POR RAFAEL SOARES
Aos 23 anos, Wendel Rodrigues Oliveira é um homem de fé. Em 27 de junho, postou no Instagram uma foto da Bíblia em seu colo, com a legenda: “Indo à casa do pai agradecer por cada dia de vida e pela paz que ele vem concedendo à comunidade do Parque ( Paulista ) e pelo seu povo”. No mês passado, publicou por seis dias, bem cedo pela manhã, a frase “Bom dia com Jesus, povão”, com duas mãos espalmadas em oração. Mas ele é também um homem do crime, e o relógio de ouro na foto com o livro sagrado é só um indicativo de seu poder. Na comunidade que cita em suas preces, o Parque Paulista, um bairro em que moram mais de 30 mil pessoas de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, o jovem é conhecido como Noventinha e comanda o tráfico de drogas. Foragido da polícia, tem mandados de prisão em seu nome por isso e por assassinato.
Apesar de procurado pela polícia, o criminoso frequenta religiosamente igrejas evangélicas da comunidade ao menos uma vez por semana e não deixa de contribuir com o dízimo. Esse fenômeno paradoxal dos traficantes evangélicos não é novo no Rio, mas vem se alastrando rapidamente nos últimos dois anos, em razão da ascendência de uma das principais facções criminosas do estado. Desde 2017, dobrou o número de favelas que o grupo de Noventinha domina no Rio, na esteira da derrocada de uma das facções rivais. Antes concentrada na Zona Norte do Rio, a facção se espraiou por outras regiões e chegou à Baixada Fluminense. Um estudo da Secretaria de Segurança, do ano passado, estima que mais de 300 mil pessoas vivam em áreas sob o jugo do grupo, quase o dobro de uma década atrás.
Embora sempre tenha havido episódios pontuais não só nas comunidades, mas também no asfalto, de agressões a seguidores de religiões de matriz africana, elas se tornaram a regra nessas áreas. Impulsionados por uma visão deturpada dos Evangelhos, esses criminosos perseguem e oprimem umbandistas e candomblecistas, entre outros — muito presentes na Baixada, aonde a facção chegou com força nos últimos tempos.
Assustados com a fogueira, vizinhos ligaram para a Polícia Militar. Um carro da polícia chegou uma hora depois, quando os homens já tinham partido. O que sobrou do terreiro foi levado em um caminhão. Antes do final da tarde, a mãe de santo partiu de lá, para não mais voltar. “Ela morou naquela casa por 50 anos. Está traumatizada até hoje, não consegue falar sobre o que aconteceu. Agora, estamos arrumando um outro espaço para retomar a rotina do terreiro”, contou uma filha de santo.
“Apenas neste ano, 176 terreiros foram fechados no Rio após ataques ou ameaças de traficantes”A invasão é um dos episódios mais recentes de uma escalada de casos de ataques de traficantes a templos de religiões de matriz africana no Rio. Só em 2019, até setembro, a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, organização que reúne membros de várias religiões e representantes do Tribunal de Justiça e do Ministério Público, contabilizou 176 terreiros fechados após ataques ou ameaças de traficantes — mais da metade dos casos na Baixada Fluminense. No ano passado, a comissão não recebeu nem 100 denúncias.
As investigações da Polícia Civil revelam que o aumento dos casos está diretamente ligado a um plano expansionista da facção. Quem está por trás das ordens para os ataques são os traficantes que se dizem evangélicos e se apresentam nas redes sociais como o “Exército do Deus Vivo”, como os pastores evangélicos costumam se referir aos fiéis. Ao longo das últimas semanas, ÉPOCA entrevistou pais, mães e filhos de santo, policiais civis e militares, promotores, defensores públicos, pastores e pesquisadores e analisou processos judiciais e inquéritos em andamento para mostrar como a intolerância religiosa e o crime organizado andam cada vez mais de mãos dadas no Rio.
Antes de continuar, uma explicação se faz necessária. Embora professem a fé evangélica, esses bandidos não têm respaldo das igrejas para suas atividades criminosas e tampouco para a perseguição a outras religiões. O bispo Robson Rodovalho, líder da igreja Sara Nossa Terra e presidente da Confederação dos Conselhos de Pastores do Brasil, afirmou: “Pessoas com esse comportamento são bandidos. Eles combatem terreiros com vandalismo e ameaças. Essas são as armas que eles têm contra locais que consideram demoníacos. Mas isso está errado, porque o Brasil é um país laico e de liberdade religiosa para todas as fés. É possível dizer que não concordo com religiões diferentes da minha, mas jamais terei o direito de destruir símbolos de outras denominações”. Para ele, que considera inaceitáveis os ataques aos centros, os traficantes evangélicos podem estar tentando se “legitimar com suas consciências”.
