April 15, 2016

Temer: o não dito


Flávia Oliveira


Um discurso pode ser medido tanto pelo que exibe quanto pelo que esconde

O vice-presidente Michel Temer, açodado pela perspectiva de assumir a nação, teve o áudio em que se manifestaria ao país como virtual substituto de Dilma Rousseff tornado público na mesma segunda-feira em que deputados se preparavam para votar o relatório pró-impeachment na comissão especial da Câmara. Temer alegou que o vazamento fora acidental, mas confirmou que os quase 14 minutos de gravação expressavam seus pensamentos sobre um futuro governo. As prioridades apresentadas no curto e apressado pronunciamento sugerem uma agenda liberal, no sentido conservador do termo. Mas o que ficou de fora também diz muito sobre o que o Brasil pode esperar de uma gestão, até aqui, vice.

Um discurso pode ser medido tanto pelo que exibe quanto pelo que esconde. O áudio de Temer foi interpretado mais pelo gesto do que pelo conteúdo. Não faltou quem comparasse o ato ao do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, então candidato a prefeito de São Paulo, que na véspera do pleito posou para fotos sentado na cadeira de mandatário. A eleição acabou vencida por Jânio Quadros, que antes de ocupar o assento desinfetou-o, numa provocação ao adversário.
Esta colunista prefere associar Temer a outro episódio igualmente famoso, batizado de Lei Ricupero. Nos meses seguintes ao lançamento do Plano Real, em 1994, o então ministro da Fazenda do governo Itamar Franco teve uma conversa com um jornalista captada por antenas parabólicas antes da transmissão oficial da entrevista. No bate-papo informal, Rubens Ricupero declarava: “Eu não tenho escrúpulos. O que é bom a gente fatura; o que é ruim, esconde”. Acabou deixando o cargo quatro dias depois.

A sociedade brasileira há de decidir se foram boas ou ruins as omissões de Temer. O certo é que não foram poucas. O vice-presidente — lembrou na primeira hora o mestre Janio de Freitas — não tratou da Operação Lava-Jato no pronunciamento. Tampouco mencionou a palavra corrupção. Foi um par de ausências indigestas num país que, faz dois anos, se lança contra sucessivos escândalos de promiscuidade público-privada e toma as ruas a cobrar decência e repudiar malfeitos dos políticos.
Temer também deixou de citar a estabilidade fiscal como meta de governo. Passou batido pelo tema que teria dado argumentos técnico e jurídico ao processo de impedimento de Dilma Rousseff. Não foram as pedaladas fiscais e seus danos às contas públicas ponto central da petição assinada pelos juristas Hélio Bicudo, Miguel Reale Jr. e Janaína Paschoal? Faria sentido, então, que o virtual sucessor da presidente se comprometesse com a austeridade na gestão orçamentária. Em vez disso, o vice sinalizou para governadores afogados em crises financeiras a renegociação das dívidas com a União: “Há estudos referentes à eventual anistia e revisão dos juros sobre a dívida das partes federadas. Nós vamos levar isso adiante”.

No áudio em que delineou seu “governo de salvação nacional”, Temer se dirigiu a parlamentares de todos os partidos, ao capital privado local e estrangeiro, a beneficiários de programas sociais. Aos trabalhadores avisou que dará andamento a reformas que incentivem a harmonia com os empregadores, referência sutil à flexibilização da legislação. Por três vezes, falou em sacrifícios ao povo brasileiro. Prometeu recuperar investimentos e demarcou como áreas prioritárias para o Estado a segurança, a saúde e a educação, nessa ordem.

Temer não fez referência ao tripé câmbio flutuante, metas de inflação e estabilidade fiscal, que faz a alegria do mercado financeiro na gestão macroeconômica. Dada a ênfase concedida ao setor privado no áudio, não é errado inferir que o compromisso com a ortodoxia está subentendido. Afinal, são referências presentes no documento “Ponte para o futuro”, divulgado em fins de 2015 como Bíblia do PMDB para a economia. Ainda assim, a única menção à inflação — outro incômodo para os brasileiros, principalmente os mais pobres — foi rasa. O vice atribuiu a carestia ao “descrédito do país, que leva à ausência do crescimento, do desenvolvimento”
.
Se presidente for, o vice prometeu manter Bolsa Família, Pronatec, ProUni e Fies. Nada disse sobre Minha Casa, Minha Vida, programa habitacional do governo do qual é o primeiro na linha sucessória há seis anos. Tampouco sobre territórios indígenas. Não tratou do sistema de cotas em universidades ou concursos públicos. Não reservou uma palavra à agenda de direitos civis de negros, mulheres, LGBTs. Temer, em seu discurso, ignorou reivindicações caras à sociedade civil organizada, historicamente identificado com a agenda petista. São omissões que podem tanto significar mera desatenção, como também esconder a aproximação de um futuro governo com os setores mais conservadores do Congresso Nacional. O não dito preocupa.

 O GLOBO, 14 DE ABRIL DE 2016

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