Laura Carvalho
A discussão sobre política econômica no Brasil se afastou completamente dos gigantescos desafios que serão enfrentados pelo mundo nos próximos anos
A chegada da pandemia trouxe um consenso ao redor do mundo acerca da necessidade de uma forte e rápida atuação do Estado para atenuar os efeitos econômicos, sanitários e sociais da covid-19. O mais recente Monitor Fiscal do FMI (Fundo Monetário Internacional) sugere que os 47 países analisados destinaram em média 6,5% a mais do PIB ao combate à crise até setembro de 2020. Apesar do discurso fundamentalista de mercado da equipe econômica do governo Bolsonaro, o Brasil não fugiu à regra. Ao contrário, foi o 12o país que mais destinou recursos para as medidas de resposta à crise em relação ao tamanho de sua economia (8,3% do PIB) e o segundo entre os países emergentes.
Como resultado dessas respostas substantivas, a dívida pública global chegará a um recorde de 100% do PIB mundial em 2020. Ainda assim, o FMI prevê que em 2025 os déficits fiscais de muitos dos países já estarão novamente no nível projetado pré-pandemia, sem a necessidade de se cortar gastos públicos ou elevar impostos. Isto porque o Fundo espera que o custo médio da dívida (juros) ficará abaixo do crescimento econômico na maior parte das economias avançadas, contribuindo para reduzir o nível de endividamento em relação ao PIB mesmo com sucessivos déficits primários. O coordenador de política fiscal do FMI, Vitor Gaspar, declarou ao jornal britânico Financial Times que os países nessa situação não têm necessidade de implementar planos de ajuste fiscal para estabilizar suas dívidas — uma recomendação que o jornal contrapõe à defesa da austeridade feita no mesmo relatório em 2010-2011, há apenas uma década.
A recomendação parece ter dado o sinal verde para que diversos países da Europa e da Ásia continuem desenhando e implementando seus pacotes fiscais voltados a uma recuperação econômica sustentável e inclusiva pós-pandemia. De fato, o Monitor Fiscal do FMI recomenda explicitamente que na terceira fase da pandemia, que se inicia somente após o controle do vírus pelo desenvolvimento de vacinas ou tratamento (após as fases de lockdown generalizado e de abertura gradual), os países fortaleçam seus sistemas de proteção social e expandam investimentos públicos de qualidade. Mas como financiar esses gastos em países com menor capacidade de se endividar?
O FMI deixa claro que países com alta proporção da dívida pública denominada em moeda estrangeira podem ser obrigados a recorrer a um ajuste fiscal menos gradual que os demais. Mas mesmo nesse caso, o relatório recomenda cuidado com a composição desse ajuste, que não deve prejudicar a retomada. Em particular, a recomendação é elevar a capacidade de arrecadação: “uma opção para reduzir a queda no consumo e no produto no curto prazo incluiria, por exemplo, elevar transferências focalizadas para proteger os mais vulneráveis financiadas por impostos progressivos sobre a renda”. “Outra opção é financiar investimento público adicional com impostos indiretos mais altos”, complementa o texto, antecipando um tema explorado em outro capítulo do Monitor Fiscal.
O propósito da reforma administrativa deveria ser o
de melhorar a qualidade dos serviços prestados à população,
e não o de gerar não sei quantos bilhões para
reduzir a dívida pública
O Brasil está longe de ser considerado um dos países com menor capacidade de financiamento entre os analisados pelo FMI. Afinal, sua dívida pública é quase toda em moeda nacional e o governo não chegou nem perto de precisar recorrer a organismos multilaterais para financiar seus altos gastos com o auxílio emergencial e outras medidas adotadas nas primeiras fases da pandemia. Ainda assim, os formuladores da política econômica doméstica não demonstram qualquer preocupação com o caráter contraproducente que um ajuste fiscal feito de maneira rápida e equivocada poderia ter para as possibilidades de recuperação da economia brasileira.
Ao contrário, diante da impossibilidade de se recorrer a aumentos de imposto sobre os mais ricos como forma de financiar transferências de renda aos mais pobres e/ou investimentos públicos em infraestrutura enquanto continua a vigorar o formato atual de teto de gastos, o debate brasileiro já voltou a girar em torno das diferentes formas de se alterar a Constituição para reduzir gastos públicos obrigatórios. Como explicar que a prioridade número 1 na agenda econômica seja a realização de uma reforma administrativa em meio aos nossos enormes desafios na área de educação, saúde e proteção social, à maior recessão anual de que se tem notícia, à taxa de desemprego que já ultrapassa os 13,8% (fora os que saíram da força de trabalho) e aos 150 mil mortos por covid-19?
Veja bem. Não há dúvidas de que uma reforma administrativa é necessária para corrigir inúmeras distorções no serviço público brasileiro. Enquanto em algumas carreiras, quase todos já ganham o salário máximo, em outras pouquíssimos conseguem chegar ao topo. Enquanto para alguns servidores os salários superam em muito os recebidos no setor privado, para outros a remuneração não é nada atrativa. Isso sem falar nas remunerações acima do teto constitucional e outras injustiças que conhecemos bem. Mas assim como no caso da reforma tributária ou de outras reformas necessárias, o objetivo ao discutir tais mudanças não é e nem deveria ser o de economizar o máximo possível o mais rápido possível, e sim o de favorecer uma maior eficiência e equidade dos sistemas. No caso da administrativa, o propósito deveria ser o de melhorar a qualidade dos serviços prestados à população e não o de gerar não sei quantos bilhões para reduzir a dívida pública.
Ao ler o Monitor Fiscal do FMI, fica claro como, apesar do rápido consenso formado no país no início da pandemia acerca da necessidade de se abrir mão das regras fiscais vigentes para destinar os recursos necessários ao auxílio emergencial e à saúde pública, o debate no Brasil já se descolou completamente dos enormes desafios que serão enfrentados pela economia global no próximo ano. O preço alto de nossas abissais desigualdades de renda, de raça e de acesso à saúde podem até ter servido para ativar redes de solidariedade e de mobilização em uma primeira fase, forçando uma drástica mudança de rumo da política econômica em relação à que vinha sendo realizada no país desde 2015. Hoje, no entanto, essas respostas já se assemelham às medidas frouxas de confinamento implementadas por prefeitos e governadores: retiradas cedo demais, deixarão os brasileiros com aquela velha sensação de impotência frente a uma crise em que não se vê luz no fim do túnel.
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