October 12, 2015

Gabi

Arthur Dapieve

Como tantos filhos cujos pais se separaram, eu e minha irmã ganhamos um animal de estimação. Meus tios viram filhotes de cachorro à venda numa barraca da Domingos Ferreira e, de noite, nos levaram à casa do feirante para escolher um. Da pequena matilha, uma menina meio pinscher meio fox terrier se insinuou para nós. Foi batizada de Kelly e tornou-se nossa amorosa companheira por bons 15 anos.

Pouco tempo depois, minha irmã viu um gatinho tigrado abandonado debaixo de um carro na Bolívar. Entre as lendas que cercam a convivência entre cães e gatos e o risco real que o bichinho corria em meio aos pneus de Copacabana, ela decidiu resgatá-lo. Depois de certa confusão sobre seu sexo, durante a qual o chamamos de Bruna, foi batizado de Bozó. A ideia era achar quem o adotasse. Kelly o adotou. Viveu 17 anos. 

Quando Bozó morreu, eu já não morava com ele. Estava casado, noutro bairro, e acompanhei pelo telefone a minha mãe e a minha irmã tomarem a difícil decisão de sacrificá-lo. Depois da Kelly, morria o meu outro melhor amigo. Jurei que não queria mais ter animais para não ter de passar de novo pela imensa dor de perdê-los. Diante da perspectiva das tristezas, eu renunciava às alegrias. A metade vazia do copo, sempre.

O fato de minha primeira mulher ter medo de animais ajudou-me a manter essa decisão. A alegria da chegada de nossa filha fez-me esquecer completamente o assunto. Porém, tal qual o casamento dos meus pais, o meu também acabou. E nem a solidão da solteirice e da paternidade à distância me fizeram voltar atrás. Animais, nunca mais.

Comecei a namorar. A moça decidiu dar uma gatinha às filhas. Comprou uma siamesa e batizou-a de Gabi. Não deu muito certo no propósito de fazer companhia às meninas. Parece que a raça não se entende com crianças pequenas. Gabi chegou-se foi à adulta. Fosse como fosse, eram as quatro mulheres lá, em Icaraí. Eu cá, em Laranjeiras.

Um dia, porém, eu e minha namorada decidimos nos casar. Vieram ela, as duas filhas e, naturalmente, a Gabi, então com pouco mais de dois anos. Sou quase um Francisco de Assis. Sempre tive facilidade com animais. Não foi difícil para a Gabi me adotar. Lembrei-me comovido do Bozó e de por que os egípcios veneravam os gatos. “Você paparica demais essa gata!”, brincava minha mulher, que também a adorava.
  
A contemplação da Gabi tornou-se a nossa religião particular. A inteligência, a graça, os olhos muito azuis, a máscara e as luvas pretas... Sua personalidade forte — que as nossas três pequenas detratoras chamavam de “maus bofes” — não nos deixava considerar a sério a hipótese de acrescentar outra divindade peluda ao nosso templo. No entanto, quando a Gabi já tinha quase oito anos, uma amiga precisou achar lares para uma ninhada. Receosos, adotamos um tigrado ruivo e magricela, que chamei de Tigre.

Gabi não só aceitou o Tigre como deixou que ele sugasse suas tetas sem leite. Aberta a porteira, com o passar dos anos, adotamos o Gaudí, gordinho branco de pelo longo, focinho cor de coco queimado, e acolhemos o Bartók, gordinho preto com manchas brancas na barriga e nas axilas. Minha mulher praticamente transformou em hobby as fotografias dos quatro gatos. Eu pensava em Picasso. Els Quatre Gats.

De manhã cedo, um a um, vinham nos dar bom-dia na cama que tomávamos emprestada deles. Se alguma vez na vida eu tive a consciência de estar sendo feliz foi nessas manhãs. Contudo, diferentemente da felicidade pura e simples, da qual se goza e ponto, a consciência de estar sendo feliz arrasta a percepção de que a felicidade acaba. Passei os últimos anos assombrado por essa inevitabilidade biológica.

Aquela nossa felicidade matinal acabou há quase dois meses. Gabi morreu, perto de fazer 19 anos. Teve uma vida longa e, tirando a derradeira semana, uma vida boa. Foi elegante até o final. Partiu quando pegamos no sono. Desde então, não há um único dia em que eu não chore de saudade. Ela estaria aqui, ronronando no meu colo, enquanto escrevo a coluna (uma outra coluna, claro). Ou ali, dormindo na poltrona. No máximo, na porta do escritório, miando para entrar. Ela era a minha companheira de trabalho.

Pergunto-me qual o propósito de um texto assim, texto que não me sentia pronto para escrever até a última sexta, quando li a “cachorreira” Zélia Duncan prantear a morte de Doralice, siamesa de 16 anos. A Cora Rónai e o Artur Xexéo também já homenagearam seus entes queridos e peludos. Noutras folhas, lembro-me de uma crônica antológica do Carlos Heitor Cony, chorando sua cadela Mila, de 13 anos. Trata-se quase de um gênero literário, uma narrativa de encontro, encantamento e despedida.

Ocorre-me que para esse luto sem velório, obituário ou anúncio fúnebre, para essa dor terrível, mas que afeta diretamente apenas um indivíduo, um casal, no máximo uma família, para essa saudade sem expressão social, um texto assim é o modo de comunicar à praça: ei, a Gabi existiu, eu a amava, e fomos muito felizes juntos. 

 Arthur Dapieve Foto: O Globo

O GLOBO, 9 DE OUTUBRO DE 2015

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