Em meio à maior pandemia do século, quais são os temores e conflitos do ministro da Saúde que tenta se equilibrar entre a ideologia e a ciência
Naira Trindade, Natália Portinari e Juliana Dal Piva
O dia do “fico” de Luiz Henrique Mandetta começou com uma videoconferência e terminou com lamentos de frustração. Era manhã da quarta-feira 25, e o ministro fora desautorizado de forma constrangedora pelo presidente da República na noite anterior, quando Jair Bolsonaro fez um pronunciamento à nação negando a necessidade de isolamento social como forma de conter o avanço do novo coronavírus. Ao contrariar publicamente a orientação mais premente de seu ministro da Saúde, o presidente abriu uma vala de distanciamento com Mandetta e colocou-o entre a cruz e a espada. Se ficasse no governo, estaria sujeito a um chefe que o diminuía diariamente. Se saísse, deixaria a pasta à mercê da ala mais radical do bolsonarismo, que enxerga na paralisação provocada pela pandemia um obstáculo à reeleição do presidente em 2022. Naquela manhã, Mandetta participou da videoconferência em que Bolsonaro e o governador de São Paulo, João Doria, se desentenderam. Depois da contenda, foi chamado pelo presidente a permanecer na sala.
O ministro ficou — pelo menos até o final da pandemia. Tem dito a pessoas próximas que, quando tudo passar, não pensa em continuar no ministério. Mas, naquela quarta-feira, na entrevista diária que concede à imprensa para divulgar os números da doença, tentou distensionar a relação com o presidente e, para isso, flexibilizou a recomendação de isolamento que Bolsonaro tanto criticava.
Depois de sua fala colocando em xeque o isolamento, Mandetta foi bombardeado por ligações de aliados e técnicos da saúde. Ainda muito ligado à classe médica de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, ele tem o mesmo número de celular desde quando atendia em consultório. Também permanece em grupos de WhatsApp dos quais fazia parte antes de virar ministro. Nesses grupos, foi duramente criticado. Cobravam dele uma defesa mais enérgica das medidas de isolamento social, conforme as diretrizes das principais autoridades sanitárias do mundo. Sua mulher, Terezinha, médica em um hospital público de Brasília, é também defensora da política de isolamento — e usou a hashtag #ficaemcasa justamente ao publicar uma foto do casal. Em uma postagem, o deputado federal Fábio Trad (PSD-MS), primo de Mandetta, fazia um apelo para que o ministro não abandonasse suas convicções. “Fique com a ciência. Se isto lhe custar o ministério, paciência. Sangue não vira água!”, escreveu o político em sua conta no Twitter.
“Depois de sua fala colocando em xeque o isolamento, Mandetta foi bombardeado. Nos grupos de WhatsApp de médicos dos quais faz parte, foi duramente criticado. Até sua esposa, Terezinha, postou nas redes sociais uma foto com a hashtag #ficaemcasa”As cobranças surtiram efeito. Mandetta recuou da retórica presidencial e, no sábado pela manhã, se dirigiu ao Palácio da Alvorada para uma reunião com ministros e Bolsonaro. Lá, informou ao presidente que teria de “endurecer” o discurso para que as pessoas permanecessem isoladas. Caso contrário, todos assistiriam a milhares de mortes de infectados pela Covid-19. Deu ainda uma reprimenda no presidente, em tom cordial, mas sério. Disse que, quando Bolsonaro sai às ruas para se encontrar com o povo ou diz que o brasileiro “pula no esgoto” e “não acontece nada”, está desautorizando seu ministro da Saúde. E avisou: quando houvesse pronunciamentos desse tipo, ele teria de divergir do próprio chefe. Foi o que fez na coletiva dada naquele mesmo dia. No domingo, em sua casa, em Brasília, Mandetta acompanhou pela TV a cena do presidente passeando por cidades-satélites, provocando aglomerações por onde passava. Aos aliados que demonstraram incredulidade diante das ações de Bolsonaro, Mandetta evitou elevar a temperatura do episódio e pediu paciência.
