February 26, 2024

Somos todos Assange

 

 

 No julgamento do recurso do fundador do WikiLeaks está em jogo a defesa do jornalismo

 P O R D U N C A N C A M P B E L L

Ao passar pelos tribunais
reais de Justiça em Lon-
dres num dia de semana,
você frequentemente ve-
rá pequenos grupos a se-
gurar cartazes e distribuir panfletos so-
bre um caso em julgamento. Na terça-fei-
ra 20, houve muitos deles na calçada, de-
monstrando suas opiniões sobre um ca-
so que tem ramificações para o jornalis-
mo em todo o mundo. Lá dentro, num tri-
bunal lotado, dois juízes da Suprema
Corte ouviram os argumentos de um pe-
dido de recurso para Julian Assange, o
fundador do WikiLeaks, não ser remo-
vido da prisão de segurança máxima de
Belmarsh para enfrentar julgamento e
uma pena potencial de 175 anos de pri-
são nos Estados Unidos, onde enfrenta
18 acusações criminais por seu suposto
papel na obtenção e divulgação de docu-
mentos confidenciais. Estes revelaram
detalhes das atividades dos Estados Uni-
dos no Iraque e no Afeganistão, incluin-
do ataques a civis. Também revelaram
detalhes do tratamento dispensado aos
prisioneiros na Baía de Guantánamo
(Cuba) e ligações com atividades clan-
destinas no Oriente Médio.

 
No início deste mês, num caso não re-
lacionado, o ex-agente da Agência Cen-
tral de Inteligência Joshua Schulte foi
condenado em Nova York a 40 anos de
prisão por vazar informações confiden-
ciais para o WikiLeaks.

 
Um aspecto fundamental da acusa-
ção de Assange é a tentativa das autori-
dades norte-americanas de convencer
jornalistas que criticaram Assange, fi-
gura frequentemente controversa, a de-
por contra ele. Ao menos quatro jorna-
listas conhecidos foram abordados pe-
la Polícia Metropolitana de Londres em
nome do FBI: James Ball, seu ex-cole-
ga do WikiLeaks, que agora trabalha
no Bureau of Investigative Journalism,
David Leigh, ex-jornalista do Guardian
e do Observer, Heather Brooke, ativista
pela liberdade de informação, e Andrew
O’Hagan, que tinha sido contratado pa-
ra escrever de forma anônima a “autobio-
grafia” de Assange. Todos se recusaram
a cooperar com o FBI. Num artigo para a
revista Rolling Stone no ano passado, Ball
disse ter sido abordado pela primeira vez

em 2021 e submetido a pressão, incluindo
a ameaça de ele próprio ser processado.

 
O’Hagan afirmou que, embora tives-
se diferenças com Assange, ficaria fe-
liz em ir para a prisão em vez de ajudar
o FBI. “Acrescentaria apenas: a tentati-
va de punir Assange por expor a verdade
é um ataque ao próprio jornalismo. No-
to que nenhum dos veículos da corrente
dominante que publicaram o material,
New York Times, Guardian e Der Spiegel,
foi processado, o que demonstra que no
centro desse caso há um preconceito ge-
racional contra o jornalismo baseado na
internet... Se Julian for mandado para os
Estados Unidos, a Grã-Bretanha não te-
rá conseguido proteger um dos primei-
ros princípios da democracia.”

 
Num artigo na British Journalism
Review no ano passado, Leigh escre-
veu: “Ao contrário dos militares dos Es-
tados Unidos, ele não tem sangue nas
mãos”. E acrescentou recentemente:
“É incrivelmente cruel e desnecessário
punir Assange dessa forma”.

 
Um jornalista que não foi contata-
do e que diz que também teria rejeitado
qualquer abordagem é Nick Davies, que
trabalhou em estreita colaboração com
Assange enquanto esteve no Guardian.

