Zélia Duncan
Toda
cura para todo mal. Essa frase deu nome a um álbum delicioso dos meus
amigos do Pato Fu. É interessante, pra não começar dizendo apenas
catastrófico, como é fácil pras criaturas dodóis, apontarem nos outros
possíveis doenças, problemas ou defeitos. Ainda agora Michel Fora Temer
estava naquele surto arrogante e mergulhado em mesóclises, falando no
plural sobre o Brasil que não lhe pertence. “Nós achamos que, entendemos
que, nossa agenda isso, nosso país aquilo...”Esse senhor, por exemplo,
não tem cura, não é? Mas também, ninguém faz uma lei pra obrigá-lo a se
tratar. Os fazedores de leis não têm interesse em reverter a situação,
porque os tribunais apontariam para eles mesmos. Digo os que ainda não
estão vendo o sol nascer quadrado, o que significa metade da cúpula
governista. Porque a outra metade está entrincheirada no Congresso
Nacional, com medo dos gays e da Lava-Jato.
Os gays sempre foram plataforma de fascistas, é erótico, ops, é histórico, sabemos disso, ou deveríamos saber.
Mas
voltemos ao tema da cura, que é bizarro e dá pano pra coluna. Gente
preocupada, olha só, não existe cura pra esse tipo de coisa, teria que
mudar veias, nervos, tecidos, cérebros, tatos, pelos, cabelos,
atmosferas, terrenos. Teria que nascer de novo em outros olhos, com
outros fluidos, outros molhos, outras salivas e lágrimas! Quem tem a
ideia de curar alguém pelo fato de uma orientação sexual fora do padrão
catalogado pelas igrejas mercantilistas está reprimindo, está apavorando
e sobretudo está apavorado com os espelhos e atos falhos do caminho.
Quem porventura pede pra ser curado, coitado, já foi atingido por
lavagens cerebrais, medos, tristezas sem fim, depressão pré-parto! Pois
não vai ter paz, não vai se sentir acolhido, não vai gozar de um jeito
nem de outro, porque a única saída é ser você, ser para o que nascemos e
a caça pelos momentos felizes pode então começar. “Cura gay” é um termo
de violência. Tentamos tratar com humor, porque temos essa qualidade,
mas até isso chega num limite. O pretenso profissional de psicologia,
que recebe um paciente com a intenção de não ser ele mesmo, deve
reconhecer essa pessoa que sofre nesse nível de flagelo e trabalhar
arduamente a aceitação, mostrar os malefícios da culpa e da negação.
As
pessoas estão doentes de ódio, que no mínimo respinga em cada um de
nós. É contagioso, se alastra, se entranha em todo canto. Da internet à
buzina raivosa do carro. Estamos atravessados de ódio e isso está nos
impregnando de ignorância violenta e burra. Ódio não sabe ver arte, por
exemplo, é sua antítese. Postaram a foto de um quadro onde havia adultos
abusando de uma criança, acusaram a pintora de pedofilia, falaram o
diabo, no entanto quem pintou foi a criança, que, já adulta, precisou
denunciar o que sofreu. Por essas e outras o pensamento faz tanta falta,
o exercício de pensar, contextualizar, de ler as camadas de
significados. Ver é chocante, mas onde está escrito que a arte não tem
também, e talvez até principalmente, como função incomodar e nos
revelar? É afinal, a representação do que somos, do que vemos no mundo,
nosso reflexo, nosso paradoxo, nosso infinito e nossas inúmeras
limitações. E não somos essa belezura exigida cinicamente pelos que se
dizem capazes de eleger o bom e o ruim, o que deve e o que não deve ser
visto nos museus ou nos palcos. Somos um pacote e esse pacote pode ser
muito surpreendente, porque o ser humano é muito mais complexo do que
uma tabela, um cadastro, onde você marca com um xis ou o F ou o M. O
preto ou o branco. O sim ou o não. Temos nuances, lacunas. Somos
arco-íris e somos furta-cor. Mas, sobretudo, somos donos intransferíveis
de nossas cores ou de nossa palidez.
Tenho visto
muita gente surpresa como eu, com o volume de opiniões que querem o
retrocesso. Que não reconhecem as lutas para certos avanços e que esses
avanços nos colocam no rumo de uma evolução possível. Eu não podia
imaginar que passaria por coisas que li em livros de história, como um
passado sombrio. A censura andando nas calçadas, frequentando
exposições, teatros, ecoando na garganta de tanta gente. Já tínhamos
conquistado essa liberdade, caramba! Vamos ter que (re)reconquistar? Não
acumulamos mais conhecimento e experiências no Brasil? Os efeitos da
não-educação, bem falou Darcy Ribeiro, são devastadores e estão aqui, no
nosso calcanhar. O vazio de pensar é preenchido com o gesso ignorância e
o veneno da violência.
E eles querem “cura gay”,
como se fosse mais um produto da cruel indústria farmacêutico-religiosa,
encontrado numa estante. Cuidado, gente, as contraindicações têm
efeitos devastadores e irreversíveis!
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