
[RESUMO] Ecoando o lema ‘integrar para não entregar’, dos tempos da ditadura, Bolsonaro baseia-se em teoria conspiratória difundida em setores militares para encampar ocupação predatória da Amazônia, região que seria cobiçada por outros países.
A teoria conspiratória da internacionalização da Amazônia
 foi construída a partir de suspeitas infundadas, frases de autoridades 
estrangeiras pinçadas fora do contexto em que foram ditas e supostos 
estudos que nada comprovam.
Em resumo, ela afirma que ONGs e indígenas pretendem, em conluio com países estrangeiros,
 dividir a região por meio da independência de algumas de suas áreas. Os
 ataques externos “ao Brasil”, ou seja, ao governo brasileiro, 
esconderiam um plano secreto internacional para tomar essas porções de 
terra exuberantes e ricas.
A partir dos anos 1980, essas ideias passaram a ser 
difundidas com mais intensidade em círculos militares, por meio de 
livros como a “A Farsa Ianomâmi” (ed. Biblioteca do Exército, 1995), do 
oficial paraquedista Carlos Alberto Menna Barreto (1929-1995). Na capa 
do volume, um homem branco de olhos azuis se esconde atrás de uma 
máscara que imita o rosto de um indígena.
Tal ficção encontra solo fértil no governo do presidente Jair Bolsonaro, capitão reformado, e tem pautado a relação do governo brasileiro com a Amazônia e países estrangeiros que incentivam projetos de preservação da região.
No dia 11, o presidente declarou que a Alemanha não 
iria mais “comprar a Amazônia” e acusou outras nações de terem interesse
 “em se apoderar do Brasil”. Ele abriu mão de R$ 155 milhões do governo 
alemão em projetos para a Amazônia.
No mesmo dia, o ex-comandante do Exército e hoje 
assessor no influente GSI (Gabinete de Segurança Institucional), o 
general reformado Eduardo Villas Bôas, escreveu em uma rede social que o
 Brasil é alvo de “ferramentas do moderno capitalismo” exercidas pelas 
críticas à política ambiental, mas que estava deixando de se submeter “a
 pressões” estrangeiras.
Quatro dias depois, Bolsonaro voltou ao tema numa 
rede social. Escreveu que “o mundo” o está acusando falsamente de 
destruir a Amazônia. “Soberania da região e suas riquezas é o que, 
verdadeiramente, está em jogo”, completou, em seu costumeiro tom 
misterioso.
Associações entre proteção ambiental e obscuros 
planos secretos de dominação das nações mais desenvolvidas podem ser 
encontradas em manifestações de militares brasileiros desde a década de 
1960. Esses escritos também apontam o antídoto —o ponto fundamental da 
política de Bolsonaro: “ocupar” e “integrar” a Amazônia.
O ruído produzido por Bolsonaro e pelos ministros 
Ricardo Salles (Meio Ambiente) e Augusto Heleno (GSI) nas últimas 
semanas expressa uma arraigada orientação militar que vem, pouco a 
pouco, vindo à tona: o governo Bolsonaro realmente acredita que o país 
tem o direito de ampliar o desmatamento e a ocupação da região, onde for
 possível.
Nos anos 1960, o general Golbery do Couto e Silva 
(1911-1987), um dos artífices do golpe de 1964 e influenciador de toda 
uma geração de militares, escreveu em sua “Geopolítica do Brasil” que a 
Amazônia era um “deserto verde” e que a função do governo era 
“incorporá-la realmente à nação”. Ele resumiu sua “ideia de manobra 
geopolítica para integração” em três linhas de ação, incluindo “inundar 
de civilização a hileia amazônica [termo usado no século 19 para 
designar a região], a coberto dos nódulos fronteiriços, partindo de uma 
base avançada constituída no Centro-Oeste”.
A linha de ação foi confirmada em 1969, quando o CSN 
(Conselho de Segurança Nacional), formado pelo presidente da República e
 pelos ministros militares e civis da ditadura militar (1964-1985), editou o ultrassecreto “Conceito Estratégico Nacional”.
O documento, que permaneceu sigiloso até 2006, 
estabeleceu como meta do governo o “desenvolvimento de uma política 
ordenada de expansão e distribuição espacial da população, orientada e 
dirigida para a exploração do potencial de recursos naturais do país, em
 setores prioritários ou em regiões selecionadas, bem como para a 
ocupação racional e efetiva do território nacional”.
Obras amplamente adotadas pelas escolas militares, 
como “A Geopolítica da Pan-Amazônia” (1980), do general de divisão 
Carlos de Meira Mattos (1913-2007), defendem a ocupação da Amazônia como
 um objetivo estratégico militar. Em 1966, o primeiro presidente na 
ditadura, Castello Branco (1897-1967), considerou a criação de 
“condições para o povoamento” da região nada menos que “um imperativo da
 própria segurança nacional”.