 
“Quando publicamos esse material, tí-
nhamos duas razões para considerar que
os EUA não iriam processar Julian”, dis-
se. “Uma delas era que, em sã consciên-
cia, eles não poderiam distorcer seu ato
de espionagem como uma arma para ata-
car o jornalismo. A outra era que nenhum
governo decente poderia processar
Julian ignorando ao mesmo tempo o ca-
tálogo de crimes repugnantes cometidos
pelas forças dos Estados Unidos e seus
aliados que estávamos denunciando.”
Davies acrescenta: “Durante todos os
anos de Barack Obama, essas suposições
permaneceram válidas. Foi preciso Donald
Trump, imoral e indecente, para derrubá

las. É simplesmente vergonhoso que o pes-
soal de Joe Biden use Trump como guia.”

 
O Sindicato Nacional de Jornalistas,
assim como a Repórteres Sem Frontei-
ras, apoia firmemente Assange, tal co-
mo muitas organizações, entre elas a
Anistia Internacional e a Human Rights
Watch. A relatora especial da ONU pa-
ra tortura, Alice Jill Edwards, instou
o governo britânico a suspender a ex-
tradição, pois Assange correria o risco
 

 A última batalha de extradição, a en-
volver o hacker Gary McKinnon, só foi in-
terrompida em 2012 pela então ministra
do Interior britânica, Theresa May. Os
secretários do Interior trabalhistas ha-
viam se recusado a intervir. Janis Sharp,
mãe de McKinnon, à frente de uma lu-
ta para impedir a extradição, disse: “Os
direitos humanos de Julian Assange, de
sua esposa e dos seus dois filhos não es-
tão apenas sendo ignorados, mas espe-

inhados. Impedir que os tilhos tenham 

uma vida com o pai porque, em seu tra-
balho de jornalista, ele expôs informa-
ções chocantes de interesse público é re-
almente um castigo cruel e incomum”.

 
Além de suas desavenças com colegas
jornalistas, Assange foi acusado de cri-
mes sexuais na Suécia em 2010. Recusou-
-se a regressar para enfrentar acusações,
sob a alegação de que isso poderia ter le-
vado à sua extradição para os EUA, mas
concordou em ser entrevistado pelas au-
toridades suecas em Londres, oferta não
aceita. O caso gerou muitas críticas.
Jornalisticamente, o apoio veio de
todo o espectro. Alan Rusbridger, edi-
tor do Guardian durante a longa saga do
WikiLeaks, escreveu no Prospect, que
agora edita: “Sei que eles não vão parar
com Assange. O mundo da vigilância qua-
se total, meramente esboçado por George
Orwell em 1984, é hoje assustadoramen-
te real”. Peter Hitchens, que não é fã de
Assange, escreveu no site MailOnline:

 
“Até mesmo um poodle se oporia à forma
como estamos nos comportando atual-
mente em relação aos Estados Unidos.
Estamos prestes a permitir que o gover-
no americano chegue a este país e pren-
da um homem que não violou nenhuma
lei britânica”. O Parlamento da Austrália
acaba de aprovar uma moção por 86 votos
a 42 em favor da libertação de Assange.

 
Todos estes, para não mencionar os
muitos manifestantes que se reuniram
na porta do tribunal na terça-feira 20, de-
vem agora esperar pela decisão do tribu-
nal supremo e pelo que esta poderá signi- 

ficar para Assange – e para o jornalismo.

CARTA CAPITAL 



 

 

February 24, 2024

YOKO REVISITADA

 


Viúva de Lennon é tema de uma mostra em Londres
que a celebra como pioneira do feminismo na cena
artística e propõe uma nova visão sobre sua relação
com o beatle 

