April 6, 2020

Como o Rio sofreu com epidemia de gripe espanhola em 1918, mas sobreviveu para pular um carnaval inesquecível





Por William Helal Filho
Uma enfermaria com doentes contaminados pela gripe espanhola, em 1918
"Morrer na cama era um privilégio abusivo e aristocrático, que ninguém tinha. O sujeito morria nos lugares mais impróprios, insuspeitados - na varanda, na janela, no botequim. Normalmente, o agonizante pode imaginar a reação dos parentes, amigos e desafetos. Na 'espanhola' não havia reação nenhuma. Muitos caíam, rente ao meio-fio, com a cara enfiada no ralo. E ficavam, lá, estendidos, como se fossem não mortos, mas bêbados. Ninguém os chorava, ninguém. Nenhum vira-latas vinha lambê-los. Era como se o cadáver não tivesse pai, nem mãe, nem vizinho, e nem, ao menos, o inimigo".


O parágrafo acima é trecho de uma crônica de Nelson Rodrigues, publicada no GLOBO em 26 de fevereiro de 1971, na qual o dramaturgo, então colunista deste jornal, escreve sobre a terrível epidemia de gripe espanhola, que, em 1918, matou mais de 14 mil moradores do Rio e até 40 milhões de pessoas no mundo. Naquele mesmo texto, o escritor, que tinha 6 anos na época do surto, resgata também o carnaval de 1919. Segundo ele, após superar a pandemia, a cidade caiu na farra e se tornou "irreconhecível" nos quatro dias de folia. "É preciso observar que o carnaval da espanhola foi de um erotismo absurdo", descreve o autor, morto em 1980, aos 68 anos.
 
Baile a fantasia no Vila Isabe Footl Ball Club
Mais de cem anos depois da calamidade relembrada por Nelson, outra vez a cidade enfrenta uma epidemia de grandes proporções. Em meio ao recolhimento imposto pelo difícil combate ao coronavírus, talvez sirva de algum conforto ao carioca pensar que passamos por aquela situação e sobrevivemos com fôlego para pular o carnaval seguinte. Mesmo depois de tanta tristeza.

Repletos de cenas assustadoras, os vários relatos do colunista sobre a gripe espanhola são comumente usados por historiadores para ilustrar um capítulo pouco estudado da nossa história. Em seu artigo "O carnaval, a peste e a espanhola", o pesquisador Ricardo Augusto dos Anjos, da Casa de Oswaldo Cruz, baseia-se em documentos, entrevistas e trechos de crônicas do dramaturgo e de outros memorialistas, como Pedro Nava, para contar que o Rio, na época a capital do Brasil, ficou imerso num inferno. Mas renasceu.

Veja: Imagens da epidemia de gripe espanhola pelo mundo

"Os cariocas morriam em casa, na rua, no trabalho, em qualquer lugar, e iam sendo recolhidos pelos funcionários da prefeitura. Estes jogavam os corpos nas carroças do serviço de limpeza pública. Os cadáveres eram empilhados. Conta-se que quando descobriam alguém dado como morto e ainda vivo, acabavam de matá-lo com as pás", descreve Augusto dos Anjos, antes de continuar: "Não havendo pessoal suficiente para recolher e enterrar os mortos, foram utilizados os presidiários. Mesmo assim, o cenário de corpos amontoados pelos cemitérios ou abandonados pelas ruas desertas era desolador".

Multidão à espera para comprar frango por acreditar que alimento combatia sintomas da gripe
- A situação foi mais grave nos subúrbios, onde as condições de moradia e de saúde eram piores. A população em bairros como o Méier ficou desassistida - comenta o pesquisador. - Da mesma forma, favelas como a Rocinha e Cidade de Deus, com altas taxas de tuberculose, podem sofrer muito com o coronavírus. Numa situação como essa, tanto no passado quanto hoje, é preciso olhar com bastante cuidado para esses lugares.

Leia mais: O que aprendemos com a epidemia de gripe espanhola

Estima-se que os primeiros casos de gripe espanhola surgiram num campo de treinamento de soldados no estado americano do Kansas, em março de 1918. Em poucos meses, a doença alcançou a Europa, que na época era o palco da Primeira Guerra Mundial (julho de 1914 a novembro de 1918). Os governos envolvidos no conflito censuravam notícias sobre a epidemia, para não abalar os ânimos das tropas. Como a Espanha estava neutra, seus jornais divulgavam livremente as informações sobre os "milhões de mortos" pela doença, o que criou a falsa impressão de que o vírus apareceu no país ibérico.