De lá para cá, Mandetta tem procurado fugir de conflito. Mas não cessam em Brasília as especulações sobre quem poderá substituí-lo caso Bolsonaro o demita. Um dos interessados na vaga é o almirante Antonio Barra Torres, atual chefe da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Ao lado do presidente nas manifestações de 15 de março, Barra Torres é um militar de perfil político que compartilha com Bolsonaro não só a visão conservadora, mas também o interesse por motocicletas e tiros. Ambos se conheceram quando Barra Torres era vice-diretor do Hospital Naval Marcílio Dias, no Rio de Janeiro, local que recebeu recursos de emendas parlamentares de Bolsonaro, quando deputado. O novo coronavírus os aproximou ainda mais. Outro na fila é o ex-ministro Osmar Terra, também médico e crítico das medidas de isolamento. Na reunião organizada no Palácio do Planalto, na quinta-feira 2, para tratar das pesquisas sobre o uso da cloroquina nos tratamentos de pacientes com coronavírus, para a qual Mandetta nem sequer fora convidado, era Terra quem dava as explicações. Ele estava no comando da Secretaria da Saúde do Rio Grande do Sul quando estourou a epidemia de H1N1 e tem feito comparações entre as duas doenças — quase sempre diminuindo a importância do novo coronavírus.
“Quando deputado, na Câmara, Mandetta fazia discursos inflamados contra a contratação de médicos cubanos pelo governo petista. Mas, na vida privada, mantinha boa relação com parlamentares da esquerda, como Jandira Feghali (PCdoB-RJ)”Mais do que compromisso com o Brasil, aliados enxergam cálculo político no vaivém retórico de Mandetta. De um ministro com pouco mais de 3 mil seguidores no Twitter em janeiro, ele hoje acumula mais de 300 mil e uma popularidade superior à do presidente. Segundo uma pesquisa do Datafolha feita em março, 55% das pessoas ouvidas avaliaram positivamente suas atitudes diante da pandemia, ante 35% quando o nome em questão era o de Bolsonaro.
Os números refletem, de certa forma, sua presença. Há quase um mês, Mandetta está diariamente em rede nacional dando orientações em tom professoral a uma população majoritariamente confinada. Em suas últimas aparições, elevou os decibéis sobre a gravidade do problema, pedindo que fossem redobrados os cuidados com o contágio. No Ministério da Saúde circulam estimativas assustadoras sobre números de mortos e infectados — que vão além dos dados oficiais divulgados, em razão da subnotificação decorrente da falta de testes. Seu protagonismo foi, inclusive, um dos fatores a motivar a unificação da comunicação do governo sobre a pandemia. As coletivas diárias no Ministério da Saúde foram transferidas para o Palácio do Planalto e são, hoje, comandadas pelo ministro-chefe da Casa Civil, Walter Braga Netto. O chefe da Saúde acabou vendo sua participação ser diluída.
Bolsonaro tem por hábito se irritar quando um ministro ganha mais créditos por sua gestão do que ele próprio. Foi assim com Sergio Moro, na Justiça, e, menos frequentemente, com Paulo Guedes, na Economia. A exposição de Mandetta suscitou reação parecida. O presidente procurou dizer reiteradas vezes, em entrevistas, que, se a condução da Saúde agradava, era porque havia colocado uma equipe técnica, “diferente de outros governos”. Em outras ocasiões, deixou a ciumeira transparecer de forma mais cristalina. Em reunião no Planalto com o presidente do MDB, o deputado federal Baleia Rossi (SP), e com Carlos Marun, ex-ministro de Michel Temer, mostrou-se incomodado com o fato de Mandetta ter se reunido com os presidentes da Câmara, do Senado e do Supremo Tribunal Federal sem sua presença. “Eles fizeram uma reunião e nem me chamaram. Só chamaram o Mandetta”, reclamou Bolsonaro, segundo fontes que estiveram no encontro. Marun respondeu advertindo que, quando um presidente quer uma reunião, cabe a ele convocá-la.
