}
Mateus Baldi
O futuro está entre nós — e ele é horrível.
Eles estão chegando, penso — os mortos estão vindo e não há nada a fazer porque o governador e o presidente estão brigando entre si.
Eu, que no último mês virei entusiasta da astrologia, agora pouco me importo com o trânsito entre Marte e Saturno: não dou conta nem do meu planeta. Nas redes sociais, pessoas alarmadas compartilham frases de Albert Camus e parecem dizer que já estava tudo escrito.
Nunca houve nada escrito, mas confesso que tive algumas dicas.
Anos depois, abro o site de ÉPOCA em meio à pandemia e a manchete tem meu pai, que diz: Ninguém está a salvo. Semana retrasada, nessa revista, ele deu um depoimento contundente sobre a situação italiana. Diante dos pronunciamentos confusos de Jair Bolsonaro, recorro às vozes dos especialistas e fico tentando afastar um pensamento incômodo: a Itália colapsou, em breve será a vez do Brasil.
Então percebo o absurdo e rio.
O pior pânico é aquele que te incute a ideia de que até a alegria do ar puro pode ser nociva.
Meu coração fica no Brasil de uma vez por todas. É só uma visão, mas o suficiente para me levar à janela e enxergar o fim do mundo: já é outro, o mundo. Me pergunto se as pessoas têm noção de que quando sairmos da quarentena iremos reconstruir, dia após dia, não só as rotinas, mas o próprio mundo. Outro mundo, insisto.
Por ele desde já espero e me apavoro.
Acordo a cada manhã pensando em como deve estar o isolamento na Itália. Penso no quintal do meu pai cheio de plantas, o gramado longo, bonito. Imagino a estrada de casa no crepúsculo. Poderíamos desaparecer amanhã por causa do vírus e não mudaria nada: tudo ficaria onde está.
Quero permanecer onde estou — dentro de mim — olhando para o último mês, tentando entender que sobrevivências têm sido essas — a vida, o coração errante, o vírus.
Às vezes, depois de passar pelas vacas, os cavalos e as casas ao longo da estrada, meu pai chegava do trabalho e me encontrava tocando piano com a gata olhando detrás da porta.
— O que você está fazendo?
— Tocando. Esperando você chegar. Sei lá. Como foi o dia?
Então ele abria os br
Mateus Baldi
Um.
Meu coração não está no Brasil. Desde que a Itália virou o centro da crise do novo coronavírus, me transportei para Roma e o sorriso do meu pai, enfermeiro no maior hospital da cidade. De vez em quando, penso em escrever para desafogar a angústia, mas é inútil — falar sobre agora ou o mundo em que vivíamos equivale a fazer ficção científica.Dois.
Não há nada como a própria companhia para demolir qualquer inclinação ao cinismo. No início, achei que a quarentena seria fácil. Eu e toda a classe média hipócrita consideramos a beleza de ter uns dias solitários, porém não foi nada disso. Via WhatsApp, sou tragado de volta ao meu país, as notícias se acumulam e começo a ter delírios de que o morro aqui em frente vai desabar e engolir os prédios pelo caminho. Esse pensamento é irmão daquele que bota pombos em plena Avenida Rio Branco vazia.Eles estão chegando, penso — os mortos estão vindo e não há nada a fazer porque o governador e o presidente estão brigando entre si.
Três.
Me apego à religiosidade como tábua de salvação, mesmo sabendo que o livre-arbítrio é nosso e somente nós podemos nos livrar da armadilha que criamos.Eu, que no último mês virei entusiasta da astrologia, agora pouco me importo com o trânsito entre Marte e Saturno: não dou conta nem do meu planeta. Nas redes sociais, pessoas alarmadas compartilham frases de Albert Camus e parecem dizer que já estava tudo escrito.
Nunca houve nada escrito, mas confesso que tive algumas dicas.
Quatro.
Estou na faculdade. A professora de teoria da comunicação exibe um filme para a turma — Contágio. Observo o elenco estrelado e então os atores morrem, o que me gera uma inquietação — por um lado, é genial que tenham feito um filme desse nível apenas para sair matando Hollywood a torto e a direito; por outro, penso que é horrível: acontecesse algo semelhante na vida real, ninguém estaria a salvo.Anos depois, abro o site de ÉPOCA em meio à pandemia e a manchete tem meu pai, que diz: Ninguém está a salvo. Semana retrasada, nessa revista, ele deu um depoimento contundente sobre a situação italiana. Diante dos pronunciamentos confusos de Jair Bolsonaro, recorro às vozes dos especialistas e fico tentando afastar um pensamento incômodo: a Itália colapsou, em breve será a vez do Brasil.