Com a guerra em sua reta final, os combatentes emersos das trincheiras voltavam para casa com a saúde em frangalhos e levando consigo essa violenta estirpe do vírus Influenza A do subtipo H1N1. Mais de 500 milhões de pessoas, 25% da população glocal na época, contraíram a enfermidade.

Caixões insepultos no Caju, durante a epidemia de gripe espanhola, em 1919
A doença chegou ao Brasil em setembro de 1918, a bordo do navio inglês Demerara, que desembarcou passageiros em Recife, Salvador e Rio. Em pouco mais de dois meses, 35 mil pessoas sucumbiram. O Rio viveu a pior situação. Foram mais de 14 mil mortos entre os 600 mil infectados, numa cidade de então 900 mil habitantes. Após um período de negação, quando o diretor geral de Saúde Públca, Carlos Seidl, minimizou a gravidade da gripe, as autoridades recomendaram ao povo a adoção de medidas parecidas com essas que vemos hoje: evitar aglomerações e cuidados com a higiene pessoal. Escolas, teatros e parques foram fechados.

- Em 1918, a biomedicina ainda estava se desenvolvendo, e as instituições de saúde eram precárias. Não havia os postos de atendimento, não havia o Sistema Único de Saúde (SUS). Além disso, o diretor geral de Saúde Pública declarou que aquela era uma influenza comum. Só que as pessoas adoeceram em curva expoencial - relata a médica e pesquisadora Dilene Nascimento. - Eram tantas mortes que não havia mais velórios, assim como está acontecendo hoje na Itália. Até para não haver aglomeração de pessoas. Para a família que perdeu uma pessoa querida, não cumprir o rito fúnebre é algo extremamente dramático.

Sem remédio para amenizar os sintomas, as pessoas apelavam para religião e o que mais houvesse às mãos. Os preços do limão e do frango dispararam, porque acreditava-se que esses produtos combatiam os sintomas. Usava-se muito também o quinino, alcaloide de funções antitérmicas que pode causar efeitos colaterais como distúrbios visuais e náuseas.

A situação ficou completamente fora de controle. No início de novembro, morriam cerca de 500 pessoas por dia. Aé o então presidente eleito do Brasil, Francisco de Paula Rodrigues Alves, padeceu por conta do vírus, confinado em seu apartamento na Rua Senador Vergueiro, no Flamengo, aos 72 anos. Aliás, tornou-se comum a população ironizar dizendo: "Quem não morreu na espanhola?".

Carro alegórico com alusão a lenda urbana do chá da meia-noite
"De repente, passou a peste", escreveu Nelson. "E então ninguém pensou mais nos mortos, enterrados nas valas, uns por cima dos outros". De acordo com os documentos históricos, a epidemia perdeu força em dezembro. Com o tempo, uma euforia tomou conta da cidade. E aí, veio o carnaval de 1919. "Nunca se desejou tanto como nos quatro dias. Isto aqui se tornou a mais afrodisíaca das cidades". Nos meses e anos seguintes, ficou muito conhecida a expressão "filhos da gripe", para falar de bebês nascidos nove meses após aqueles quatro dias.

Os cariocas se entregaram a uma euforia inesquecível. De acordo com Ricardo dos Anjos, "os jornais documentam a alegria incomum que tomou conta da cidade. Os memorialistas qualificam o Carnaval de 1919 como um dos mais animados que o Rio teve: bailes, batalhas de confete e incontáveis blocos espalhados pelos bairros. Ao que parece, houve uma dramatização carnavalesca da situação que os vitimara. Tudo era motivo de alegria e riso".

Nelson Rodrigues não economizou palavras para resgatar aquele período: "Desde as primeiras horas de sábado, houve uma obscenidade súbita, nunca vista, e que contaminou toda a cidade. Eram os mortos da Espanhola e tão humilhados e tão ofendidos que cavalgavam os telhados, os muros, as famílias... Nada mais arcaico do que o pudor da véspera. Mocinhas, rapazes, senhoras, velhos cantavam uma modinha tremenda. Eis alguns versos: 'Na minha casa não racha lenha. Na minha racha, na minha racha/ Na minha casa não há falta de água/ Na minha abunda'.

- Incontáveis blocos brincaram com os acontecimentos da gripe, sociedades carnavalescas também. Um carro alegórico desfilou com uma xícara imensa para simbolizar o "chá da meia-noite", em refe
rência a um boato que circulou durante a epidemia dizendo que, na Santa Casa da Misericórdia, as enfermeiras distribuíam um chá envenenado entre os doentes, para liberar leitos - afirma Ricardo Augusto dos Anjos. - As pessoas estavam celebrando a sobrevivência.

Nelson Rodrigues e sua máquina de escrever, em 1970

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