá de explicar violações potenciais
de duas regras. Do artigo 5° do Código de
Conduta da Alta Administração Federal,
que proíbe uma autoridade de ter investi-
mentos influenciáveis por decisões pró-
prias ou informações privilegiadas, e do
artigo 37° da Constituição, que impõe a
moralidade como um dos princípios a ser
obedecidos no setor público. “É um caso
gravíssimo, o ministro já deveria ter si-
do demitido”, afirma o líder da oposição,
Alessandro Molon, do PSB.


Na hora de decidir a con-
vocação plenária, houve
uma reviravolta entre os
governistas que jogou
óleo na fritura do minis-
tro. Um movimento liderado pelo PP, a si-
gla do comandante da Câmara, Arthur Li-
ra, e do chefe da Casa Civil, Ciro Noguei-
ra. O líder do governo, Ricardo Barros, ou-
tro pepista, queria salvar Guedes. Sugeriu
que fosse convidado (convite pode ser re-
cusado, convocação não) e comparecesse
no dia 13. PL, PSD, Republicanos e PP, si-
glas do Centrão, apoiaram. Mas eis que
o líder pepista, Cacá Leão, soldado de Li-
ra, mudou de ideia: “Eu conversava ago-
ra com alguns colegas da minha banca-
da, e há o entendimento da importância
da vinda do ministro Paulo Guedes a este
plenário, para esclarecer tudo que tem si-
do falado na imprensa e agir com a serie-
dade de que este momento precisa”.
A convocação, diz um estrategista do

Centrão, foi o começo do fim do Posto Ipi-
ranga. O bloco, prossegue o informante,
odeia o ministro e viu no caso da offshore
a chance de resolver o conflito. Em algum
momento, aposta a fonte, o Centrão dará
um ultimato em Bolsonaro: degole Gue-
des. Mas por que a bronca com o ministro?
Eleição. E não apenas em razão da econo-
mia do País. O Chicago Boy, ou Old, contro-
la os bancos públicos e não aceita entre-
gar diretorias a apadrinhados do grupo,
cargos capazes de colocar verba pública a
serviço de campanhas. Ciro Nogueira, por
exemplo, estaria de olho em indicações na
Caixa Econômica Federal. Aliás, Noguei-
ra tenta emplacar o novo chefe do Banco
do Nordeste, após a demissão de Romil-
do Rolim, em setembro. Rolim era apadri-
nhado do PL e perdeu o cargo após Bol-
sonaro procurar o presidente do partido,
Valdemar Costa Neto, para reclamar que
o banco firmara convênio de cerca de 600
milhões de reais com uma ONG suposta-
mente ligada ao PT.


A sessão da Câmara que convocou
Guedes foi presidida pelo vice-presiden-
te, Marcelo Ramos, do PL. Lira tinha via-
jado na véspera para Roma, de onde che-
gou na quarta-feira 13. Veja-se a visão de
Ramos sobre o Posto Ipiranga: “O gover-
no migra do negacionismo sanitário pa-
ra o negacionismo econômico”, enquan-
to se “agrava a pandemia do desemprego,
da fome, da inflação e dos juros”. Seu co-
lega de bancada Altineu Côrtes, chefe do
PL no Rio de Janeiro, mandou a colegas,
em agosto, um vídeo a pedir a cabeça de
Guedes: “Muita gente dentro do governo,
que quer o bem do governo Bolsonaro,
torce pro senhor sair. Eu acho que o se-
nhor finge que não sabe”.


E como torce. Entre ministros de Bol-
sonaro circulou um vídeo duro sobre Gue-
des e sua offshore, conforme o site Poder
360. O vídeo era de um dos fundadores
do banco de investimentos Brasil Plural,
Eduardo Moreira. Desse banco, registre-
-se, saiu o atual presidente da Caixa, Pe-
dro Guimarães. Segundo Moreira, uma
pessoa só guarda dinheiro em paraíso
fiscal por um de três motivos: “Ou ela quer
fugir dos impostos e não pagar em seu país.
Ou ela quer ocultar patrimônio, para que
ninguém saiba o que ela tem. Ou ela quer
se proteger de alguma ruptura econômica
que vai acontecer”. Qualquer uma das hi-
póteses, dizia Moreira, é “escandalosa”,
em se tratando do ministro da Economia.


