São
muitos os temas de discussão levantados pelo cancelamento da exposição
de arte "queer" em Porto Alegre, que tem monopolizado os quebra-paus
virtuais. Trato aqui de apenas um deles: o reacionarismo estético que
marca este início de século.
Embora
o protagonismo do MBL no episódio possa sugerir que a falta de noção
sobre o que é arte se limita à ala mais tosca da direita, não temos
tanta sorte. Grande parte do filistinismo destes tempos emana da
esquerda.
Vai
ficando cada vez mais incorporada ao senso comum a ideia de que toda
representação artística deve ser lida ao pé da letra como depoimento
cândido, documento de interesse sociológico ou, pior, propaganda.
Junto
com isso vem um buquê de noções antilibertárias e antiartísticas: a
condenação censória de tudo que "ofenda" alguém, o "lugar de fala" como
uma cela a aprisionar todo artista, a "apropriação cultural" que segrega
influências, etc.
Todas
essas linhas de força convergem para um ataque supraideológico à
liberdade de expressão, e não só a dos artistas. Mas não precisamos ir
tão longe na filosofia.
Para
a brevidade desta coluna basta anotar que o ambiente asfixiante do
reacionarismo estético condena qualquer sopro de ficção, poesia, ironia e
distanciamento crítico a ser um suspiro de moribundo. Não há arte que
possa vingar assim.
Um
bom exemplo é "Cena de Interior II", quadro em que Adriana Varejão,
artista séria, recorre à estética da arte erótica japonesa para
representar cenas formativas de certa sexualidade brasileira de raízes
rurais e escravagistas. Na cartilha tatibitate do reacionarismo, virou
"apologia da zoofilia".
O
vício é generalizado. Se um personagem de filme fuma um baseado, dirige
depois de encher a cara ou xinga o pastor de ladrão, o reacionarismo
estético vê nisso apologia das drogas, da direção irresponsável e da
intolerância religiosa.
Não
faz diferença que as cenas possam ser representações realistas da vida e
nesse sentido funcionar –ou não, aí é que está– dentro de uma
construção dramática. Em vez de julgá-las pelo modo como se encaixam no
quadro simbólico da obra, o reacionarismo as toma pelo valor de face.
Rebaixado
tão drasticamente o horizonte intelectual, tudo vira "incentivo". A
personagem adolescente de um romance faz sexo grupal e engravida? Pouco
importa que pague um preço alto em infelicidade, está incentivando o
sexo precoce e promíscuo em jovens leitoras indefesas. Se for negra,
esquece-se o incentivo, mas aí estamos diante de uma odiosa
caracterização racista.
O
reacionarismo estético é inimigo das sutilezas e ambiguidades que
caracterizam a arte. Tudo deve ser chapado e traduzível num slogan.
Também odeia o específico, o contingente, a exceção. Apareceu na obra,
virou mandamento universal.
O
fenômeno não é novo nem exclusivo do Brasil. Quem ler os autos do
processo movido contra o romance "Madame Bovary", do francês Gustave
Flaubert, verá que já estava quase tudo lá.
Só que aquele era o século 19. O ressurgimento do reacionarismo estético como problema da cultura ocidental no século 21 é preocupante. O Brasil nem precisaria acrescentar ao pacote suas grotescas deficiências educacionais para se ver em apuros.
FOLHA, SETEMBRO 2017
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