A desenvoltura política que o ministro da Saúde tem mostrado, passeando sem maiores escoriações pelo fogo amigo do gabinete do ódio sem perder a credibilidade técnica como médico, foi conquistada ao longo de 15 anos de vida pública. Em 2004, seu primeiro cargo no Executivo foi como secretário de Saúde de Campo Grande, quando seu primo, o atual senador Nelsinho Trad (PSD-MS), elegeu-se prefeito. Mandetta, filiado ao MDB, mudou-se para o DEM antes de se eleger pela primeira vez deputado federal, em 2010. Em 2014, ele se reelegeu, mas, em 2018, não quis se candidatar temendo uma derrota.
Em sua vida política, Mandetta passou por transformações. No DEM, terminou deslocando-se à direita do partido, mais alinhado à elite agrária sul-mato-grossense que tinha por hábito se reunir na churrascaria Vermelho Grill para praguejar contra o PT. O político terminou, portanto, guardando distanciamento de lideranças como o atual presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e ACM Neto, que preside a sigla.
Na Câmara, fazia discursos inflamados contra a contratação de médicos cubanos pelo governo petista, sempre comparando a prática ao trabalho escravo. Atuava muitas vezes em dupla com Ronaldo Caiado, que, como ele, é médico ortopedista. Contudo, a divergência política não o impedia de dialogar com a esquerda. O deputado federal Vander Loubet (PT-MS) elogiou o convívio com o ministro. “O Zeca Dirceu tinha um problema de quadril e o Mandetta vivia cobrando que ele operasse: ‘Está na idade de fazer’”, contou Loubet, recordando o cuidado com o adversário que é filho do petista José Dirceu. Quando a vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ) foi assassinada, em 2018, Mandetta postou em suas redes uma extensa nota de pesar e repúdio — atitude que, na atual gestão, seria malvista.
A deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), também médica, relatou boa relação com o ex-colega. “É uma pessoa que trata com diálogo. Sempre foi gentil. Até para divergir é com diálogo”, disse. Para ela, Mandetta tinha uma atuação considerada “séria” na Câmara. Em atitude hoje impensável para um ministro bolsonarista, ele chegou a postar em uma rede social uma foto de Feghali com sua filha, Marina, advogada no Rio de Janeiro, no dia em que as duas se conheceram, durante um festival de cinema. Marina é mãe do único neto do ministro, Gabriel, de quase 2 anos. Em suas redes sociais, ela demonstra pouca afinidade com as ideias do governo que o pai integra. Em uma delas, no período eleitoral, repostou um texto que dizia o seguinte: “Se seu voto é no Bolsonaro, peço desesperadamente que você escute suas piores frases de novo. ‘Sou a favor da tortura’; ‘Homossexualidade se cura com cascudos na infância’; ‘Mulher tem que ganhar menos que homem porque engravida’; (…) Se você não quer o PT no governo, ainda existem opções”.~~
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Se nas relações pessoais não escondia seu lado moderado, na Câmara Mandetta tinha como principais aliados expoentes da direita que primeiro deu guarida a Bolsonaro. Além de Caiado, entre seus colegas mais frequentes estavam Onyx Lorenzoni (RS), Alberto Fraga (DF) e Abelardo Lupion (PR), todos do DEM, mas muito bem encaixados no bolsonarismo. Esse núcleo, acrescido do governador dissidente, foi responsável por sua indicação para chefiar o ministério. Assim como no caso de Tereza Cristina, ministra da Agricultura, Mandetta não foi uma indicação do partido. Hoje, exceto por Caiado, de quem segue amigo, o ministro está afastado do núcleo que um dia integrou. Fraga, outrora aliado, chegou até mesmo a empreender uma tentativa frustrada de fritá-lo em 2019, para que pudesse ocupar uma pasta na Esplanada.
