Naquele cenário, serviços de perícia e proteção de testemunhas
enfrentavam severas limitações. E mesmo quando havia alguma
investigação, o Poder Judiciário representava um novo entrave. “Todo o
sistema judiciário formal estava costurado a favor dessa estrutura de
poder da ditadura”, afirma o professor.
A percepção de Souza Alves encontra reforço em trecho do documento norte-americano
que lista cerca de 4.000 pessoas vinculadas a esses grupos em todo o
Brasil. “50% são policiais, e a outra metade é composta por juízes,
procuradores, advogados, militares e jornalistas.”
O sociólogo lembra ainda que esses grupos usavam múltiplas e diversas
formas de ocultação de cadáver. Se até hoje há muitos desaparecidos
políticos oriundos das classes médias, a questão se torna mais complexa
quando se trata das vítimas dos esquadrões. “A massa atingida era a
população mais pobre, os negros, os moradores de periferias e favelas.
São pessoas que não têm acesso ao sistema judiciário para buscar seus
direitos”, afirma José Cláudio.
A diferença na repercussão dos crimes cometidos contra
militantes políticos e das mortes causadas pelos esquadrões também pode
ser inserida na questão de classe e de raça no Brasil. “Muito dessa
diferença podemos verificar ainda hoje na ação das polícias nas periferias,que
matam negros e pobres. Policiais repetem o modus operandi dos agentes
da repressão durante a ditadura”, explica o professor de direito da
Universidade Mackenzie Flávio de Leão Bastos Pereira.
Durante a ditadura, os grupos guerrilheiros eram considerados mais ameaçadores para a sociedade por terem uma proposta política alternativa para o Brasil. A execução de militantes era uma violência instrumental
adotada pela repressão para evitar possíveis revoluções. Já o
extermínio de supostos praticantes de crimes comuns tinha como
justificativa o medo que a violência provocava na população, sendo mais
aceito e não raro aplaudido.
A despeito dessas diferenças, Percival de Souza, autor de “Autópsia
do Medo”, biografia do delegado Sérgio Paranhos Fleury, relata em seus
textos que os métodos adotados na repressão política eram os mesmos
usados na repressão de crimes comuns.
Sobre o papel de Fleury nos esquadrões, Souza ressalta que o delegado
“construiu a imagem de carrasco-mor, ao mesmo tempo venerado pelos
(muitos) que defendiam o regime militar”. O documento dos EUA já
percebia essa centralidade de Fleury, caracterizando-o como “uma figura
lendária no meio policial paulista” e traçando suas ligações com figuras
proeminentes da ditadura.
Os crimes cometidos no âmbito da repressão política
e os assassinatos de supostos criminosos comuns pelos esquadrões da
morte sempre foram tidos como pertencentes a universos distintos. No
entanto, a trajetória de personagens como Fleury mostra que esses mundos
eram muito próximos.
Depoimento do general Adyr Fiúza de Castro, um dos criadores do
Centro de Informação do Exército (CIE) que em 1972 chefiava o Centro de
Operações de Defesa Interna (Codi), para a Fundação Getúlio Vargas em
1993 relata a confiança dos militares no delegado. “O Fleury era muito
eficiente, era o chefe do Dops mais eficiente que havia no Brasil.
Eficientíssimo. Estava instalado num grande prédio, e contava com mais
de 40 delegados.”
Esse reconhecimento também é identificado no relatório da
inteligência dos EUA. “Fleury goza de amplo respeito e admiração entre
as forças militares e de segurança por rastrear, com considerável risco
pessoal, líderes bem-armados de grupos subversivos. Apesar de suas
atividades de esquadrão da morte e do vício em drogas, sua utilidade lhe
rendeu apoio e patrocínio de pessoas em altos cargos, incluindo o
ministro do Exército, Orlando Geisel”, afirmou o embaixador John Hugh
Crimmins, em telegrama enviado ao Departamento de Estado, em 24 de
outubro de 1973. Orlando, irmão do futuro presidente Ernesto Geisel, era
então ministro de Médici.
Na mensagem, Crimmins chama Fleury de “notório organizador de esquadrões da morte em São Paulo”.
O respeito obtido por Fleury garantia a ele totais regalias em São Paulo
para agir. Entrava e saia de presídios, retirava os presos por crimes
comuns e os assassinava na rua. Os procedimentos que levavam à execução
de prisioneiros eram realizados às claras, livremente.