 FELIPE BRANCO CRUZ 

A HISTÓRIA sobre como John Lennon e Yoko Ono se co-
nheceram é indissociável do imaginário sobre os Beatles.
Em 9 de novembro de 1966, o cantor visitou uma exposição
numa galeria londrina. Lennon afirmava não saber quem
era Yoko, mas a artista japonesa sabia quem ele era, claro, e
o acompanhou pessoalmente no tour. Lennon se interessou
por obras como uma modesta maçã verde num pedestal. Ao
perguntar quanto custava, Yoko jogou o valor lá em cima:
200 libras (pouco mais de 1 200 reais). Atrevido, o roqueiro
pegou a fruta e mordeu — e a artista não gostou. Outra peça
que chamou a atenção foi Ceiling Painting, que consistia nu-
ma escada com uma lupa para olhar um pedaço de papel no

teto com a inscrição “sim”. Ele ficou maravilhado ao ler algo
tão positivo. Mas a obra que fez os olhos do beatle se pren-
derem em Yoko foi Painting to Hammer a Nail In (Nº 9).
Tratava-se de uma placa na parede na qual era possível mar-
telar pregos. Lennon perguntou se poderia bater num deles.
Yoko disse que custaria alguns centavos. “Vou dar a você
5 xelins imaginários e martelar um prego imaginário”, ele
respondeu. Ela sorriu — e ambos nunca mais se separaram.

 
Algumas das obras que contribuíram para o engate do
famoso romance integram o acervo de Yoko Ono: Music of
the Mind, exposição que acaba de entrar em cartaz na Tate
Modern, em Londres — e é a maior retrospectiva da artista
já feita no Reino Unido. Mais que espiar os bastidores do re-
lacionamento dela com Lennon, a mostra é uma oportuni-
dade para examinar algo menos óbvio: qual o valor, afinaL

do legado de Yoko Ono como artista plástica? Com 91 anos
completados no domingo, 18, ela até hoje é vista por muitos
como a megera responsável por separar os Beatles e minar a
carreira do marido — ainda por cima, ganhando fama com
isso. Os 200 itens em exibição em Londres — incluindo ob-
jetos, textos, instalações, filmes, músicas e fotografias —
lançam uma provocação que inverte essa lógica: e se, na ver-
dade, foi justamente o casamento com Lennon que inibiu a
carreira de uma mulher destinada a brilhar nas artes?
Embora a premissa seja controversa, a exposição resga-
ta indícios de que Yoko foi de fato uma artista pioneira e
capaz de romper barreiras quando ainda não conhecia o
beatle. Vídeos do início dos anos 1960 recuperam perfor-
mances criadas e protagonizadas por ela que são exempla-
res do que viria a ser chamado de arte feminista — bem
antes de a tendência surgir. É o caso de Cut Piece, de 1965,
em que Yoko entrava numa sala vestida, entregava uma te-
soura ao público e deixava que cortassem pedaços de sua
roupa até ela ficar nua. A artista tinha uma sensação real
de violação, mas o que lhe importava eram os questiona-
mentos que surgiam no público.

 
Yoko foi uma mulher ousada numa seara que, apesar
de moderna e liberal, ainda era dominada por homens.
Tanto que ela se irritou quando seu nome não foi credita-
do entre os criadores de um de seus primeiros happenings
— a forma de arte contemporânea em que é impossível
dissociar a experimentação estética da pura piração. O

 único crédito que lhe deram foi como dona do loft onde a
coisa toda acontecia em Nova York. Ainda assim, Yoko foi
se impondo — em trabalhos solo ou no grupo Fluxus —
como desbravadora da então nascente arte conceitual, al-
tamente influenciada pelo trabalho iconoclástico do fran-
cês Marcel Duchamp (1887-1968).

 
Quando Yoko se uniu a Lennon, veio o efeito colateral: a
parceria potencializou não seu ímpeto inovador, mas a auto-
complacência tão comum entre artistas contemporâneos,
realçando certa obviedade pueril de suas obras. A obsessão
pela paz, que nasceu dos traumas de infância no Japão du-
rante a Segunda Guerra, converteu-se numa militância ri-
ponga e algo demagógica junto do marido (canções como
Imagine tinham ressonância inegável em sua época, mas ho-
je podem soar ingênuas). De artista de vanguarda, ela pas-
sou a surfar na fama — e daí vieram lances lamentáveis co-
mo a tentativa de virar cantora em discos ao lado de Len-
non. De uma coisa, contudo, Yoko não pode ser acusada: de
ter enriquecido à custa do beatle. Vinda de uma família
abastada, ela é herdeira de um dos maiores bancos do Japão
e estudou com filhos do imperador do país. Imagine se ti-
vesse sido Yoko Ono, apenas. 

