November 10, 2019

Como a expansão de uma facção de traficantes evangélicos faz explodir ataques a outras religiões em favelas do Rio

O traficante Noventinha posta louvores a Deus e ameaças a outros criminosos na mesma conta na internet. Foto: Reprodução


POR RAFAEL SOARES

Aos 23 anos, Wendel Rodrigues Oliveira é um homem de fé. Em 27 de junho, postou no Instagram uma foto da Bíblia em seu colo, com a legenda: “Indo à casa do pai agradecer por cada dia de vida e pela paz que ele vem concedendo à comunidade do Parque ( Paulista ) e pelo seu povo”. No mês passado, publicou por seis dias, bem cedo pela manhã, a frase “Bom dia com Jesus, povão”, com duas mãos espalmadas em oração. Mas ele é também um homem do crime, e o relógio de ouro na foto com o livro sagrado é só um indicativo de seu poder. Na comunidade que cita em suas preces, o Parque Paulista, um bairro em que moram mais de 30 mil pessoas de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, o jovem é conhecido como Noventinha e comanda o tráfico de drogas. Foragido da polícia, tem mandados de prisão em seu nome por isso e por assassinato.
Em meio às postagens de louvor a Deus, há ameaças aos rivais. “Nunca duvide do poder de Deus. Se Ele transformou água em vinho, pode transformar sua vida em bênçãos e vitórias”, publicou o evangélico em 4 de setembro. Em duas oportunidades, compartilhou vídeos de clipes de cantoras gospel. No dia seguinte, o tom era outro: “Alemão nunca mais coloca o pé aqui e se tentar colocar é bala neles firme. Depois, eles que se preparem que já sabem bem a resposta. Tamo junto até a última bala do pente”, escreveu o traficante, em resposta a uma homenagem feita por um comparsa no dia de seu aniversário, 5 de setembro. Duas semanas depois, postou outro recado aos inimigos: “Se tentar contra a tropa do Parque Paulista, vai entrar no metal”. Noventinha também faz, eventualmente, propaganda de sua mercadoria, com fotos de drogas prontas para a venda — “maconha hidropônica, qualquer violação, reclamar na boca”, diz a embalagem —, roupas camufladas e armas.
A bandeira de Israel foi içada em Vigário Geral, Rio de Janeiro por causa da fixação do líder da facção com o Estado judeu, comum em algumas vertentes neopentecostais. Foto: Reprodução
A bandeira de Israel foi içada em Vigário Geral, Rio de Janeiro por causa da fixação do líder da facção com o Estado judeu, comum em algumas vertentes neopentecostais. Foto: Reprodução
Apesar de procurado pela polícia, o criminoso frequenta religiosamente igrejas evangélicas da comunidade ao menos uma vez por semana e não deixa de contribuir com o dízimo. Esse fenômeno paradoxal dos traficantes evangélicos não é novo no Rio, mas vem se alastrando rapidamente nos últimos dois anos, em razão da ascendência de uma das principais facções criminosas do estado. Desde 2017, dobrou o número de favelas que o grupo de Noventinha domina no Rio, na esteira da derrocada de uma das facções rivais. Antes concentrada na Zona Norte do Rio, a facção se espraiou por outras regiões e chegou à Baixada Fluminense. Um estudo da Secretaria de Segurança, do ano passado, estima que mais de 300 mil pessoas vivam em áreas sob o jugo do grupo, quase o dobro de uma década atrás.
A trajetória de Noventinha ilustra bem essa expansão. Ele saiu de Parada de Lucas, uma favela a cerca de 40 quilômetros de Parque Paulista, onde era mais um “soldado na hierarquia do tráfico”. Escolhido para invadir a comunidade em Duque de Caxias, até hoje envia ao quartel-general da facção, em Vigário Geral, na Zona Norte do Rio, o lucro da venda de drogas. “Sigo em silêncio e concluindo os objetivos que os BTB ( sigla para Bonde dos Taca Bala, nome usado para se referir à facção ) têm na Baixada”, afirma em uma postagem nas redes sociais.
A bandeira também foi pintada num muro. Foto: Reprodução
A bandeira também foi pintada num muro. Foto: Reprodução
O crescimento desses “narcopentecostais” acrescentou uma chaga a mais nas favelas que essa facção domina. Além do tráfico de drogas e da violência cotidiana, a devoção torta aos Evangelhos se reflete na intolerância em relação às religiões de matriz africana — o que, vale sempre ressaltar, não encontra respaldo entre os verdadeiros evangélicos, que pregam a convivência pacífica e a tolerância.