Quem teria tido a iniciativa de distri-
buir o vídeo e sugerido pôr na vaga de Gue-
des o ex-secretário do Tesouro Nacional
Mansuetto Almeida? Algum general-mi-
nistro, desses que sopram à mídia no es-
curinho que Guedes é fraco e não apro-
va nada no Congresso? Ou seria um lu-
minar do Centrão? Quem sabe Ciro No-
gueira (Casa Civil), do PP? Ou Flávia Ar-
ruda (Secretaria de Governo), do PL? Ro-
gério Marinho (Desenvolvimento Regio-
nal), ex-PSDB, que Guedes chama de “mi-
nistro fura-teto”? Fábio Faria (Comunica-
ções), do PSD? Algumas horas após a Câ-
mara armar a arapuca, Guedes mandou a

Congresso um ofício com mimos ao Cen-
trão, baseado em um trabalho concluído
por sua equipe às 22h39 daquele dia. Coin-
cidência? Ou uma tentativa de desarmar
os ânimos? Dúvidas à parte, quem pagou
o pato foi um colega de governo, o minis-
tro da Ciência e Tecnologia, Marcos Pon-
tes. Um pato de 650 milhões de reais.


Em agosto, o governo propuse-
ra ao Congresso uma lei pa-
ra aumentar a verba de Pon-
tes neste ano em 650 mi-
lhões. O montante sairia do
Fundo Nacional de Ciência e Tecnologia,
recheado com mais de 5 bilhões de reais,
quantia bloqueada pela área econômica.
A lei liberava parte do fundo. De olho no
dinheiro extra, o CPNq lançara um edital
para distribuir 200 milhões de reais em fi-
nanciamento a projetos de pesquisa. Mais
de 30 mil interessados estavam inscritos
até 30 de setembro. O ofício de Guedes jo-
gou um balde de gelo na galera. Reformu-
lava o projeto para ratear os recursos com
outras áreas: 252 milhões para o Desen-
volvimento Regional, 120 milhões para a
Agricultura, 100 milhões para as Comuni-
cações e 28 milhões para a Cidadania, qua-
tro pastas controladas por indicados polí-
ticos do Centrão (Saúde, Educação e políti-
ca nuclear foram as outras contempladas).


O Congresso aprovou a lei no dia se-
guinte. Pontes estrebuchou em público.
Disse que não sabia de nada e fora “pe-
go de surpresa”, que aquilo era “falta de
consideração”, precisava ser “corrigido ur-
gentemente” e que até havia pensado em
se demitir. A Sociedade Brasileira para o
Progresso da Ciência aponta risco de “apa-
gão científico” no País e organizou mani-
festações para a sexta-feira 15, Dia do Pro-
fessor. Detalhe: de 2020 para 2021, o or-
çamento de Pontes perdera 3,3 bilhões.
Não foi a única lei em que a interferên-
cia de Guedes criou confusão. No dia 6,
Bolsonaro vetou um projeto que criava
um programa de distribuição gratuita de
absorventes para alunas da rede pública,
mulheres que moram nas ruas e presidi- 

árias. O projeto tinha sido apresentado
pela deputada Marília Arraes, do PT, em
2019, originalmente restrito às estudan-
tes. A Câmara aprovou-o em 26 de agosto
e o Senado, em 14 de setembro. Entre os
deputados estimava-se que 5,6 milhões
de mulheres seriam beneficiadas, com
oito absorventes por ano, ao custo de 84
milhões de reais, bancados pelo SUS e pe-
lo Fundo Penitenciário Nacional. Depois
de ouvir Guedes, o presidente vetou tre-
chos da lei, aqueles que tratavam dos re-
passes. Logo em seguida, a ministra da
Mulher e da Família, Damares Alves, saiu
em defesa do chefe: “A prioridade é vaci-
na ou absorvente?” A reação contra o go-
verno foi forte e Damares anunciou um
programa federal para substituir a pro-
posta legislativa. Será?


