September 26, 2017

Os gays sempre foram plataforma de fascistas


Zélia Duncan


Toda cura para todo mal. Essa frase deu nome a um álbum delicioso dos meus amigos do Pato Fu. É interessante, pra não começar dizendo apenas catastrófico, como é fácil pras criaturas dodóis, apontarem nos outros possíveis doenças, problemas ou defeitos. Ainda agora Michel Fora Temer estava naquele surto arrogante e mergulhado em mesóclises, falando no plural sobre o Brasil que não lhe pertence. “Nós achamos que, entendemos que, nossa agenda isso, nosso país aquilo...”Esse senhor, por exemplo, não tem cura, não é? Mas também, ninguém faz uma lei pra obrigá-lo a se tratar. Os fazedores de leis não têm interesse em reverter a situação, porque os tribunais apontariam para eles mesmos. Digo os que ainda não estão vendo o sol nascer quadrado, o que significa metade da cúpula governista. Porque a outra metade está entrincheirada no Congresso Nacional, com medo dos gays e da Lava-Jato. 

Os gays sempre foram plataforma de fascistas, é erótico, ops, é histórico, sabemos disso, ou deveríamos saber.

Mas voltemos ao tema da cura, que é bizarro e dá pano pra coluna. Gente preocupada, olha só, não existe cura pra esse tipo de coisa, teria que mudar veias, nervos, tecidos, cérebros, tatos, pelos, cabelos, atmosferas, terrenos. Teria que nascer de novo em outros olhos, com outros fluidos, outros molhos, outras salivas e lágrimas! Quem tem a ideia de curar alguém pelo fato de uma orientação sexual fora do padrão catalogado pelas igrejas mercantilistas está reprimindo, está apavorando e sobretudo está apavorado com os espelhos e atos falhos do caminho. Quem porventura pede pra ser curado, coitado, já foi atingido por lavagens cerebrais, medos, tristezas sem fim, depressão pré-parto! Pois não vai ter paz, não vai se sentir acolhido, não vai gozar de um jeito nem de outro, porque a única saída é ser você, ser para o que nascemos e a caça pelos momentos felizes pode então começar. “Cura gay” é um termo de violência. Tentamos tratar com humor, porque temos essa qualidade, mas até isso chega num limite. O pretenso profissional de psicologia, que recebe um paciente com a intenção de não ser ele mesmo, deve reconhecer essa pessoa que sofre nesse nível de flagelo e trabalhar arduamente a aceitação, mostrar os malefícios da culpa e da negação.

As pessoas estão doentes de ódio, que no mínimo respinga em cada um de nós. É contagioso, se alastra, se entranha em todo canto. Da internet à buzina raivosa do carro. Estamos atravessados de ódio e isso está nos impregnando de ignorância violenta e burra. Ódio não sabe ver arte, por exemplo, é sua antítese. Postaram a foto de um quadro onde havia adultos abusando de uma criança, acusaram a pintora de pedofilia, falaram o diabo, no entanto quem pintou foi a criança, que, já adulta, precisou denunciar o que sofreu. Por essas e outras o pensamento faz tanta falta, o exercício de pensar, contextualizar, de ler as camadas de significados. Ver é chocante, mas onde está escrito que a arte não tem também, e talvez até principalmente, como função incomodar e nos revelar? É afinal, a representação do que somos, do que vemos no mundo, nosso reflexo, nosso paradoxo, nosso infinito e nossas inúmeras limitações. E não somos essa belezura exigida cinicamente pelos que se dizem capazes de eleger o bom e o ruim, o que deve e o que não deve ser visto nos museus ou nos palcos. Somos um pacote e esse pacote pode ser muito surpreendente, porque o ser humano é muito mais complexo do que uma tabela, um cadastro, onde você marca com um xis ou o F ou o M. O preto ou o branco. O sim ou o não. Temos nuances, lacunas. Somos arco-íris e somos furta-cor. Mas, sobretudo, somos donos intransferíveis de nossas cores ou de nossa palidez.

Tenho visto muita gente surpresa como eu, com o volume de opiniões que querem o retrocesso. Que não reconhecem as lutas para certos avanços e que esses avanços nos colocam no rumo de uma evolução possível. Eu não podia imaginar que passaria por coisas que li em livros de história, como um passado sombrio. A censura andando nas calçadas, frequentando exposições, teatros, ecoando na garganta de tanta gente. Já tínhamos conquistado essa liberdade, caramba! Vamos ter que (re)reconquistar? Não acumulamos mais conhecimento e experiências no Brasil? Os efeitos da não-educação, bem falou Darcy Ribeiro, são devastadores e estão aqui, no nosso calcanhar. O vazio de pensar é preenchido com o gesso ignorância e o veneno da violência.

E eles querem “cura gay”, como se fosse mais um produto da cruel indústria farmacêutico-religiosa, encontrado numa estante. Cuidado, gente, as contraindicações têm efeitos devastadores e irreversíveis!

O GLOBO, SETEMBRO 2017

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