VEJA   

 

O GATILHO DA INDIFERENÇA

 

 

SERGIO LIRIO

Varia, de conflito a conflito,
o momento exato em que a
avalanche de informações
e imagens começa a pro-
duzir o efeito inverso. De
repente, não mais do que
de repente, a indignação
transforma-se em indife-
rença. Os ucranianos experimentam essa
sensação faz tempo. A invasão russa ultra-
passou a marca dos 500 dias e, apesar das
promessas dos aliados ocidentais, a Ucrâ-
nia nunca esteve tão à mercê do Kremlin.
 
Nos Estados Unidos, os republicanos blo-
queiam o envio de armas e dinheiro. Na
União Europeia, o entrave tem sido a Hun-
gria de Viktor Orbán. Desfeita a ilusão –
ou a propaganda – de uma decantada vitó-
ria sobre a Rússia, quase ninguém se lem-
bra do sofrimento da população ucrania-
na, em mais um inverno sem energia e sem
perspectiva. Enquanto isso, Volodymyr
Zelensky cumpre o vaticínio do chance-
ler russo, Sergey Lavrov. Tornou-se, a con-
tragosto, no “mendigo de Kiev”. Quanto
mais implora a Washington e a Bruxelas,
menos migalhas recebe. Zelensky é obri-
gado a se contentar com tapinhas na cos-
ta e declarações de incentivo.
 
A caminho do quarto mês, o conflito
na Faixa de Gaza parece seguir o mes-
mo traçado. Diariamente, os corpos dos
palestinos continuam a ser empilha-
dos às centenas e um processo na Cor-
te de Haia, aberto a pedido da África
do Sul, vai determinar se Israel pratica
ou não genocídio no enclave (análise de
Reginaldo Nasser à pág. 14), mas a con-
tagem do número de vítimas reverbera
um processo mecânico. Na segunda-feira
15, segundo as autoridades de saúde pa-
lestina, eram 24.118 mortos e mais de 60
mil feridos. No dia seguinte, os ataques
israelenses acrescentaram cerca de 200
vítimas às estatísticas. Ao mesmo tem-
po, o Hamas divulgou nas redes sociais
a imagem de dois reféns israelenses mor-
tos em cativeiro. Há ainda 132 prisionei-
ros em poder do grupo islâmico – não se
sabe quantos vivos. Quem se comove?
 
O martírio está longe do fim. As duas
primeiras semanas do ano estabelece-
ram uma nova dinâmica na região e, a es-
ta altura, o mundo encontra-se mais perto
 de assistir a um conflito generalizado no
Oriente Médio do que à retirada das tropas
israelenses do território palestino, embo-
ra o ministro da Defesa, Yoav Gallant, te-
nha, na terça-feira 16, anunciado para bre-
ve o fim da ofensiva em “alta intensidade”
na Faixa de Gaza. Parênteses: na noite do
anúncio de Gallant, mísseis e soldados is-
raelitas mataram 163 palestinos em Gaza
e sete na Cisjordânia. Na fronteira norte,
o Hezbollah, grupo armado xiita libanês,
mantém a prontidão e faz ataques fortui-
tos às tropas israelenses. O Irã destruiu su-
postas “bases de espionagem do Mossad”
no Iraque e na Síria. Outra ação de Teerã
provocou um incidente diplomático com
o Paquistão, que acusa o regime dos aia-
tolás de matar duas crianças em seu ter-
ritório durante o lançamento de mísseis
contra aparentes redutos do grupo sunita
Jaish al-Adl, acusado de assassinar 11 poli-
ciais iranianos. “A responsabilidade pelas
consequências recairá diretamente sobre
o Irã”, protestou em nota o Ministério das
Relações Exteriores paquistanês.
 