A situação econômica do
País, com desemprego
e inflação elevados, ali-
menta a hostilidade do
Centrão em relação a
Guedes. Nos últimos dois meses, a eco-
nomia superou a Covid-19 como princi-
pal problema apontado pelos brasileiros.
São 44% com essa opinião, ante 24% que
apontavam o Coronavírus, conforme pes-
quisa da consultoria Quaest. O otimismo
com o futuro encolheu (de 50% para 39%
desde agosto), ao mesmo tempo que pio-
rou o mal-estar sobre o que aconteceu de
um ano para cá (de 62% para 69%). Resul-
tado: 53% acham o governo ruim ou pés-
simo, só 20% pensam ser bom ou ótimo.
“O sentimento com a inflação está cor-
roendo a popularidade do presidente”,
afirma Felipe Nunes, cientista político da
UFMG e sócio da Quaest. A alta dos pre-
ços em setembro foi a maior desde 1994,
início do Plano Real, 1,1%. Em 12 meses,
chegou a 10,2%, a pior em cinco anos. Co-
mer ficou mais caro (34% de alta do boti-
jão de gás, 28% no frango, 15% na carne
e no ovo), idem assistir à tevê em casa (a
conta de luz subiu 28%) e sair de carro (o
etanol elevou-se 64% e a gasolina, 39%).


Em Washington, Guedes admitiu à
CNN e à Bloomberg que a inflação é um
“problema”, mas atribuiu-o a um fenôme-
no “no mundo todo” decorrente dos pre-
ços da comida e da energia. Meia verda-
de. Nos Estados Unidos, a inflação em 12
meses até setembro está em 5,4%, índice
que não se via por lá desde os anos 1990.
Ponto para Guedes. Contra o ministro jo-
ga, porém, a inação resultante da convic-
ção neoliberal. Exceto pelo aumento dos
juros do BC, o governo nada faz para se-
gurar a gasolina e os alimentos. Ao con-
trário, aceita que a petroleira siga o script
de uma companhia privada em busca de
lucro gordo. Ignora medidas de estoques
reguladores de alimentos. E deixa o dólar
subir à vontade, o que influencia o preço
final das commodities.


A inflação leva o BC a subir o juro, e es-
sa é uma das razões para o FMI ter baixa-
do de 1,9% para 1,5% sua previsão de cres-
cimento do Brasil em 2022. Uma projeção
otimista. O Itaú estima em 0,5%. As ven-
das do varejo em agosto dão razão aos cé-
ticos. Tombaram 3,1% em relação a julho,
sinal de que o segundo semestre do ano se-
rá pior do que se imaginava. “Tem algu-
ma ligação com o aumento da taxa de ju-
ros, mas certamente tem na alta da infla-
ção uma das maiores causas”, na visão do
economista Paulo Gala, do Banco Fator.
Na pesquisa Quaest, Bolsonaro é tido co-
mo totalmente ou muito culpado por mais
da metade da população (54%). Enquanto
Lula é tido como presidenciável mais ca-
paz de arrumar a casa econômica.


“A economia não é uma coisa difícil”,
disse o petista no dia 8 em Brasília, requer
“credibilidade” (que a população acredite
no governo) e “previsibilidade” (que não
seja surpreendida). “Só podia acreditar
no Guedes como economista quem queria
destruir o Estado brasileiro. Quem queria
vender a Eletrobras, a Radiobras, a Petro-
bras, vender refinaria. Ele já deu demons-
tração de que entende de qualquer coisa,
menos de economia, de economia social,
inclusive. Pobre não existe na vida dele,
trabalhador não existe na vida dele.”


Mas paraíso fiscal existe. E como. •

 

 

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