Por William Helal Filho
"Morrer na cama era um
privilégio abusivo e aristocrático, que ninguém tinha. O sujeito morria
nos lugares mais impróprios, insuspeitados - na varanda, na janela, no
botequim. Normalmente, o agonizante pode imaginar a reação dos parentes,
amigos e desafetos. Na 'espanhola' não havia reação nenhuma. Muitos
caíam, rente ao meio-fio, com a cara enfiada no ralo. E ficavam, lá,
estendidos, como se fossem não mortos, mas bêbados. Ninguém os chorava,
ninguém. Nenhum vira-latas vinha lambê-los. Era como se o cadáver não
tivesse pai, nem mãe, nem vizinho, e nem, ao menos, o inimigo".
O parágrafo acima é trecho de uma crônica de Nelson Rodrigues, publicada no GLOBO em 26 de fevereiro de 1971, na qual o dramaturgo, então colunista deste jornal, escreve sobre a terrível epidemia de gripe espanhola, que, em 1918, matou mais de 14 mil moradores do Rio e até 40 milhões de pessoas no mundo. Naquele mesmo texto, o escritor, que tinha 6 anos na época do surto, resgata também o carnaval de 1919. Segundo ele, após superar a pandemia, a cidade caiu na farra e se tornou "irreconhecível" nos quatro dias de folia. "É preciso observar que o carnaval da espanhola foi de um erotismo absurdo", descreve o autor, morto em 1980, aos 68 anos.
Repletos de cenas assustadoras, os vários relatos do colunista sobre a gripe espanhola são comumente usados por historiadores para ilustrar um capítulo pouco estudado da nossa história. Em seu artigo "O carnaval, a peste e a espanhola", o pesquisador Ricardo Augusto dos Anjos, da Casa de Oswaldo Cruz, baseia-se em documentos, entrevistas e trechos de crônicas do dramaturgo e de outros memorialistas, como Pedro Nava, para contar que o Rio, na época a capital do Brasil, ficou imerso num inferno. Mas renasceu.
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"Os cariocas morriam em casa, na rua, no trabalho, em qualquer lugar, e iam sendo recolhidos pelos funcionários da prefeitura. Estes jogavam os corpos nas carroças do serviço de limpeza pública. Os cadáveres eram empilhados. Conta-se que quando descobriam alguém dado como morto e ainda vivo, acabavam de matá-lo com as pás", descreve Augusto dos Anjos, antes de continuar: "Não havendo pessoal suficiente para recolher e enterrar os mortos, foram utilizados os presidiários. Mesmo assim, o cenário de corpos amontoados pelos cemitérios ou abandonados pelas ruas desertas era desolador".
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Estima-se que os primeiros casos de gripe espanhola surgiram num campo de treinamento de soldados no estado americano do Kansas, em março de 1918. Em poucos meses, a doença alcançou a Europa, que na época era o palco da Primeira Guerra Mundial (julho de 1914 a novembro de 1918). Os governos envolvidos no conflito censuravam notícias sobre a epidemia, para não abalar os ânimos das tropas. Como a Espanha estava neutra, seus jornais divulgavam livremente as informações sobre os "milhões de mortos" pela doença, o que criou a falsa impressão de que o vírus apareceu no país ibérico.
Com a guerra em sua reta final, os combatentes emersos das trincheiras voltavam para casa com a saúde em frangalhos e levando consigo essa violenta estirpe do vírus Influenza A do subtipo H1N1. Mais de 500 milhões de pessoas, 25% da população glocal na época, contraíram a enfermidade.
- Em 1918, a biomedicina ainda estava se desenvolvendo, e as instituições de saúde eram precárias. Não havia os postos de atendimento, não havia o Sistema Único de Saúde (SUS). Além disso, o diretor geral de Saúde Pública declarou que aquela era uma influenza comum. Só que as pessoas adoeceram em curva expoencial - relata a médica e pesquisadora Dilene Nascimento. - Eram tantas mortes que não havia mais velórios, assim como está acontecendo hoje na Itália. Até para não haver aglomeração de pessoas. Para a família que perdeu uma pessoa querida, não cumprir o rito fúnebre é algo extremamente dramático.
Sem remédio para amenizar os sintomas, as pessoas apelavam para religião e o que mais houvesse às mãos. Os preços do limão e do frango dispararam, porque acreditava-se que esses produtos combatiam os sintomas. Usava-se muito também o quinino, alcaloide de funções antitérmicas que pode causar efeitos colaterais como distúrbios visuais e náuseas.
A situação ficou completamente fora de controle. No início de novembro, morriam cerca de 500 pessoas por dia. Aé o então presidente eleito do Brasil, Francisco de Paula Rodrigues Alves, padeceu por conta do vírus, confinado em seu apartamento na Rua Senador Vergueiro, no Flamengo, aos 72 anos. Aliás, tornou-se comum a população ironizar dizendo: "Quem não morreu na espanhola?".
Os cariocas se entregaram a uma euforia inesquecível. De acordo com Ricardo dos Anjos, "os jornais documentam a alegria incomum que tomou conta da cidade. Os memorialistas qualificam o Carnaval de 1919 como um dos mais animados que o Rio teve: bailes, batalhas de confete e incontáveis blocos espalhados pelos bairros. Ao que parece, houve uma dramatização carnavalesca da situação que os vitimara. Tudo era motivo de alegria e riso".
Nelson Rodrigues não economizou palavras para resgatar aquele período: "Desde as primeiras horas de sábado, houve uma obscenidade súbita, nunca vista, e que contaminou toda a cidade. Eram os mortos da Espanhola e tão humilhados e tão ofendidos que cavalgavam os telhados, os muros, as famílias... Nada mais arcaico do que o pudor da véspera. Mocinhas, rapazes, senhoras, velhos cantavam uma modinha tremenda. Eis alguns versos: 'Na minha casa não racha lenha. Na minha racha, na minha racha/ Na minha casa não há falta de água/ Na minha abunda'.
- Incontáveis blocos brincaram com os acontecimentos da gripe, sociedades carnavalescas também. Um carro alegórico desfilou com uma xícara imensa para simbolizar o "chá da meia-noite", em refe
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