Embora sempre tenha havido episódios pontuais não só nas comunidades, mas também no asfalto, de agressões a seguidores de religiões de matriz africana, elas se tornaram a regra nessas áreas. Impulsionados por uma visão deturpada dos Evangelhos, esses criminosos perseguem e oprimem umbandistas e candomblecistas, entre outros — muito presentes na Baixada, aonde a facção chegou com força nos últimos tempos.
O baile funk na favela tomada por ele agora se chama Baile de Israel. Foto: Reprodução
O baile funk na favela tomada por ele agora se chama Baile de Israel. Foto: Reprodução
Um episódio do dia 11 de julho, no Parque Paulista, ilustra bem o terror que se instalou. Passava das 11 horas quando batidas no portão assustaram a mãe de santo de um terreiro de candomblé que funcionava ali havia mais de 50 anos — o mais antigo da região. Assim que a senhora de 86 anos abriu a porta, um homem apontou uma pistola para seu rosto e ordenou que destruísse todas as imagens e objetos do terreiro: “Não pode mais macumba aqui. Ordem do patrão”, disse.
­ Foto: Reprodução
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Os homens nem sequer encostaram nos objetos. Sem conseguir mover as esculturas mais pesadas, a mulher precisou da ajuda de dois filhos de santo que estavam no local para levantar e arremessar no chão cerca de 20 imagens de orixás e esculturas de barro e ferro. Em seguida, os bandidos entraram nos vestiários, onde os seguidores se trocavam antes das cerimônias, e mandaram que todas as roupas brancas fossem jogadas no meio da rua, em frente ao terreiro. A pilha foi incendiada. “E agora? Seu orixá vai te proteger?”, zombou um dos invasores.
Assustados com a fogueira, vizinhos ligaram para a Polícia Militar. Um carro da polícia chegou uma hora depois, quando os homens já tinham partido. O que sobrou do terreiro foi levado em um caminhão. Antes do final da tarde, a mãe de santo partiu de lá, para não mais voltar. “Ela morou naquela casa por 50 anos. Está traumatizada até hoje, não consegue falar sobre o que aconteceu. Agora, estamos arrumando um outro espaço para retomar a rotina do terreiro”, contou uma filha de santo.
“Apenas neste ano, 176 terreiros foram fechados no Rio após ataques ou ameaças de traficantes”
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A invasão é um dos episódios mais recentes de uma escalada de casos de ataques de traficantes a templos de religiões de matriz africana no Rio. Só em 2019, até setembro, a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, organização que reúne membros de várias religiões e representantes do Tribunal de Justiça e do Ministério Público, contabilizou 176 terreiros fechados após ataques ou ameaças de traficantes — mais da metade dos casos na Baixada Fluminense. No ano passado, a comissão não recebeu nem 100 denúncias.
As investigações da Polícia Civil revelam que o aumento dos casos está diretamente ligado a um plano expansionista da facção. Quem está por trás das ordens para os ataques são os traficantes que se dizem evangélicos e se apresentam nas redes sociais como o “Exército do Deus Vivo”, como os pastores evangélicos costumam se referir aos fiéis. Ao longo das últimas semanas, ÉPOCA entrevistou pais, mães e filhos de santo, policiais civis e militares, promotores, defensores públicos, pastores e pesquisadores e analisou processos judiciais e inquéritos em andamento para mostrar como a intolerância religiosa e o crime organizado andam cada vez mais de mãos dadas no Rio.
Antes de continuar, uma explicação se faz necessária. Embora professem a fé evangélica, esses bandidos não têm respaldo das igrejas para suas atividades criminosas e tampouco para a perseguição a outras religiões. O bispo Robson Rodovalho, líder da igreja Sara Nossa Terra e presidente da Confederação dos Conselhos de Pastores do Brasil, afirmou: “Pessoas com esse comportamento são bandidos. Eles combatem terreiros com vandalismo e ameaças. Essas são as armas que eles têm contra locais que consideram demoníacos. Mas isso está errado, porque o Brasil é um país laico e de liberdade religiosa para todas as fés. É possível dizer que não concordo com religiões diferentes da minha, mas jamais terei o direito de destruir símbolos de outras denominações”. Para ele, que considera inaceitáveis os ataques aos centros, os traficantes evangélicos podem estar tentando se “legitimar com suas consciências”.