A mais recente e preocupante frente de
tensão desenrola-se, no entanto, no Mar
Vermelho. Os bombardeios norte-ameri-
canos, apoiados pelo Reino Unido, a alvos
militares no Iêmen não foram suficientes
para dissuadir os rebeles houthis (repor-
tagem à página 16). Em solidariedade aos
palestinos e com a bênção dos aiatolás ira-
nianos, o grupo xiita tem infernizado, des-
de o fim de 2023, as rotas comerciais no es-
treito de Bab-el-Mandeb, por onde trafe-
gam 15% dos produtos enviados pela Ásia
à União Europeia. Em seu mais recente
relatório, o Banco Mundial alerta para
os efeitos da instabilidade sobre a recu-
peração da economia global. “Os recen-
tes ataques a navios comerciais começa-
ram a perturbar as principais rotas marí-
timas”, descreve o texto, “o que desgasta
a folga nas redes de abastecimento e au-
menta a probabilidade de estrangulamen-
tos inflacionários. Em um cenário de con-
flitos crescentes, o fornecimento de ener-
gia também poderá ser substancialmente
perturbado.” Grandes empresas e opera-
dores de logística suspenderam o trânsi-
to de mercadorias até segunda ordem, en-
quanto os houthis prometem intensificar
os ataques em retaliação aos bombardeios
ordenados por Washington. Na terça-fei-
ra 16, afundaram uma embarcação de ban-
deira grega. “O navio não precisa neces-
sariamente estar em direção a Israel para
que possam atingi-lo. Basta que seja norte-
-americano. Os EUA estão à beira de per-
der a sua segurança marítima”, ameaçou
Narsuldeen Amer, porta-voz dos rebeldes.
 
O único beneficiário de uma conflagra-
ção regional é o primeiro-ministro de Is-
rael, Benjamin Netanyahu. Quanto maio-
res as chances de o conflito envolver ou-
tras nações do Oriente Médio, mais forte
se torna o argumento em favor da manu-
tenção de um governo de coalização na-
cional, o que adiaria não só o fim do man-
dato de Bibi, a quem a maioria dos compa-
triotas culpa pelos atos do Hamas em 7 de
outubro, mas o afastaria por tempo inde-
terminado do acerto de contas com a Jus-
tiça israelense, em decorrência das acusa-
ções de corrupção. Netanyahu agradece e
mantém o fósforo aceso perto do rastilho
de pólvora. O Parlamento israelense aca-
ba de aprovar um aumento de 15 bilhões
de dólares (cerca de 75 bilhões de reais)
no orçamento militar, para fazer frente à
promessa de uma longa operação em Ga-
za, sem data para acabar.
 
Os alertas das entidades de direitos
humanos, por sua vez, continuam per-
turbadores. A despeito dos acordos pa-
ra a entrada de ajuda humanitária, o úl-
timo anunciado pelo Catar na quarta-
-feira 17, a escassez de alimentos é outra
forma de punir os palestinos. “A guerra
trouxe a fome com uma velocidade in-
crível para a frente das linhas”, afirmou
Martin Griffiths, subsecretário-geral
das Nações Unidas. No Fórum Econô-
mico Mundial, em Davos, o chefe de Gri-
ffiths, António Guterres, voltou a pedir
um cessar-fogo: “O mundo está de braços
cruzados, enquanto civis, na sua maioria
mulheres e crianças, são mortos, mutila-
dos, bombardeados, forçados a abando-
nar suas casas e lhes é negado o acesso
ao apoio humanitário”. Diretor-geral da
Organização Mundial da Saúde, Tedros
Adhanom, define a situação como uma
“mistura letal de doença e fome”.
 
Um relatório de especialistas da ONU,
divulgado na terça-feira 16, detalha a cala-
idade de modo instrutivo e acusa Israel
de usar o bloqueio como arma de guerra.
Eis alguns trechos: “Atualmente, toda a
população passa fome e luta para encon-
trar comida e água potável (...) As mulheres
grávidas não recebem nutrição e cuidados
de saúde adequados, colocando suas vidas
em risco. Além disso, todas as crianças
com menos de 5 anos – 335 mil – correm
alto risco de desnutrição grave, à medida
que (...) as condições de fome continuam a
aumentar. Uma geração inteira corre o ris-
co, agora, de sofrer de nanismo. Isso pre-
judicará a capacidade de aprendizado”.
 
