Arthur Dapieve
Como
 tantos filhos cujos pais se separaram, eu e minha irmã ganhamos um 
animal de estimação. Meus tios viram filhotes de cachorro à venda numa 
barraca da Domingos Ferreira e, de noite, nos levaram à casa do feirante
 para escolher um. Da pequena matilha, uma menina meio pinscher meio fox
 terrier se insinuou para nós. Foi batizada de Kelly e tornou-se nossa 
amorosa companheira por bons 15 anos.
Pouco tempo 
depois, minha irmã viu um gatinho tigrado abandonado debaixo de um carro
 na Bolívar. Entre as lendas que cercam a convivência entre cães e gatos
 e o risco real que o bichinho corria em meio aos pneus de Copacabana, 
ela decidiu resgatá-lo. Depois de certa confusão sobre seu sexo, durante
 a qual o chamamos de Bruna, foi batizado de Bozó. A ideia era achar 
quem o adotasse. Kelly o adotou. Viveu 17 anos. 
Quando
 Bozó morreu, eu já não morava com ele. Estava casado, noutro bairro, e 
acompanhei pelo telefone a minha mãe e a minha irmã tomarem a difícil 
decisão de sacrificá-lo. Depois da Kelly, morria o meu outro melhor 
amigo. Jurei que não queria mais ter animais para não ter de passar de 
novo pela imensa dor de perdê-los. Diante da perspectiva das tristezas, 
eu renunciava às alegrias. A metade vazia do copo, sempre.
O
 fato de minha primeira mulher ter medo de animais ajudou-me a manter 
essa decisão. A alegria da chegada de nossa filha fez-me esquecer 
completamente o assunto. Porém, tal qual o casamento dos meus pais, o 
meu também acabou. E nem a solidão da solteirice e da paternidade à 
distância me fizeram voltar atrás. Animais, nunca mais.
Comecei
 a namorar. A moça decidiu dar uma gatinha às filhas. Comprou uma 
siamesa e batizou-a de Gabi. Não deu muito certo no propósito de fazer 
companhia às meninas. Parece que a raça não se entende com crianças 
pequenas. Gabi chegou-se foi à adulta. Fosse como fosse, eram as quatro 
mulheres lá, em Icaraí. Eu cá, em Laranjeiras.
Um 
dia, porém, eu e minha namorada decidimos nos casar. Vieram ela, as duas
 filhas e, naturalmente, a Gabi, então com pouco mais de dois anos. Sou 
quase um Francisco de Assis. Sempre tive facilidade com animais. Não foi
 difícil para a Gabi me adotar. Lembrei-me comovido do Bozó e de por que
 os egípcios veneravam os gatos. “Você paparica demais essa gata!”, 
brincava minha mulher, que também a adorava.
A 
contemplação da Gabi tornou-se a nossa religião particular. A 
inteligência, a graça, os olhos muito azuis, a máscara e as luvas 
pretas... Sua personalidade forte — que as nossas três pequenas 
detratoras chamavam de “maus bofes” — não nos deixava considerar a sério
 a hipótese de acrescentar outra divindade peluda ao nosso templo. No 
entanto, quando a Gabi já tinha quase oito anos, uma amiga precisou 
achar lares para uma ninhada. Receosos, adotamos um tigrado ruivo e 
magricela, que chamei de Tigre.
Gabi não só 
aceitou o Tigre como deixou que ele sugasse suas tetas sem leite. Aberta
 a porteira, com o passar dos anos, adotamos o Gaudí, gordinho branco de
 pelo longo, focinho cor de coco queimado, e acolhemos o Bartók, 
gordinho preto com manchas brancas na barriga e nas axilas. Minha mulher
 praticamente transformou em hobby as fotografias dos quatro gatos. Eu 
pensava em Picasso. Els Quatre Gats.
De manhã 
cedo, um a um, vinham nos dar bom-dia na cama que tomávamos emprestada 
deles. Se alguma vez na vida eu tive a consciência de estar sendo feliz 
foi nessas manhãs. Contudo, diferentemente da felicidade pura e simples,
 da qual se goza e ponto, a consciência de estar sendo feliz arrasta a 
percepção de que a felicidade acaba. Passei os últimos anos assombrado 
por essa inevitabilidade biológica.
Aquela nossa 
felicidade matinal acabou há quase dois meses. Gabi morreu, perto de 
fazer 19 anos. Teve uma vida longa e, tirando a derradeira semana, uma 
vida boa. Foi elegante até o final. Partiu quando pegamos no sono. Desde
 então, não há um único dia em que eu não chore de saudade. Ela estaria 
aqui, ronronando no meu colo, enquanto escrevo a coluna (uma outra 
coluna, claro). Ou ali, dormindo na poltrona. No máximo, na porta do 
escritório, miando para entrar. Ela era a minha companheira de trabalho.
Pergunto-me
 qual o propósito de um texto assim, texto que não me sentia pronto para
 escrever até a última sexta, quando li a “cachorreira” Zélia Duncan 
prantear a morte de Doralice, siamesa de 16 anos. A Cora Rónai e o Artur
 Xexéo também já homenagearam seus entes queridos e peludos. Noutras 
folhas, lembro-me de uma crônica antológica do Carlos Heitor Cony, 
chorando sua cadela Mila, de 13 anos. Trata-se quase de um gênero 
literário, uma narrativa de encontro, encantamento e despedida.
Ocorre-me
 que para esse luto sem velório, obituário ou anúncio fúnebre, para essa
 dor terrível, mas que afeta diretamente apenas um indivíduo, um casal, 
no máximo uma família, para essa saudade sem expressão social, um texto 
assim é o modo de comunicar à praça: ei, a Gabi existiu, eu a amava, e 
fomos muito felizes juntos. 
O GLOBO, 9 DE OUTUBRO DE 2015 
 
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