Sérgio Rodrigues
Não é exagero dizer que Rubem Fonseca, que morreu nesta quarta, aos 94 anos, no Rio de Janeiro, depois de uma parada cardíaca, inventou o Brasil contemporâneo.
A sensação é bem essa, invenção em vez de mero reflexo. Percebendo com imensa lucidez e antes de todo mundo que o país tinha se transformado de modo profundo, o escritor carioca nascido na cidade mineira de Juiz de Fora em 1925 soube dar a isso uma resposta artística de grande originalidade.
De predominantemente rural a maciçamente urbano, ao preço do aumento exponencial da miséria e da deterioração das condições de vida em suas grandes metrópoles, nos anos 1960 o Brasil já tinha feito essa travessia. Mesmo assim seguia, a seu modo típico, meio sonâmbulo, encantado com uma literatura de matriz rural e suburbana. Foi o ex-policial Rubem Fonseca que o acordou aos bofetões.
Quando nós, seus leitores, descobrimos aqueles bandidos impenitentes, aquelas histórias repletas de violência e ódio de classe vazadas em linguagem crua, atravessadas de um senso de humor meio doentio e de uma desesperança de cortar os pulsos —aquilo foi uma revelação espantosa. Era horrível, mas ressoava profundamente verdadeiro.
Tão original era a jogada fonsequiana, com um quê de indiscutível genialidade, que seu modo de ver o mundo —violento, sombrio e temperado por jogos lúdicos um tanto cínicos, estilo que o crítico Alfredo Bosi chamou de “brutalismo”— acabou por virar uma espécie de paisagem mental coletiva da qual até hoje temos dificuldade de escapar.
Até porque basta olhar em volta para saber que seus fundamentos continuam lá, como fraturas expostas.
Se é impossível pensar a atmosfera do Segundo Reinado sem Machado de Assis, é Rubem Fonseca quem, da estreia em 1963 com “Os Prisioneiros” até pelo menos meados dos anos 1990, quando compôs a melhor parte de sua obra, nos deu a letra do caos social e existencial que virou o Brasil urbano depois do êxodo desordenado que esvaziou o campo e inchou as periferias das grandes cidades.
Ano passado, numa conversa sem compromisso, de amigos, a historiadora e crítica literária Heloísa Starling me apresentou esta charada brilhante, que reproduzo em minhas próprias palavras —será Rubem Fonseca o maior retratista da tragédia social brasileira, ou terá sido o Brasil que, inspirando-se em seus livros, virou essa barra pesada? A pergunta é uma provocação, mas a perplexidade que está em seu cerne tem um fundo de verdade.
No conto mais famoso de Rubem Fonseca, “Feliz Ano Novo”, do livro homônimo de 1975, assaltantes invadem o Réveillon de um grupo de ricos e se divertem ao matar alguns deles, mas descrevem esses assassinatos num tom desprovido de ênfase, quase de relatório.
A coisa era —ainda é, mas hoje bem menos— de dar calafrios na alma. Sobretudo porque, em seu aparente exagero desmedido, parecia antecipar uma verdade ainda não de todo evidente na época.
A proibição do livro pela ditadura militar, embora ele nada tivesse de explicitamente político, soa mais curiosa quando se sabe que o autor tinha integrado no início da década de 1960 o Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais, “think thank” que apoiou o golpe de 1964. O escritor dizia ter composto a ala democrática da instituição.
No entanto, a proibição —que fez bem à popularidade do autor, desde então um raro escritor nacional que soube aliar prestígio crítico e boa vendagem— não deixava de revelar certa perspicácia do censor. Naquele momento, não havia nada de mais potente e subversivo do que aquilo no mundo das letras pátrias.
Nenhum escritor pode almejar mais do que essa fusão de seu texto à paisagem mental de uma época.
Mais do que o merecido prêmio Camões, o mais importante da língua portuguesa, que Fonseca ganhou em 2003, é esse traço que torna incontestável a presença do autor de “Agosto” no andar mais alto do cânone brasileiro.
Fonseca passou a ocupar um lugar tão grande que praticamente todos os escritores da minha geração começamos a escrever sob seu sortilégio, quando não imitando desavergonhadamente seu estilo. E isso ainda é dizer pouco.
A sombra se espalhava para trás e para frente no tempo, tanto para os mais velhos quanto para os mais novos. No auge da carreira do criador do advogado-detetive Mandrake, mesmo grandes autores de obra consolidada como Sérgio Sant’Anna admitiam a força de sua influência. No outro extremo, escritores mais novos do que eu, como Michel Laub, também se declararam seus discípulos.
A estética com influência do policial americano, embora Fonseca nunca tenha sido exatamente um autor do gênero policial, comandou a criação de um mundo ficcional em que a dimensão psicológica dos personagens, habitualmente tão valorizada como fundamento da literatura realista, se via achatada entre a pressão dos baixos instintos e a do meio brutalmente injusto.
Isso vale tanto para o personagem despossuído que, em “O Cobrador”, se vinga com violência fria da sociedade que lhe deve “comida, buceta, cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes”, quanto para o cidadão de bem que, no conto “Passeio Noturno”, atropela gente por esporte com seu carrão.
Todas as outras famosas marcas autorais fonsequianas —a obsessão com charutos e anões, o machismo assumido com orgulho apenas meio irônico, a erudição enciclopédica que frequentemente parecia mesmo pinçada de uma enciclopédia— são aspectos secundários que o autor foi tecendo em torno de sua terrível sacada principal. Visionário, ele foi o grande cantor de nosso pacto civilizatório rompido.
Tão marcante foi tal assinatura que era provavelmente inevitável que acabasse se perdendo num certo maneirismo e nos contos pouco potentes dos últimos anos, nos quais, adiando enquanto pôde o silêncio criativo, o grande escritor parecia se divertir brincando de escrever à moda de Rubem Fonseca. Nada que diminua a força daquela que é sem dúvida a mais original e influente obra literária produzida no Brasil no último terço do século 20.
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