Os especialistas prosseguem:
“Nenhum lugar é seguro em
Gaza. Desde 9 de outubro,
Tel-Aviv declarou e impôs um
‘cerco total’, privando 2,3 mi-
lhões de palestinos de água, ali-
mentos, combustível, medicamentos e for-
necimentos médicos, isso no contexto de
um bloqueio israelense de 17 anos, que an-
tes da guerra fez com que metade da popu-
lação de Gaza sofresse de insegurança ali-
mentar e mais de 80% dependesse de aju-
da humanitária (...) É sem precedentes fa-
zer com que toda uma população civil pas-
se fome de forma tão completa e rápida”.
 
ISRAEL USA A FOME
COMO ARMA DE
GUERRA, ACUSAM
ESPECIALISTAS
EM DIREITOS
HUMANOS DA ONU

 
Diante da perspectiva de um conflito
regional de consequências incertas, as
conversas em torno do futuro do enclave
após o fim da incursão militar israelense,
quando e se vier, têm sido infrutíferas. Em
entrevista à CNBC, Antony Blinken, se-
cretário de Estado norte-americano, que
pela quarta vez desde o início do conflito
realizou um tour pelo Oriente Médio pa-
ra tentar evitar uma guerra generalizada,
afirmou que os países árabes se recusam a
assumir os custos da reconstrução de Ga-
za por uma razão simples: a possibilida-
de de Israel voltar a pôr abaixo o territó-
rio em pouco tempo. De forma mais dire-
ta, o xeque Mohammed bin Abdulrahman
al Thani, primeiro-ministro do Catar,
expressou o horror e a desconfiança do
mundo árabe ante a destruição: “Gaza
não está mais lá. Quer dizer, não há nada
lá. Há bombardeios em todos os lugares”.
O melhor para o governo de Netanyahu
e seus aliados de extrema-direita e o pior
para o resto do planeta é o conflito tomar
outra proporção, a ponto de tirar o foco
da responsabilidade israelense pelo mas-
sacre e transformar-se em palco de uma
disputa geopolítica de maior amplitude.
 
Os ataques a navios no Mar Vermelho pe-
los houthis têm sido usados como pretexto
à retórica beligerante de governos ociden-
tais claudicantes e desesperados. É o caso
do Reino Unido, onde a mal avaliada ad-
ministração do Partido Conservador, em
posição de aviso prévio até as eleições par-
lamentares do segundo semestre, busca
uma bandeira de campanha capaz de ge-
rar esperança de vitória. Parceiro dos Es-
tados Unidos nos bombardeios a instala-
ções dos rebeldes do Iêmen, Grant Shapps,
secretário de Defesa da Grã-Bretanha, dis-
cursou na segunda-feira 15 a uma plateia
de oficiais e lideranças políticas. Embora
os meios de comunicação estrangeiros te-
nham dedicado notas de rodapé ao evento,
as declarações de Shapps condensam o es-
pírito dos tempos atuais – não só em Lon-
dres. “Acabou-se a era dos dividendos da
paz”, afirmou o secretário, ao defender o
aumento urgente e substancial nos gastos
de defesa no Ocidente, em resposta à nova
“Guerra Fria”, e prometer um incremento
no orçamento militar da Inglaterra de 2%
para 2,5% do PIB. “Daqui a cinco anos, po-
deremos olhar para vários lugares, entre
eles a Rússia, a China, o Irã e a Coreia do
Norte. Pergunte-se: é mais provável que
esse número aumente ou diminua? Sus-
peito que todos sabemos a resposta. Pro-
vavelmente, crescerá. Portanto, 2024 deve
marcar um ponto de inflexão.”  
 
CARTA CAPITAL