por CARLOS DRUMMOND
Caso tenha esbarrado em al-
gum momento da vida em
uma obra de
Shakespeare,
o carioca Tarcísio de Frei
tas, governador de São
Paulo, talvez se reconhe-
ça em Hamlet. Ser ou não
ser, eis o dilema do nome
preferido da Faria Lima, do agronegócio
e de grande parte do empresariado para
encarnar o anti-Lula nas eleições presi
denciais do próximo ano. É difícil enten
der a profundidade do dilema do gover
nador, obrigado a equacionar, no seu es
pírito e nas andanças da vida, a quadratu
ra do círculo que os apoiadores lhe impu
seram: ser, ao mesmo tempo, bolsonaris
ta e moderado. Agregador e incendiário.
O conflito ficou evidente durante e de
pois do julgamento no Supremo Tribunal
Federal que transformou Jair Bolsonaro
e seus comparsas nos primeiros golpistas
condenados à prisão na história do País.
Em geral, Freitas mete os pés pelas mãos.
Enquanto a Primeira Turma da Corte de
finia o destino do ex-presidente, o gover
nador teve de pagar a fatura cobrada pe
lo clã e pelos mais fanáticos apoiadores
do capitão. Prometeu, se eleito, assinar o
indulto de Bolsonaro, subiu no palanque
montado na Avenida Paulista pelo pas
tor Silas Malafaia para insuflar a turba
contra o ministro Alexandre de
Moraes
– “ninguém aguenta mais a tirania” – e
viajou a Brasília para negociar a aprova-
ção de uma anistia “ampla, geral e irres
trita”. Diante da reação negativa na mídia
e em certos círculos do poder privado, ti
rou o time de campo e acoelhou-se no Pa
lácio dos Bandeirantes. A defesa da anistia
corre solta em Brasília, mas sem as suas
digitais. Manter os pés em duas canoas
não tem sido, no entanto, uma boa estra
tégia. Os moderados o consideram radi
cal e os radicais, a começar pelo deputado
autoexilado Eduardo Bolsonaro, o acham
moderado em excesso. Sem o aval da famí-
lia, o governador paulista pode esquecer o
sonho de ocupar o Palácio do Planalto. A
pressão é tamanha que o Arlequim, ser
vidor de dois patrões, também oscila em
suas intenções. Ora aparece como o can
didato ungido, ora jura que tentará a ree
leição, de sucesso praticamente garantido.
Freitas também terá de provar, para
além da simpática acolhida no noticiá-
rio, ser capaz de convencer o eleitorado de
suas virtudes administrativas e de sua ca
pacidade de levar o Brasil à prosperidade.
A promessa de realizar, também se eleito,
“40 anos em 4”, uma alusão ao slogan “50
anos em 5” de Juscelino Kubitschek, de
mandaria uma profunda mudança de es
tilo em relação ao que o governador tem a
apresentar após 33 meses à frente do es
tado mais rico e populoso do Brasil. En
quanto enfrenta problemas na seguran-
ça, privatiza empresas na bacia das almas,
amplia as isenções fiscais para empresas
e premia a grilagem de terras, Freitas es
peta a conta na corcunda dos mais pobres,
a começar pelo aumento de 50% no ICMS
dos combustíveis, com efeitos em casca
ta sobre o custo de vida da população. “O
Tarcísio não governa o estado de São Pau
lo, governa para atender aos interesses da
Faria Lima e do agronegócio, com amplia-
ção das isenções fiscais e privilégios pa
ra os bilionários. Essa é a característica
central do governo dele, como foi o go
verno Bolsonaro, em nível nacional. É o
neoliberalismo mais selvagem”, classifi
ca o deputado federal Guilherme Boulos,
do PSOL. “A pauta é a mesma: privatizar
o máximo de empresas e arrochar o salá-
rio do servidor público, com piora dos ser
viços para a sociedade. Esse é o modelo.
Ele não esconde os elogios ao presiden
te da Argentina, Javier Milei, e aos ban
queiros, com quem tem feito reuniões. A
lógica é idêntica àquela usada por Bolso
naro e Paulo Guedes”, afirma o deputado
estadual Antônio Donato, do PT.
