March 7, 2018

Fuga em Paquetá


Arnaldo Bloch

Até fevereiro, podia dizer: “Nunca fui a Paquetá”. Não por qualquer aversão. Ao contrário: por quase meio século, cultivei o desejo de ir ao fundo da baía. Ouvira a história de uma aparição súbita de Vênus, ao primeiro canto do galo, às quatro da manhã, na ilha. Quando o céu azulou, contava o avô, a Estrela Dalva ficou “do tamanho da Lua" e as pessoas, mudas, imóveis, pasmaram, como os aldeões de Rimini à visão do transatlântico em “Amarcord”
.
Então, por quê? Suponho que a poesia de tal relato, e um medo de não poder reproduzi-la, fizeram de meu desejo um tabu. Precisou que os cavalos fossem abolidos e as charretes elétricas instaladas para que eu enfim cedesse, arrastado por uma tribo de amigos e amigas cariocas.

Às quatro, conduzido não pelo canto do galo, mas pela sineta do VLT, pisei na Praça XV e peguei a barca maior, com seus bancos de madeira azul colonial. As janelas da nau, com jeito de casario velho, arejadas pelo movimento, coloriram meus pulmões. Após passar sob a ponte, fui da proa à popa ver o Rio deixado para trás. Na majestosa linha panorâmica, à distância, a bruma dissipava o sangue da cidade dilacerada.

Uma hora depois, nas proximidades de Paquetá, avistei a ilhota de Luz del Fuego e as várias linhas de embarcações. Vi a favelinha estancada numa das encostas. Ao desembarcar, uma estranha corrida de rua, com meia dúzia de gatos pingados, rolava nas vielas e avenidas, mas ninguém prestava atenção, nem batia palmas, nem repassava sucolés de eletrólitos aos atletas. Eram zumbis pacíficos, e, após um breve passar d’olhos, invisíveis. De novo, pensei em Fellini.

Não vi, nem poderia ver, um só carro, ou moto, ou caminhão: o Rio de Paquetá era histórico e humilde, de uma dignidade serena. Uma Paraty sem status, sem pousadas, sem mansões, sem verniz. Vi o busto de Dom João, e o pequeno canhão. Vi outros bustos, um do índio altivo, outro de um rosto redondo, triste, coberto por trepadeiras. Logo dei de cara com o baobá centenário e sua lenda quatrocentona gravada numa placa:

“Sorte por longo prazo... a quem me beija e respeita. Sete anos de atraso a cada maldade a mim feita. O baobá. MDCXXVII”. Procurei um canto mais discreto da árvore e obedeci: um largo e longo abraço, os melhores pensamentos, e um beijo devocional. A turma quis fotografar mas foi proibida: “Privacidade”, demandei, para os autos, e a tribo vazou, soprando zoações.

Que vento sagrado batia naquele silêncio. O sábado era vazio e, fora os derradeiros corredores, só havia minhoca da terra e aliens esparsos, como nós. O sol era filtrado na medida por nuvens de prata só ligeiramente pontilhadas de chumbo. Nas águas, dezenas de pedras redondas mostravam suas metades emersas, fazendo parecer que foram postas ali por um anfíbio mestre paisagista dos mares.

A caminho da Praia da Moreninha, o pesado turbilhão do Rio continental, tão perto, tão longe, já havia perdido a batalha para o ruído de nossos passos nas ruas internas, de terra batida, o casario eclético, suaves varandas, sobrados de pedra, casebres engolidos por pequenos matagais, nenhum edifício, nenhuma fábrica, e o solar onde luxuriava Dom João VI. Não vi lixo nas calçadas ou alarmes de miséria e abandono. Num brechozinho, comprei dois budas de porcelana. Um não tinha face nem umbigo, enquanto o outro era perfeitamente talhado, como num sortilégio.

A praia da Moreninha estava deserta. Uma só birosca servia as últimas cervejas, com uma tevezinha que mostrava um Fla 0x4 Flu direto do Pantanal. Subimos a pedra que serve de mirante. O céu estava agora pálido e deitamos sobre a rocha quente. O Sol, até então oculto, rasgou as nuvens e abriu uma coroa que fez recair, nas águas, uma chuva de raios cor de laranja bem delineados. No encanto do poente ouvi a resposta do tempo à Vênus tamanho-Lua do avô.

A noite logo se instalou, “olorosa”, como na voz de Orlando Silva, sob o luar de Paquetá. Imerso no idílio musical, caí na tentação de me achar no paraíso. Lá pelas onze, vi, à beira da calçada estreita, casais idosos retirando, da marolinha das águas, uns peixes de comer, indiferentes à poluição. Até meia-noite crianças brincavam nas ruas e nas praças como se fosse meio-dia. “Se há violência aqui”, cogitei, “não deve ser muita, por falta de rota de fuga”. Fugitivos éramos nós, dos tormentos do lado de lá.

O buzinão soou anunciando a última barca, agora um catamarã, moderno, climatizado, com jeito de avião. Estranhei. Três quartos de hora passados, fui despejado de volta naquela praça famosa cujo nome eu já não queria saber, ornada de um palácio imperial coberto de pixações. Tive a sensação de ter vivido em Paquetá desde o berço e de que pisava, pela primeira vez, no continente. Ao me ver, minutos depois, a bordo de um carro amarelo, eu me perguntava, como um velho fantasma tamoio arrancado da aldeia: onde foi que eu vim parar?



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