João Paulo Cuenca
Aos nove anos, eu era um frequentador assíduo da biblioteca do colégio Sion do Rio de Janeiro —só uma década antes, ainda um semi-internato feminino comandado por freiras vestindo hábito. Mesmo com o ensino misto, as irmãs continuavam por lá, como inspetoras e bibliotecárias.
Certo dia, navegando pelo acervo da sala, encontrei uma longa fileira de livros do mesmo autor. Esse escritor deve ser muito importante, pensei, já que nenhum outro tinha tantos volumes. Tirei um “Feliz Ano Novo” da estante. A freira me proibiu levar o livro, pois impróprio para crianças. No dia seguinte, roubei. Nunca mais fui o mesmo.
Depois descobri que a madre que me proibiu a leitura era a única responsável pela compra dos títulos.
Mais uma fã de Rubem Fonseca, cujos lançamentos, ali pela segunda metade do século 20, eram esperados com a mesma avidez hoje dedicada a seriados ou rótulos de cerveja artesanal. Minto, não a mesma. Pois os livros geravam acaloradas discussões em bares e universidades —para usar palavra antiga, causavam escândalo.
E seguem causando. Se “Feliz Ano Novo” foi censurado por uma freira em 1987 e pela ditadura militar em 1975, a Secretaria de Estado da Educação de Rondônia publicou, em memorando de fevereiro deste ano, uma lista de livros a ser recolhidos das escolas com 19 títulos de Fonseca (num total de 43).
Dois anos antes, um grupo de promotores do Ministério Público ligados ao Escola Sem Partido reagiu com escândalo à leitura de “O Cobrador”, de 1979, num congresso “pró-sociedade”. Se o Brasil galopa para trás, ou nunca saiu do lugar, a obra de Rubem Fonseca continua ali —central.
O título do seu revolucionário primeiro livro, “Os Prisioneiros”, de 1963, parece premonitório da maldição que Fonseca iria representar para as gerações de escritores que se aventuraram a escrever prosa realista e urbana no Brasil depois dele —todos ainda encarcerados pela sua gigantesca sombra.
Não há, não houve e nem haverá retrato mais arrebatador e contundente do pesadelo brasileiro —violento, misógino, cruel e racista— presente no cotidiano moedor de carne das grandes cidades do país. Isso tudo e mais um pouco, com uma prosa que entra em qualquer coletânea da literatura universal do século 20.
Costumo dizer que Rubem Fonseca é o raro tipo de escritor que influencia até os que nunca leram seus livros. Talvez, inclusive, influencie romances escritos antes dele. Ou apesar dele.
Por isso, sempre estranhei que a geração de escritores cozinhada na internet no início dos anos 2000, e atirada aos palcos de festas literárias pós-Flip na década seguinte, tenha explicitamente rejeitado Rubem Fonseca como referência. Meus colegas resolveram sua angústia da influência simplesmente dando os ombros ao maior escritor brasileiro vivo, ao mesmo tempo em que brilhavam sob os holofotes que ele tanto evitou.
Sempre acusei a filiação, a epifania visceral daquela literatura que muitas vezes ameaçou os livros que eu tentava escrever, mesmo pretendendo fugir ao seu registro.
Na década de 2010, quando ainda morava no Leblon, via Rubem Fonseca almoçando quase todas as semanas com o João Ubaldo Ribeiro num boteco chamado Tio Sam, na rua Dias Ferreira. Era também comum cruzar com ele pelas calçadas, ou na fila dos correios. Vestia sempre preto, com uma boina preta.
Decidi escrever um email estúpido, falando da sua importância como autor etc., e dizendo que ficava sem jeito de falar com ele. Fonseca foi muito cordial e trocamos livros autografados pelo correio —guardo o meu como um troféu.
Algum tempo depois, no desespero que costuma assaltar escritores em meio a um manuscrito, mandei o arquivo de Word com o meu último romance para ele, que leu e respondeu, depois de um elogio seco —“mesmo assim, deve ser editorada, o que sempre melhora o texto”.
Fiquei mais dois anos trabalhando no livro, ele tinha razão. Num desses breves e generosos emails, Fonseca disse que eu deveria falar com ele da próxima vez que nos esbarrássemos, que seria um prazer cumprimentar um colega. Passei por ele tantas outras vezes, e nunca consegui.
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