Adriano Diogo, ex-preso político que presidiu a Comissão da
Verdade do Estado de São Paulo, presenciou um desses momentos. “Eu
estava preso em uma cela no presídio do Hipódromo, em São Paulo, em
junho de 1973. Vi o Fleury retirar da cela um japonês, do qual ninguém
sabia o nome, que havia chegado no dia anterior. Ele falava que se o
Fleury fosse pegá-lo, seria morto. Foi o que aconteceu. Depois ficamos
sabendo que o japonês apareceu morto em uma rua da cidade”, relata.
História semelhante foi descrita por Ivan Seixas, que foi assessor
especial da Comissão Nacional da Verdade e também é ex-preso político.
“Fleury aplicava o terrorismo de Estado na população civil. Lembro-me
que, quando estava no presídio Tiradentes, ele e os integrantes do
esquadrão chegavam, pegavam meia dúzia de presos comuns, levavam
amarrados por cordas e ninguém mais voltava. Eram exterminados na rua.”
Apesar da relação entre os esquadrões da morte e as autoridades, a
repercussão dos crimes se tornou tão grande que, no início dos anos
1970, o Ministério Público de São Paulo determinou a abertura de
investigação sobre o tema. Hélio Bicudo, então promotor, foi nomeado para a tarefa.
A investigação logo gerou reação dentro dos órgãos da ditadura, como
revela um segundo relatório, elaborado pelo subsecretário adjunto de
Defesa para Assuntos de Segurança Internacional (ISA-IA, na sigla em
inglês), R. F. Corrigan.
Segundo seu texto, de agosto de 1971, “as forças de segurança locais
estão incomodadas com a persistência de Bicudo em agir contra Fleury e
seus principais aliados na campanha antiterrorista”. “Entre as
autoridades de segurança locais”, completa, “Fleury é considerado ‘o
homem indispensável’, mas até agora não tiveram sucesso em suspender o
processo penal contra ele”.
Corrigan apontava, ainda, que Bicudo deveria ser retirado do caso,
“presumivelmente como um primeiro passo para livrar Fleury das acusações
de homicídio”. E concluía: “Que ele ou seus principais associados sejam
levados a julgamento parece improvável neste momento”.
De fato, Bicudo foi afastado das investigações e substituído por
outros dois promotores. Quando estes pediram a prisão de Fleury em 1973,
os norte-americanos demonstraram surpresa. “Isso é surpreendente”,
afirmava o embaixador em novo telegrama, “dadas as ligações de Fleury,
pessoa influente nos círculos da segurança militar. A questão permanece
se Fleury realmente será julgado ou condenado”.
A conjunção entre inação para investigar os casos denunciados e a perseguição aos procuradores levou à criação da chamada Lei Fleury, como
ficou conhecida a alteração na legislação penal, promulgada em 1973,
permitindo recurso em liberdade. Foi elaborada para proteger o delegado e
livrá-lo da prisão.
Ao analisar as relações entre os esquadrões da morte e o regime
ditatorial, o professor Bastos Pereira, da Universidade Mackenzie, nota
que “o porão da ditadura não era no porão do governo; ficava na parte de
cima, onde estão os que mandam”.
Na percepção de Souza Alves, da UFRJ, frente a todos esses fatores,
entende-se por que os mortos pelos esquadrões da morte nunca foram
contabilizados nas listagens oficiais de vítimas da ditadura.
Nenhuma das três comissões federais criadas no Brasil para
reconhecer e reparar os crimes do regime militar —a Comissão Especial
sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (1995), a Comissão de Anistia
(2002) e a Comissão Nacional da Verdade (2012)— tratou dos grupos de
extermínio.
Para enfrentar o tema, tais órgãos não precisariam apenas de recursos
materiais e humanos. “Também seria necessária uma decisão política de
investigar os assassinos envolvidos com grupos de extermínio”, afirma o
sociólogo.
O extermínio como forma de resolver o problema de segurança pública moldou a atuação do Estado brasileiro,
que apostou no patrulhamento ostensivo nos territórios vistos como
perigosos. Como resultado, muitas mortes e o aprisionamento
desnecessário de inocentes e de pessoas pouco importantes na estrutura
dos negócios criminosos.
Os efeitos somados continuam a castigar o Brasil. Parte significativa
da população vê na violência um instrumento para estabelecer autoridade
e ordem. O presidente Jair Bolsonaro é um dos principais propagadores desses valores.
Em suas três décadas de carreira parlamentar, sempre fez apologia da violência policial. Agora na Presidência, segue incentivando essas práticas, que representam hoje o principal entrave para a democracia e o Estado de Direito no Brasil.
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