Cinco.
Eu gostava da liberdade que existia em poder dizer Quero ficar em casa. No momento em que escrevo, sinto que já me acostumei à ideia de que todo dia é um simulacro da véspera. Amanhã será igual a hoje, que foi igual a ontem. Trabalho do quarto, leio o Twitter, não me desespero — alguma coisa me segura e diz que vamos sair dessa.Então percebo o absurdo e rio.
Seis.
Toda noite, às oito e meia, panelas vibram e o país mergulha numa mesma sinfonia que busca expulsar o homem eleito. Fico meio besta, apurando meus ouvidos para ver se os metais propagam alguma coisa além de Fora, pandemito, mas não há verdade nos metais — também não há muito o que fazer nas ruas. Ao contrário de alguns amigos que saem às padarias e supermercados, optei por um isolamento completo.O pior pânico é aquele que te incute a ideia de que até a alegria do ar puro pode ser nociva.
Sete.
Assisto a uma entrevista de Caetano Veloso para o programa Sangue latino. Súbito, meu corpo estremece e me ocorre uma visão do dia de sua morte, quando caminho pela Praia da Urca com lágrimas nos olhos e a certeza de que não é só o fim de um homem, mas de todo um mundo. Me vejo pisando na areia, os olhos algo turvos, e, sob as traves amarelas, ecos do meu eu de 15 anos, eternamente congelado com o braço prestes a defender a bola chutada diante do cassino.Meu coração fica no Brasil de uma vez por todas. É só uma visão, mas o suficiente para me levar à janela e enxergar o fim do mundo: já é outro, o mundo. Me pergunto se as pessoas têm noção de que quando sairmos da quarentena iremos reconstruir, dia após dia, não só as rotinas, mas o próprio mundo. Outro mundo, insisto.
Oito.
Passei dias lendo sobre a gripe espanhola: milhões de mortos, caos sociopolítico, o Carnaval de 1919 — o mais anárquico de todos os tempos. Não espero menos que isso em 2021.Acordo a cada manhã pensando em como deve estar o isolamento na Itália. Penso no quintal do meu pai cheio de plantas, o gramado longo, bonito. Imagino a estrada de casa no crepúsculo. Poderíamos desaparecer amanhã por causa do vírus e não mudaria nada: tudo ficaria onde está.
Quero permanecer onde estou — dentro de mim — olhando para o último mês, tentando entender que sobrevivências têm sido essas — a vida, o coração errante, o vírus.
Às vezes, depois de passar pelas vacas, os cavalos e as casas ao longo da estrada, meu pai chegava do trabalho e me encontrava tocando piano com a gata olhando detrás da porta.
— O que você está fazendo?
— Tocando. Esperando você chegar. Sei lá. Como foi o dia?
Então ele abria os br
aços e falava a frase que eu só fui entender recentemente:
— Sono veramente distrutto. Preciso dormir.
Sono veramente distrutto. Mas também sono veramente stanco, isso sim. Por assombro, lembro de Maggie Nelson, autora do fundamental Argonautas, e sua frase que encapsula estes dias: hoje acho que temos direito à tara e ao cansaço — as duas coisas.
Com sorte, o que sobra é a ventania.
Mateus Baldi é escritor e crítico. Em 2016, fundou a Resenha de Bolso, plataforma voltada para a crítica de literatura contemporânea. Organizou para ÉPOCA as edições literárias É tudo mentira e Ilusões de férias
— Sono veramente distrutto. Preciso dormir.
Sono veramente distrutto. Mas também sono veramente stanco, isso sim. Por assombro, lembro de Maggie Nelson, autora do fundamental Argonautas, e sua frase que encapsula estes dias: hoje acho que temos direito à tara e ao cansaço — as duas coisas.
Mateus Baldi é escritor e crítico. Em 2016, fundou a Resenha de Bolso, plataforma voltada para a crítica de literatura contemporânea. Organizou para ÉPOCA as edições literárias É tudo mentira e Ilusões de férias
No comments:
Post a Comment