O arremedo do slogan de JK foi rebati
do pelo ministro dos Transportes, Renan
Filho, com dados eloquentes de compa
ração entre a sua própria gestão na pasta
e a de Freitas, que ocupou o mesmo car
go no governo Bolsonaro. “O Tarcísio mi
nistro investiu 7,5 bilhões por ano em ro
dovias, e o governo Lula está investindo
15 bilhões por ano. Ele realizou seis lei
lões para atrair o investimento privado,
em quatro anos. Em dois anos e oito meses
do governo Lula, o Ministério dos Trans
portes realizou 16 leilões”, acrescentou o
atual ministro. “Para esconder compara-
ções como esta, Tarcísio usa uma adapta-
ção do slogan bem-sucedido de Juscelino
Kubitschek, de realizar 50 anos em 5. Para
se aproximar de Juscelino, Tarcísio, você
ainda terá de comer muito feijão com ar
roz”, ironizou Renan Filho.
E
mbora tenha dito em um even
to com banqueiros que o Brasil
“não aguenta mais corrupção”,
o governador vive às voltas com
problemas em sua sugestão. O
caso mais recente é o escân
dalo de propina que resultou na demis
são do auditor fiscal da Receita Estadual
Artur Gomes da Silva Neto, da Secretaria
da Fazenda, apontado como o cérebro de
um esquema que movimentou 1 bilhão
de reais em troca de pagamentos fraudu
lentos a grandes empresários por meio de
créditos tributários. O desfalque, que be
neficiou dezenas de empresas, entre elas
a Ultrafarma e a Fast Shop, foi facilitado
pelas possibilidades abertas pelo Decreto
67.853, assinado por Freitas no primeiro
ano de governo. A deliberação acabou re
vogada após o escândalo vir à tona. O se
cretário da Fazenda de São Paulo, Samuel
Kinoshita, foi assessor especial de Guedes
em Brasília. A respeito de quais controles
internos falharam e tornaram possível a
fraude, a assessoria da secretaria respon
deu a CartaCapital que “as irregularida
des apontadas remontam ao ano de 2021,
anterior à atual gestão, que já havia iden
tificado a opacidade dos processos… e im
plementado mudanças”.
“Se o Tarcísio diz que esse escândalo é
anterior ao governo dele e que já estavam
mapeando, porque ele só demitiu o Artur
quando o escândalo apareceu?”, pergun
ta Boulos. “Isso não faz o menor sentido.
Foi um escândalo continuado que, inclu
sive pelos valores, se ampliou durante o
governo Tarcísio. Até porque as isenções
e os privilégios aumentaram.”
Donato destaca o fato de as isenções fis
cais em São Paulo somarem 75 bilhões de
reais, podendo atingir 85 bilhões no pró-
ximo ano, de eleições, mais do que todos
os recursos destinados à saúde e educa-
ção. O governo, prossegue o deputado
comete ainda fraude na lei de responsa
bilidade fiscal, pois o estado tem déficit
no orçamento e “as contas só ficaram no
azul por conta da venda criminosa da Sa
besp, que gerou 15 bilhões de reais de re
ceita para o Tesouro. Sem isso, as contas
teriam fechado no vermelho, como foram
em 2023, segundo dados do Tribunal de
Contas”. Os dados sobre investimentos,
de acordo com Donato, não correspon
dem à realidade. O governador anunciou
a entrega de 200 moradias, mas 60% não
são casas, apenas créditos que bancam 6%
do valor para dar entrada em um imóvel
ou quitar prestações do Minha Casa, Mi
nha Vida. O governo diz que o número de
leitos no SUS sob a responsabilidade do
estado aumentou, mas a qualidade caiu.
A
defesa do tarifaço de Trump,
contra os interesses de em
presas paulistas, foi outro
efeito do contorcionismo a
que Freitas se submete, a fim
de agradar a dois públicos apa
rentemente distintos. “O governador de
São Paulo dizer que o Brasil tinha que
dar uma vitória para Donald Trump é
um caso que, em tempos normais, leva
ria a um processo de lesa-pátria. Ele de
fendeu abertamente que o País deveria
atender aos interesses, aos caprichos de
um líder estrangeiro que está atacando o
Brasil. Isso é traição pura e simples”, cutu
ca Boulos. “O Tarcísio tentou vender o fi
gurino de bolsonarista moderado. Esse
figurino não existe. Bolsonarismo mo
derado é como círculo quadrado. Não fe
cha. Quando veio a encruzilhada, ele ti
rou a máscara e mostrou que é um bolso
narista disposto a fazer tudo para garan
tir o seu projeto pessoal. Inclusive, traiu
o estado de São Paulo, o mais industriali
zado, que já sofre prejuízos com o tarifaço,
que só não são maiores por conta dos in
centivos oferecidos pelo governo federal.”