“Pastores e líderes evangélicos afirmam que esses criminosos não podem ser considerados seguidores da religião”
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Em Vigário Geral, onde fica o comando do grupo criminoso, quem manda é Álvaro Malaquias Santa Rosa, o Peixão, outro devoto traficante. O discurso religioso se confunde com práticas bárbaras. Seu bando cria porcos dentro da favela de Vigário Geral para desaparecer com cadáveres de vítimas da quadrilha. Nos últimos dois anos, pelo menos nove vítimas — moradores de favelas dominadas por grupos rivais ou pessoas que desobedeceram a alguma regra interna da comunidade — foram jogadas aos animais pelos criminosos. Sua quadrilha também é acusada de pagar R$ 300 mil por mês à polícia para ter informações antecipadas sobre operações.
Lá, tremula uma bandeira de Israel, possível de avistar da Avenida Brasil, a principal via do Rio. Uma teoria prevalente em algumas correntes evangélicas, particularmente as neopentecostais, prega que a criação do Estado de Israel foi o prenúncio da volta de Jesus Cristo, que se daria após um período de grande turbulência e da conversão dos judeus ao cristianismo.
Uma mãe de santo teve de deixar às pressas seu terreiro, para não mais voltar, após ameaças dos criminosos. Na foto, um local de culto destruído a mando dos bandidos. Foto: Reprodução
Uma mãe de santo teve de deixar às pressas seu terreiro, para não mais voltar, após ameaças dos criminosos. Na foto, um local de culto destruído a mando dos bandidos. Foto: Reprodução
O símbolo do Estado judeu é onipresente. Dentro da favela, a bandeira aparece num muro. Uma foto, ostentada nas redes sociais, mostra 14 fuzis enfileirados pelos criminosos com a imagem ao fundo. A estrela de Davi também enfeita a camisa de um time de futebol de Vigário Geral, financiado pelo traficante. No Parque Paulista, o baile funk realizado todo sábado passou a ser chamado de Baile de Israel. A festa — anunciada na internet com bandeirinhas da nação judaica — começa com músicas gospel, tocadas ainda no início da noite. Depois, a vodca é liberada por toda a madrugada.
A obsessão de Peixão pela fé judaica já foi testemunhada durante uma operação da Polícia Civil em um de seus domínios, Parada de Lucas. Num esconderijo subterrâneo usado pelo traficante para se esconder durante incursões policiais, agentes da Delegacia de Roubos e Furtos de Cargas (DRFC) encontraram — além de munição para uma metralhadora antiaérea e coletes balísticos — um exemplar de luxo da Torá , o livro sagrado do judaísmo. A obra estava acondicionada em um receptáculo de metal, parecido com um baú.
Um dos desenhos mais recentes feitos nos muros de Vigário Geral, grafitados com salmos e frases religiosas, traz a inscrição “12 anos, até aqui nos ajudou o Senhor”, em referência ao tempo que o grupo domina a comunidade. Sempre que uma nova favela é controlada pela facção, a primeira providência é escrever a frase “Jesus é o dono do lugar”. Na vizinha Cidade Alta, tomada há três anos, logo circulou um aviso, colocado nas portas dos moradores da comunidade: “Não sujar, esculachar nem ficar fazendo essas macumbadas, servindo a deuses estranhos, pois vocês nunca poderão esquecer que a gente só colhe do fruto que planta”. Junto, veio uma explicação “divina”: “Só estamos na luta porque foi ordenação do senhor Jesus que a comunidade da Cidade Alta se liberte desse mal e viva dias melhores”, diz a carta. De lá para cá, barracões foram depredados e mães de santo foram expulsas da favela. Atualmente, não há mais terreiros de candomblé na região.
­ Foto: Leo Martins / Agência O Globo
­ Foto: Leo Martins / Agência O Globo
Até meados dos anos 2000, o Parque Paulista era um bairro predominantemente rural. O acesso ao local se dava somente por uma estrada de terra que saía da Rodovia Rio-Magé. Devido ao isolamento, à tranquilidade e ao contato com a natureza, a região era um ponto muito procurado por candomblecistas para cultuar os orixás. Segundo moradores, desde a década de 1970, seis terreiros foram abertos ali numa área de poucos quarteirões. Em finais de semana de festas importantes, milhares de filhos de santo iam ao local. Era comum ver pessoas com roupas brancas dos pés à cabeça circulando por ali.