Num regime sem um Ministério Público fiscalizador e 
sem imprensa livre, o governo implantou diversos programas de incentivo 
ao deslocamento de colonos do Sul para a Amazônia, expandindo o 
desmatamento, expulsando e transferindo grupos indígenas praticamente 
sem controle.
Linhas de crédito especiais foram abertas em bancos 
públicos para financiar atividades agropecuárias na região, e municípios
 inteiros e estradas foram construídos em cima de áreas de floresta e 
terras indígenas —milhares de índios morreram no processo. Em 
concordância com o “Conceito”, o conjunto de medidas foi chamado 
exatamente de PIN (Plano de Integração Nacional). Forjou-se até um 
slogan para essa estratégia: “Integrar para não entregar”.
Nesses movimentos havia de tudo. A ideia mais 
delirante talvez tenha sido a do major Marseno Alvim Martins, que na 
obra de 1971 “A Amazônia e Nós” (Biblioteca do Exército) sugeriu a 
construção de um “Grande Lago Amazônico”. Uma imensa barragem no rio 
Amazonas criaria “um verdadeiro mar amazônico”, o que permitiria “uma 
navegação em larga escala”. Simplesmente 29 cidades ficariam submersas, 
incluindo Manaus e Santarém.
Em um episódio pouco lembrado, porém fartamente 
documentado no Arquivo Nacional, o SNI (Serviço Nacional de 
Informações), centro da máquina de espionagem da ditadura, criado por 
Golbery, chegou a controlar garimpos de ouro na Amazônia. O “Projeto 
Ouro” ou “Projeto Garimpo” mobilizou 148 mil garimpeiros em dez estados 
no governo João Figueiredo (1979-1985).
“A partir de maio de 1980, este órgão [SNI], 
autorizado pelo presidente da República, desenvolveu uma ação 
catalisadora, envolvendo vários organismos públicos, objetivando o 
controle e a assistência do núcleo de garimpagem que se formou em Serra 
Pelada (PA). Posteriormente, este controle foi estendido a outras áreas 
de garimpo, principalmente a da Fazenda Cumaru, no município de 
Conceição do Araguaia (PA)”, descreveu um relatório confidencial do SNI.
De 1979 a 1981 foram produzidas 24 toneladas de ouro.
 A experiência foi aposentada em 1989 por decisão do presidente José 
Sarney (1985-1990). Trinta anos depois, o governo Bolsonaro fala em 
abrir terras indígenas para a mineração, o que é repudiado por 86% da 
população, segundo pesquisa Datafolha.O ponto central da política 
bolsonarista é que o aumento da presença humana na região não deve ser 
alvo de crítica, pelo contrário, deve ser encarado como uma meta.
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No dia 15, o ministro do Meio Ambiente abordou a 
questão ao dizer à agência de notícias BBC que o governo quer usar o 
Fundo Amazônia, formado por doações de países estrangeiros, para “ter 
discricionariedade que envolva efetivamente soluções capitalistas, de 
desenvolvimento de uma cadeia produtiva que gere resultado em caráter 
permanente”.
Quem não entender a chave das palavras de Salles 
continuará debatendo se o governo é ou não “científico”, quando a 
questão seria indagar até onde ele quer levar o desmatamento. Para os 
militares bolsonaristas, quem é contrário ao desenvolvimento do país é 
simplesmente um traidor. Bolsonaro já chamou os críticos de “maus 
brasileiros” e afirmou que os países que desejam a conservação ambiental
 apenas cobiçam as riquezas brasileiras.
Enquanto ficava restrita ao ambiente da caserna, a 
teoria conspiratória não era levada em conta por nenhum pesquisador 
sério. A principal razão é simples. Jamais índios brasileiros e ONGs 
internacionais reivindicaram a independência de qualquer pedaço da 
Amazônia.
A terra indígena Yanomami, por exemplo, demarcada há quase 30 anos, nunca registrou qualquer instabilidade desse tipo. O principal líder ianomâmi, Davi Kopenawa,
 em reiteradas vezes, em todos os inúmeros fóruns nacionais e 
internacionais dos quais participou, nunca falou sobre separação do 
Brasil.Outro problema é cronológico. A teoria ganhou força a partir do 
fim da ditadura, em 1985, quando o poder voltou aos civis. Mas diversas 
terras indígenas foram identificadas e interditadas ainda no período 
militar, como a própria Yanomami, que só depois foi demarcada.
Uma vez que acusar os militares da época da ditadura 
de terem participado do mesmo suposto esquema das ONGs 
internacionalistas é puro nonsense, essa parte é convenientemente 
silenciada pelos teóricos da conspiração.
 
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