“Pastores e líderes evangélicos afirmam que esses criminosos não podem ser considerados seguidores da religião”Em Vigário Geral, onde fica o comando do grupo criminoso, quem manda é Álvaro Malaquias Santa Rosa, o Peixão, outro devoto traficante. O discurso religioso se confunde com práticas bárbaras. Seu bando cria porcos dentro da favela de Vigário Geral para desaparecer com cadáveres de vítimas da quadrilha. Nos últimos dois anos, pelo menos nove vítimas — moradores de favelas dominadas por grupos rivais ou pessoas que desobedeceram a alguma regra interna da comunidade — foram jogadas aos animais pelos criminosos. Sua quadrilha também é acusada de pagar R$ 300 mil por mês à polícia para ter informações antecipadas sobre operações.
Lá, tremula uma bandeira de Israel, possível de avistar da Avenida Brasil, a principal via do Rio. Uma teoria prevalente em algumas correntes evangélicas, particularmente as neopentecostais, prega que a criação do Estado de Israel foi o prenúncio da volta de Jesus Cristo, que se daria após um período de grande turbulência e da conversão dos judeus ao cristianismo.
Um dos desenhos mais recentes feitos nos muros de Vigário Geral, grafitados com salmos e frases religiosas, traz a inscrição “12 anos, até aqui nos ajudou o Senhor”, em referência ao tempo que o grupo domina a comunidade. Sempre que uma nova favela é controlada pela facção, a primeira providência é escrever a frase “Jesus é o dono do lugar”. Na vizinha Cidade Alta, tomada há três anos, logo circulou um aviso, colocado nas portas dos moradores da comunidade: “Não sujar, esculachar nem ficar fazendo essas macumbadas, servindo a deuses estranhos, pois vocês nunca poderão esquecer que a gente só colhe do fruto que planta”. Junto, veio uma explicação “divina”: “Só estamos na luta porque foi ordenação do senhor Jesus que a comunidade da Cidade Alta se liberte desse mal e viva dias melhores”, diz a carta. De lá para cá, barracões foram depredados e mães de santo foram expulsas da favela. Atualmente, não há mais terreiros de candomblé na região.
A partir de 2010, a paisagem começou a se modificar. Dois condomínios do programa Minha Casa Minha Vida foram inaugurados no bairro para abrigar moradores de áreas de Duque de Caxias ameaçadas de deslizamento. Junto, chegaram também comércios, serviços e até o asfalto: em 2014, as obras da principal via do bairro foram concluídas.
“A relação bizarra entre o tráfico e a religião evangélica começou com a conversão de um traficante no início dos anos 2000”Em maio, três adolescentes armados com pistolas bateram num dos terreiros na região em meio a uma festa. A casa estava cheia. “Ninguém quer mais macumba aqui. Tem uma semana para acabar com isso tudo!”, disse um dos jovens, segundo uma testemunha. Os três saíram dali dando tiros para o alto. No mesmo dia, o barracão fechou as portas. O pai de santo, que morava numa casa anexa, seguiu vivendo no local, mas não há mais nenhuma atividade religiosa no lugar. “Orientei os membros a deixarem de vir para consultas ou jogo de búzios, não havia mais condição. Tirei todos os objetos sagrados e roupas de lá. Passei a frequentar outro terreiro, num lugar seguro, como um refugiado”, contou o sacerdote.
Pastores e líderes evangélicos ouvidos por ÉPOCA são unânimes em apontar a incompatibilidade entre a fé evangélica e o tráfico de drogas. Neil Barreto, da Igreja Batista Betânia, afirmou que esses criminosos não podem ser considerados religiosos: “Eles ouvem a palavra de Jesus, simpatizam com ela, mas não a praticam. Ela é só um discurso, não uma prática. Esse uso da religião, como símbolo de destruição, é perverso”.
A dinâmica de crescimento desse exército da fé e do pó está condicionada a causas muito terrenas, como a luta com outras facções pelo território das favelas do Rio e um combate eficiente das forças de segurança ao narcoterrorismo, seja ele laico ou com notas religiosas. Enquanto isso, às vítimas, resta rezar, seja para que Deus for.
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