Flávia Oliveira
Um discurso pode ser medido tanto pelo que exibe quanto pelo que esconde
O
 vice-presidente Michel Temer, açodado pela perspectiva de assumir a 
nação, teve o áudio em que se manifestaria ao país como virtual 
substituto de Dilma Rousseff tornado público na mesma segunda-feira em 
que deputados se preparavam para votar o relatório pró-impeachment na 
comissão especial da Câmara. Temer alegou que o vazamento fora 
acidental, mas confirmou que os quase 14 minutos de gravação expressavam
 seus pensamentos sobre um futuro governo. As prioridades apresentadas 
no curto e apressado pronunciamento sugerem uma agenda liberal, no 
sentido conservador do termo. Mas o que ficou de fora também diz muito 
sobre o que o Brasil pode esperar de uma gestão, até aqui, vice.
Um
 discurso pode ser medido tanto pelo que exibe quanto pelo que esconde. O
 áudio de Temer foi interpretado mais pelo gesto do que pelo conteúdo. 
Não faltou quem comparasse o ato ao do ex-presidente Fernando Henrique 
Cardoso, então candidato a prefeito de São Paulo, que na véspera do 
pleito posou para fotos sentado na cadeira de mandatário. A eleição 
acabou vencida por Jânio Quadros, que antes de ocupar o assento 
desinfetou-o, numa provocação ao adversário.
Esta 
colunista prefere associar Temer a outro episódio igualmente famoso, 
batizado de Lei Ricupero. Nos meses seguintes ao lançamento do Plano 
Real, em 1994, o então ministro da Fazenda do governo Itamar Franco teve
 uma conversa com um jornalista captada por antenas parabólicas antes da
 transmissão oficial da entrevista. No bate-papo informal, Rubens 
Ricupero declarava: “Eu não tenho escrúpulos. O que é bom a gente 
fatura; o que é ruim, esconde”. Acabou deixando o cargo quatro dias 
depois.
A sociedade brasileira há de decidir se 
foram boas ou ruins as omissões de Temer. O certo é que não foram 
poucas. O vice-presidente — lembrou na primeira hora o mestre Janio de 
Freitas — não tratou da Operação Lava-Jato no pronunciamento. Tampouco 
mencionou a palavra corrupção. Foi um par de ausências indigestas num 
país que, faz dois anos, se lança contra sucessivos escândalos de 
promiscuidade público-privada e toma as ruas a cobrar decência e 
repudiar malfeitos dos políticos.
Temer também 
deixou de citar a estabilidade fiscal como meta de governo. Passou 
batido pelo tema que teria dado argumentos técnico e jurídico ao 
processo de impedimento de Dilma Rousseff. Não foram as pedaladas 
fiscais e seus danos às contas públicas ponto central da petição 
assinada pelos juristas Hélio Bicudo, Miguel Reale Jr. e Janaína 
Paschoal? Faria sentido, então, que o virtual sucessor da presidente se 
comprometesse com a austeridade na gestão orçamentária. Em vez disso, o 
vice sinalizou para governadores afogados em crises financeiras a 
renegociação das dívidas com a União: “Há estudos referentes à eventual 
anistia e revisão dos juros sobre a dívida das partes federadas. Nós 
vamos levar isso adiante”.
No áudio em que 
delineou seu “governo de salvação nacional”, Temer se dirigiu a 
parlamentares de todos os partidos, ao capital privado local e 
estrangeiro, a beneficiários de programas sociais. Aos trabalhadores 
avisou que dará andamento a reformas que incentivem a harmonia com os 
empregadores, referência sutil à flexibilização da legislação. Por três 
vezes, falou em sacrifícios ao povo brasileiro. Prometeu recuperar 
investimentos e demarcou como áreas prioritárias para o Estado a 
segurança, a saúde e a educação, nessa ordem.
Temer
 não fez referência ao tripé câmbio flutuante, metas de inflação e 
estabilidade fiscal, que faz a alegria do mercado financeiro na gestão 
macroeconômica. Dada a ênfase concedida ao setor privado no áudio, não é
 errado inferir que o compromisso com a ortodoxia está subentendido. 
Afinal, são referências presentes no documento “Ponte para o futuro”, 
divulgado em fins de 2015 como Bíblia do PMDB para a economia. Ainda 
assim, a única menção à inflação — outro incômodo para os brasileiros, 
principalmente os mais pobres — foi rasa. O vice atribuiu a carestia ao 
“descrédito do país, que leva à ausência do crescimento, do 
desenvolvimento”
.
Se presidente for, o vice 
prometeu manter Bolsa Família, Pronatec, ProUni e Fies. Nada disse sobre
 Minha Casa, Minha Vida, programa habitacional do governo do qual é o 
primeiro na linha sucessória há seis anos. Tampouco sobre territórios 
indígenas. Não tratou do sistema de cotas em universidades ou concursos 
públicos. Não reservou uma palavra à agenda de direitos civis de negros,
 mulheres, LGBTs. Temer, em seu discurso, ignorou reivindicações caras à
 sociedade civil organizada, historicamente identificado com a agenda 
petista. São omissões que podem tanto significar mera desatenção, como 
também esconder a aproximação de um futuro governo com os setores mais 
conservadores do Congresso Nacional. O não dito preocupa.
 O GLOBO, 14 DE ABRIL DE 2016
 
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