Arnaldo Bloch
Até
 fevereiro, podia dizer: “Nunca fui a Paquetá”. Não por qualquer 
aversão. Ao contrário: por quase meio século, cultivei o desejo de ir ao
 fundo da baía. Ouvira a história de uma aparição súbita de Vênus, ao 
primeiro canto do galo, às quatro da manhã, na ilha. Quando o céu 
azulou, contava o avô, a Estrela Dalva ficou “do tamanho da Lua" e as 
pessoas, mudas, imóveis, pasmaram, como os aldeões de Rimini à visão do 
transatlântico em “Amarcord”
.
Então, por quê? 
Suponho que a poesia de tal relato, e um medo de não poder reproduzi-la,
 fizeram de meu desejo um tabu. Precisou que os cavalos fossem abolidos e
 as charretes elétricas instaladas para que eu enfim cedesse, arrastado 
por uma tribo de amigos e amigas cariocas.
Às 
quatro, conduzido não pelo canto do galo, mas pela sineta do VLT, pisei 
na Praça XV e peguei a barca maior, com seus bancos de madeira azul 
colonial. As janelas da nau, com jeito de casario velho, arejadas pelo 
movimento, coloriram meus pulmões. Após passar sob a ponte, fui da proa à
 popa ver o Rio deixado para trás. Na majestosa linha panorâmica, à 
distância, a bruma dissipava o sangue da cidade dilacerada.
Uma
 hora depois, nas proximidades de Paquetá, avistei a ilhota de Luz del 
Fuego e as várias linhas de embarcações. Vi a favelinha estancada numa 
das encostas. Ao desembarcar, uma estranha corrida de rua, com meia 
dúzia de gatos pingados, rolava nas vielas e avenidas, mas ninguém 
prestava atenção, nem batia palmas, nem repassava sucolés de eletrólitos
 aos atletas. Eram zumbis pacíficos, e, após um breve passar d’olhos, 
invisíveis. De novo, pensei em Fellini.
Não vi, 
nem poderia ver, um só carro, ou moto, ou caminhão: o Rio de Paquetá era
 histórico e humilde, de uma dignidade serena. Uma Paraty sem status, 
sem pousadas, sem mansões, sem verniz. Vi o busto de Dom João, e o 
pequeno canhão. Vi outros bustos, um do índio altivo, outro de um rosto 
redondo, triste, coberto por trepadeiras. Logo dei de cara com o baobá 
centenário e sua lenda quatrocentona gravada numa placa:
“Sorte
 por longo prazo... a quem me beija e respeita. Sete anos de atraso a 
cada maldade a mim feita. O baobá. MDCXXVII”. Procurei um canto mais 
discreto da árvore e obedeci: um largo e longo abraço, os melhores 
pensamentos, e um beijo devocional. A turma quis fotografar mas foi 
proibida: “Privacidade”, demandei, para os autos, e a tribo vazou, 
soprando zoações.
Que vento sagrado batia naquele 
silêncio. O sábado era vazio e, fora os derradeiros corredores, só havia
 minhoca da terra e aliens esparsos, como nós. O sol era filtrado na 
medida por nuvens de prata só ligeiramente pontilhadas de chumbo. Nas 
águas, dezenas de pedras redondas mostravam suas metades emersas, 
fazendo parecer que foram postas ali por um anfíbio mestre paisagista 
dos mares.
A caminho da Praia da Moreninha, o 
pesado turbilhão do Rio continental, tão perto, tão longe, já havia 
perdido a batalha para o ruído de nossos passos nas ruas internas, de 
terra batida, o casario eclético, suaves varandas, sobrados de pedra, 
casebres engolidos por pequenos matagais, nenhum edifício, nenhuma 
fábrica, e o solar onde luxuriava Dom João VI. Não vi lixo nas calçadas 
ou alarmes de miséria e abandono. Num brechozinho, comprei dois budas de
 porcelana. Um não tinha face nem umbigo, enquanto o outro era 
perfeitamente talhado, como num sortilégio.
A 
praia da Moreninha estava deserta. Uma só birosca servia as últimas 
cervejas, com uma tevezinha que mostrava um Fla 0x4 Flu direto do 
Pantanal. Subimos a pedra que serve de mirante. O céu estava agora 
pálido e deitamos sobre a rocha quente. O Sol, até então oculto, rasgou 
as nuvens e abriu uma coroa que fez recair, nas águas, uma chuva de 
raios cor de laranja bem delineados. No encanto do poente ouvi a 
resposta do tempo à Vênus tamanho-Lua do avô.
A 
noite logo se instalou, “olorosa”, como na voz de Orlando Silva, sob o 
luar de Paquetá. Imerso no idílio musical, caí na tentação de me achar 
no paraíso. Lá pelas onze, vi, à beira da calçada estreita, casais 
idosos retirando, da marolinha das águas, uns peixes de comer, 
indiferentes à poluição. Até meia-noite crianças brincavam nas ruas e 
nas praças como se fosse meio-dia. “Se há violência aqui”, cogitei, “não
 deve ser muita, por falta de rota de fuga”. Fugitivos éramos nós, dos 
tormentos do lado de lá.
O buzinão soou anunciando
 a última barca, agora um catamarã, moderno, climatizado, com jeito de 
avião. Estranhei. Três quartos de hora passados, fui despejado de volta 
naquela praça famosa cujo nome eu já não queria saber, ornada de um 
palácio imperial coberto de pixações. Tive a sensação de ter vivido em 
Paquetá desde o berço e de que pisava, pela primeira vez, no continente.
 Ao me ver, minutos depois, a bordo de um carro amarelo, eu me 
perguntava, como um velho fantasma tamoio arrancado da aldeia: onde foi 
que eu vim parar?
 
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