Marcus Faustini
Como o prefeito é capaz de se pronunciar como protetor da infância se não está nas ruas acolhendo centenas delas?
Uma das 
maiores obscenidades do Brasil é contra suas crianças, pobres, em 
situação de vulnerabilidade social. Nas grandes cidades, como no Rio de 
Janeiro, o número de crianças e adolescentes que moram nas ruas, 
expostas à própria sorte, persiste. Viver em situação de rua cria um 
círculo de exposição a assédios que abala a dignidade humana e seduz 
para práticas de delitos. Não é comum assistirmos a virulentas 
manifestações contra essa situação e, agravando a situação, presenciamos
 um desmonte de políticas públicas de direitos para essas crianças.
Não
 são raras as vezes em que prevalece uma perversidade como reação quando
 o assunto é criança de rua: culpar os próprios meninos e meninas por 
estarem nessa situação e incentivar o tratamento delas como lixo da 
sociedade que deve ser jogado para debaixo do tapete. Muitos querem 
distância disso! A naturalidade com que esta fratura social é aceita, 
como se fosse apenas mais uma característica inevitável de nossos 
tempos, revela mais um aspecto da estrutura de desigualdade do país que 
acredita ser plausível a existência de gente sem acesso a dignidade 
mínima. É vergonhoso pensar que o número de crianças nas ruas cariocas 
esteja perto de poucas centenas, e nenhuma alternativa que promova rotas
 de fuga seja a aposta a ser feita.
Na cidade do 
Rio de Janeiro, gestores de programas governamentais e projetos apontam 
nas redes sociais o esvaziamento de centros de acolhimentos para essas 
crianças nos últimos meses. Um dos exemplos é o projeto Casa Viva, rede 
de abrigos anteriormente apoiados pela prefeitura e que agora estão 
fechados. As centrais de recepção de crianças e adolescentes em situação
 de rua estão lotadas e não existe nenhum lugar de acolhimento e 
encaminhamento em funcionamento. Mas, seguindo a regra de como o país 
ignora esse drama, esse desmantelo segue invisível, sem pressão da 
opinião pública. Ao mesmo tempo, o atual prefeito não pensou duas vezes 
em publicar um vídeo nas redes sociais em que, de forma irônica, diz que
 não vai aceitar as exposições artísticas que, em sua visão, incitam a 
pedofilia e zoofilia na cidade. Termina dizendo que o lugar delas seria 
“o fundo do mar” — numa referência ao Museu de Arte do Rio, o MAR, que 
teria se colocado como possível expositor da “Queermuseu”, com obras de 
artistas que supostamente violam princípios morais e religiosos. Ao 
mesmo tempo, o vídeo pegou carona na reação, iniciada pelo MBL e 
Bolsonaro, a uma performance no MAM (SP), onde um artista nu convida o 
público a mexer no seu corpo. Um outro vídeo que mostra uma criança 
acompanhada da mãe junto com o artista em ação disparou violentas 
reações nas redes e estimulou uma ação com agressão física a 
funcionários do MAM.
Como parte da sociedade pode 
ter uma reação tão arrebatadora a obras de arte e ficar quieta com 
crianças expostas nas ruas? Como o prefeito da cidade é capaz de se 
pronunciar como um protetor da infância se não está nas ruas procurando 
soluções e acolhendo centenas delas?
Depois de 
deixar acabar a comida das unidades de acolhimento a moradores de rua, 
adultos e crianças, nos últimos meses, a prefeitura mobilizou a Igreja 
Universal pedindo doação para esses espaços. Na opinião de algumas 
pessoas que trabalham com ações de proteção a infância e juventude — que
 preferem não se identificar por receio de represálias — existe um claro
 desmonte da política pública para repassá-la a grupos religiosos. Dados
 da Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos 
apontam que existiam cerca de 11 mil pessoas morando nas ruas da cidade 
até o final do primeiro semestre de 2017, sendo cerca de 9% de crianças,
 adolescentes e jovens. Um quadro capaz de ser revertido.
O
 bonde que Crivella pegou, reagindo a obras de arte, faz parte de uma 
estratégia de setores conservadores da política brasileira para 
crescerem no meio da descrença generalizada a que assistimos com a 
política. Mais uma vez, usam da criação de tensões com a arte, criando 
inimigos, para se promoverem como guardiões da moral, do bom costume e 
receberem adesão aos seus grupos e posteriores candidatos. E, com isso, 
esvaziam a política como o espaço de possibilidade de diminuição das 
desigualdades sociais e proteção de direitos. Ficam repetindo a lógica 
do bem contra o mal para esconder fragilidades de seus projetos de poder
 que passam longe de melhorar a vida das pessoas.
Está claro que a revolta produzida com a exposição “Queermuseu” e com a performance no MAM é fake,
 produzida, não tem como intenção a defesa de direitos para a infância. 
Em cada palavra dita nesse episódio existe a estimulação à violência nas
 redes e nas ruas. O papel de um gestor, nesse caso, seria juntar as 
instâncias da arte e de direitos da infância para encontrar uma saída.
Desejar
 que coisas estejam no fundo do mar é um ato falho, ao gosto de práticas
 autoritárias, aquelas que jogam as diferenças em calabouços ou no fundo
 do mar.
O GLOBO, OUTUBRO 2017  
 
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