A reviravolta no apoio inicial do gover
nador de São Paulo ao tarifaço aplicado
pelo presidente dos Estados Unidos, com
grave prejuízo ao Brasil, inclusive à eco
nomia de São Paulo, seguido de recuo,
surpreendeu apenas quem não conhece
a coreografia da extrema-direita, avalia o
cientista político Claudio Couto. “O bolso
narismo é desse jeito, morde e assopra. O
próprio Bolsonaro sempre foi assim, pro
duzia um estardalhaço, criava uma situa-
ção e, quando a coisa ficava complicada,
ele recuava. Principalmente, para não
sofrer consequências judiciais.” Couto
acrescenta: “Acho que ele é um modera
do de araque. É tão extremista quanto os
outros e a própria trajetória, sua vincula-
ção com os militares, pode ser um dos fa
tores que explicam isso. Ele tem esse jeito
mais comedido de falar, mas daí a ser mo
derado vai uma distância muito grande”.
A política econômica de máximo bene
fício ao setor privado e extrema penúria
para as empresas e os serviços públicos en
tra em choque com a articulação vitorio
sa entre a iniciativa privada, responsável
pela estruturação da economia brasileira
e pelas suas maiores conquistas, aponta o
economista Murilo Tambasco, sócio-dire
tor da BPCT Consultoria. “O Brasil, a par
tir do período de 1930 a 1980, mais especi
ficamente a partir da década de 1950, com
o Plano de Metas, promoveu o desenvolvi
mento a partir de uma articulação do setor
privado com o Estado. Assim como ocor
reu com diversos outros países, como Ja
pão e Estados Unidos no século XIX.”
C
om o Plano de Metas implan
tado de 1956 a 1960, JK plane
jou completar o processo de
industrialização e o fez por
meio de um tripé formado por
governo, capital estrangeiro
e empresa nacional. “Ele faz a indústria
automobilística e a indústria de bens de
capital, mas tinha, ao mesmo tempo, um
plano de infraestrutura que era executa
do pela Eletrobras”, lembra Tambasco.
Essa estrutura, que possibilitou alavan
car e completar diversas dimensões do
processo de desenvolvimento, foi manti
da pela ditadura, que deu andamento ao
conceito a ponto de, na década de 1980, o
Brasil ser um país extremamente desta
cado, talvez com o parque industrial mais
diversificado e evoluído da periferia do ca
pitalismo, acrescenta Tambasco. A priva
tização, iniciada depois da crise da dívida
externa, no começo da década de 1990, de
sarticulou esse arranjo bem-sucedido. Já
os 40 anos em 4 de Freitas só têm uma
perna, o capital financeiro. Em recente
convescote com empresários, o governa
dor criou um conceito inovador no pensa
mento econômico. Segundo ele, só o setor
privado é capaz de reduzir as desigualda
des brasileiras. A tese é, porém, desmenti
da pelos próprios aliados. Em entrevista à
Folha de S.Paulo em dezembro passado, o
presidente da privatizada Sabesp, Carlos
Piani, foi claro: “Quem tem que fazer po
lítica pública é o Estado”.
A venda da companhia de saneamen
to, acrescenta Tambasco, resume essa ló-
gica. “Quem vai à sede da Sabesp e observa
como eles fazem a operação, parece outro
mundo, é tudo muito tecnológico. Gran
de parte desse discurso de que falta efici-
ência, de que é preciso modernizar, tirar
o Estado da jogada para que a economia
ganhe força, é falaciosa. Várias empresas
públicas têm capital aberto, padrões su
permodernos, eficientes, internacionais, e
que são capturadas pelo setor privado pre
cisamente porque seguem esses padrões”,
dispara o economista. “A Sabesp é uma su
perempresa. No ano passado, atendia a
58% dos municípios paulistas, tinha uma
cobertura de água e esgoto muito eleva
da, acima dos 90%, e, o que considero mui
to interessante e importante, um plano de
investimentos, que chegava na casa de 5
bilhões de reais ao ano. Também tinha
uma limitação, que estava de acordo com
a lei das estatais, de limitar o pagamento
de dividendos aos acionistas ao mínimo
legal de 25%. Com a privatização, há uma
nova política de dividendos. Um pagamen
to escalonado dos lucros aos acionistas,
fracionado, mas que até 2030 pode che
gar a 100%. A Sabesp foi capturada nessa
composição financista e nesse discurso.