No início do governo Bolsonaro, Mandetta era ávido defensor da ideia de frear o crescimento da verba para a saúde pública. Para ele, o ministério, que tem o segundo maior orçamento, atrás apenas da Educação, já era “muito grande”. A pandemia o fez deixar essas convicções de lado, ao menos temporariamente. Mas, se o ministro não costumava advogar por aumento nas despesas públicas, amealhou alguns problemas trazidos pelo dinheiro privado. Ele, seu primo, o senador Nelsinho Trad e outras 24 pessoas são alvo de duas ações por improbidade administrativa, além de um inquérito que tramita na Justiça Federal de Mato Grosso do Sul. São acusados de desviar R$ 8,1 milhões da Secretaria Municipal de Saúde de Campo Grande para a implantação de um sistema eletrônico que deveria unificar as informações de Saúde. O caso ficou conhecido em Campo Grande como escândalo Gisa, o nome do sistema — que nunca funcionou totalmente. As investigações apontam ilegalidades na licitação, como o favorecimento de um consórcio formado por empresas sem qualificação técnica, sendo que uma delas teria pago uma viagem de Mandetta para Portugal. O MPF também aponta a existência de doações ilegais de campanha ao hoje ministro por parte de uma das empresas envolvidas no certame. O caso corre em sigilo no estado e o ministro nega as irregularidades. “As provas apresentadas no processo comprovarão que são infundadas todas as alegações do Ministério Público”, disse o Ministério da Saúde, em nota.
“Mandetta e outras 24 pessoas são alvo de duas ações por improbidade administrativa, além de um inquérito que tramita na Justiça. O MPF os acusa de desviar R$ 8,1 milhões da Secretaria Municipal de Saúde de Campo Grande”Em Campo Grande, cidade onde nasceu, ele é Henrique Mandetta — sem o primeiro nome. Em família, era chamado de “cabeça amarela”, pois, quando criança, seu cabelo era mais claro que o dos irmãos e primos. É o caçula de cinco filhos do casal Hélio e Maria Olga. Depois de cursar medicina na Universidade Gama Filho, no Rio de Janeiro, especializou-se em ortopedia em Campo Grande e, posteriormente, em ortopedia infantil no Scottish Rite Hospital, em Atlanta, Estados Unidos. Nos tempos da faculdade, conheceu Terezinha Alves, com quem se casou, em 1990, na Igreja de Nossa Senhora do Outeiro da Glória, no Rio. Além de Marina, o casal tem dois filhos mais jovens, Pedro Henrique e Paulo Henrique. Devoto da leitura, o ministro é aficionado por livros de história sobre a Guerra do Paraguai (1864-1870), um dos maiores conflitos da América do Sul e que marcou seu estado, que faz fronteira com o país vizinho. Na intimidade, prefere uísque a cerveja, mas é o cigarro seu maior vício — fumante aos 55 anos, ele está no grupo de risco segundo os parâmetros do novo coronavírus. No ministério, costuma usar a pausa do cigarro para bater papo com os servidores na calçada.
Mandetta também é botafoguense doente. No quintal de terra batida da casa de sua avó Antonieta, a “vovó Teta”, aprendeu a jogar futebol, sempre no meio de campo. O time que formava com seus irmãos e primos se chamava Manequinho, em homenagem ao mascote do Botafogo. Uma vez, nos idos dos anos 1970, jogaram contra uma equipe de garotos de 10 a 14 anos integrada pelo atacante Müller, que depois ganhou fama no São Paulo e já disputou a Copa do Mundo. Mandetta gostava muito do esporte, mas estava longe de ser um gênio do gramado. Não gostava do ataque. Nas palavras de seu primo, Fábio Trad, uma expressão o define: “Um volante esforçado”.
revista ÉPOCA
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