A partir de 2010, a paisagem começou a se modificar. Dois condomínios do programa Minha Casa Minha Vida foram inaugurados no bairro para abrigar moradores de áreas de Duque de Caxias ameaçadas de deslizamento. Junto, chegaram também comércios, serviços e até o asfalto: em 2014, as obras da principal via do bairro foram concluídas.
A favela de Vigário Geral, quartel-general da facção que persegue religiões africanas. Foto: Pablo Jacob / Agência O Globo
A favela de Vigário Geral, quartel-general da facção que persegue religiões africanas. Foto: Pablo Jacob / Agência O Globo
O progresso atraiu também o tráfico de drogas. Moradores mais antigos contam que homens armados com pistolas passaram a circular pelas ruas vendendo pequenas quantidades de droga. A opressão do crime chegou, mas a vida dos religiosos de matriz africana seguiu imperturbada. “Nós conhecíamos as famílias dos traficantes, muitas deles cresceram ali, nunca havia tido caso nenhum, nem sequer de xingamento”, contou um religioso que mora na região.
A situação mudou em 2016, quando o local, até então sob a influência da maior facção do estado, foi tomada pelo outro grupo criminoso. A tomada das bocas de fumo foi seguida pela expansão do domínio do território e pela imposição das novas leis. Mas foi neste ano que a intolerância se acentuou. O primeiro aviso do tráfico aos pais e filhos de santo chegou de bicicleta, logo no início de 2019. Um traficante, desarmado, passou pelos barracões comunicando as determinações da “nova gestão”. A partir daquele momento, o uso de roupas brancas — vestimenta dos candomblecistas para cultuar os orixás — pelas ruas da favela estava proibido. Se quisessem continuar a usar a indumentária, os frequentadores teriam de se trocar após a entrada nos barracões. O toque dos atabaques só seria tolerado até as 20 horas, mesmo nos finais de semana. Os avisos foram somente o prelúdio do que estava por vir.
“A relação bizarra entre o tráfico e a religião evangélica começou com a conversão de um traficante no início dos anos 2000”
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Em maio, três adolescentes armados com pistolas bateram num dos terreiros na região em meio a uma festa. A casa estava cheia. “Ninguém quer mais macumba aqui. Tem uma semana para acabar com isso tudo!”, disse um dos jovens, segundo uma testemunha. Os três saíram dali dando tiros para o alto. No mesmo dia, o barracão fechou as portas. O pai de santo, que morava numa casa anexa, seguiu vivendo no local, mas não há mais nenhuma atividade religiosa no lugar. “Orientei os membros a deixarem de vir para consultas ou jogo de búzios, não havia mais condição. Tirei todos os objetos sagrados e roupas de lá. Passei a frequentar outro terreiro, num lugar seguro, como um refugiado”, contou o sacerdote.
Atualmente, todos os seis terreiros do Parque Paulista estão fechados por determinação do tráfico. Quinze igrejas evangélicas funcionam no bairro — 11 delas são da Assembleia de Deus.
Fernandinho Guarabu
Fernandinho Guarabu
A relação bizarra entre o tráfico e a religião evangélica no Rio começou no início dos anos 2000, com a conversão de Fernando Gomes Freitas, o Fernandinho Guarabu, influenciado por um pastor local. Então chefe do tráfico em uma favela na Ilha do Governador, na Zona Norte do Rio, tornou-se evangélico fervoroso, tatuou “Jesus Cristo” no braço e passou a dedicar um dia por semana ao jejum e à oração. Durante quase 20 anos, foi o maior chefe da facção fora da cadeia, até ser morto em uma operação policial, em junho deste ano. Tanto Peixão quanto Noventinha, e centenas de outros, são discípulos diretos de Guarabu.
Pastores e líderes evangélicos ouvidos por ÉPOCA são unânimes em apontar a incompatibilidade entre a fé evangélica e o tráfico de drogas. Neil Barreto, da Igreja Batista Betânia, afirmou que esses criminosos não podem ser considerados religiosos: “Eles ouvem a palavra de Jesus, simpatizam com ela, mas não a praticam. Ela é só um discurso, não uma prática. Esse uso da religião, como símbolo de destruição, é perverso”.
A dinâmica de crescimento desse exército da fé e do pó está condicionada a causas muito terrenas, como a luta com outras facções pelo território das favelas do Rio e um combate eficiente das forças de segurança ao narcoterrorismo, seja ele laico ou com notas religiosas. Enquanto isso, às vítimas, resta rezar, seja para que Deus for.
 

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