Houve aumento dos salários dos dirigen
tes, como esperado, e reajuste tarifário.”
“Já estamos vendo algumas conse
quências, em relação ao atendimento e à
qualidade do serviço, da adoção, pelo go
verno Tarcísio de Freitas, da mesma li
nha de política econômica de privatiza-
ções implementada no País por Bolsonaro
e Guedes”, relata José Faggian, presidente
do Sintaema, sindicato que representa os
trabalhadores em água, esgoto e meio am
biente do estado. Os relatos que chegam
dão conta da exigência, em Monte Mor, de
pagamento em atraso apenas com parce
lamento no cartão de crédito, o que torna
a dívida gigantesca. Uma comunidade no
Guarujá está há mais de dez dias sem água
e há dificuldade para religamentos. “Vá-
rios Procons regionais têm ingressado na
Justiça contra a Sabesp por situações co
mo essa”, diz. Há problemas também em
relação ao atendimento e às tarifas sub
sidiadas, que vão subir por conta da no
va regra para os reajustes. Estima-se au
mento, em 2026, três vezes maior do que
o reajuste histórico. A provável nova cri
se hídrica neste ano, por conta da questão
climática, “será a grande prova de fogo”.
Para os trabalhadores, os prejuí
zos são imensos. A remuneração
dos funcionários, boa parte com
25 a 30 anos de empresa e gran
de conhecimento do setor de sa
neamento, é superior àquela mé-
dia do mercado, mas isso nunca impediu a
empresa de ser lucrativa e eficiente. “Esses
trabalhadores hoje estão sendo vistos pe
la administração privada como personas
non gratas na empresa. No primeiro
plano de demissão voluntária, saíram
2.040 e, no segundo, 150. Agora prepa
ram o terceiro e último PDV”, diz o sindi
calista. As pressões e as demissões não se
restringem à Sabesp e se assemelham ao
que ocorre nos EUA de Trump. Segundo
os jornais, na terça-feira 16, o economis
ta Ivan Paixão, após gritar “sem anis
tia” diante do governador, em um bar,
foi demitido por ordem direta de Freitas.
A crise aprofunda-se também na edu
cação, aponta o economista Thomaz Fer
reira Jansen, do Dieese, que atua no sin
dicato dos professores. Com a adoção sis
temática da contratação de temporários,
cerca de metade dos docentes da rede es
tadual de ensino está nessa situação. A re
lação de aprendizagem hoje é mediada por
plataformas, implantadas pelo secretário
da Educação, Renato Feder. O professor
recebe arquivos de aula em PowerPoint
e projeta o conteúdo em sala. As tarefas
e a chamada dos alunos são monitoradas
por plataformas, usadas para controlar o
processo de aprendizagem e, principal
mente, os professores e os indicadores de
desempenho, com rankings dos docentes
que condicionam a trajetória e as possibi
lidades de ascensão na carreira. “Essa é
a grande novidade que o governo coloca
em relação às escolas”, sintetiza Jansen.
Reflexo da privatização parcial da educa-
ção, por meio da chamada plataformiza-
ção do ensino, a nota dos alunos no Ideb, o
exame nacional, caiu abaixo dos números
da pandemia. Enquanto isso, o governa
dor aprovou a flexibilização do gasto com
educação, de 30% da receita para o míni
mo legal de 25%, o que implicou a perda de
10 bilhões de reais no orçamento setorial.
Igualmente no setor de transporte fer
roviário, a experiência mostra que o dis
curso de eficiência não corresponde à prá-
tica, relata Lourival Pereira dos Santos
Júnior, secretário do Sindicato dos Tra
balhadores em Empresas Ferroviárias da
Zona Central do Brasil. “As linhas 8 e 9,
que eram as melhores da CPTM, depois
da privatização são campeãs de reclama-
ção e têm causado um caos para o povo de
São Paulo, resultado do descaso e da falta
de comprometimento da concessionária
que apenas visa o lucro”, aponta o sindi
calista. “A privatização não é apenas uma
questão de gestão, é um retrocesso social
que compromete tanto o direito da popu
lação a um transporte público de qualida
de quanto a dignidade dos trabalhadores
que constroem esse serviço diariamente.”
O governador não atendeu aos pedidos
de entrevista ou de esclarecimentos,
CARTA CAPITAL
CARTA CAPITAL
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