"Zera. Apaga todo o teu celular agora! Todas as mensagens que
tu tem que não sejam importantes, tu apaga, beleza? Vou apagar as
minhas também. Porra, o Alexandre de Moraes agora soltou uma ordem...
Ele vai começar uma devassa no celular de todo mundo."
A mensagem
acima era inédita até agora. Ela foi enviada ao tenente-coronel Mauro
Cid em 3 de janeiro de 2023 pelo coronel do Exército Bernardo Romão
Corrêa Netto, um dos denunciados pela PGR (Procuradoria-Geral da
República) ao STF, na acusação sobre tentativa de golpe de Estado.
A
série de reportagens que o UOL começa a publicar hoje se baseia em mais
de 20 mil arquivos extraídos do telefone celular do tenente-coronel
Mauro Cid, apreendido pela Polícia Federal em 3 de maio de 2023 —o que
culminou na denúncia da PGR.
Com 77 gigabytes, o material analisado pela reportagem inclui 158 mil mensagens de WhatsApp, tanto de texto como de áudio.
Apenas
uma pequena parte dessas informações foi usada pela PF e tornada
pública, nas conclusões das investigações das vacinas, joias e do golpe.
O restante ainda está sob sigilo e permanecia inédito até hoje.
'Não combinamos de apagar?'
O material apreendido mostra pedidos frequentes para que mensagens fossem apagadas.
O
próprio coronel Corrêa Netto, acusado de pressionar o Alto Comando do
Exército a ir em frente com o golpe, já havia falado sobre a importância
de deletar as conversas em 29/11/2022, horas depois de enviar a Cid um
documento com o texto de uma "carta" pressionando o comandante do
Exército.
O UOL entrou em contato com a defesa de Corrêa Netto, que informou que só se manifestaria nos autos.
Cid
também apagou mensagens, por exemplo, na conversa com o tenente-coronel
do Exército Sérgio Ricardo Cavaliere de Medeiros ("Cavalo", nas
mensagens), em que lamentavam o fato de o decreto do Estado de Defesa
não ter prosperado.
As mensagens abaixo foram enviadas pelo
ajudante de ordens logo depois de Cavaliere compartilhar uma troca de
WhatsApp, em que dizia que o almirante Garnier, da Marinha, "tinha
tanques prontos".
Trinta minutos depois, Cid diria, sem apagar, que em "64 não precisou de ninguém assinar nada".
De
2 de outubro de 2022, dia da eleição presidencial, até maio de 2023,
quando Cid foi preso, o UOL identificou 217 mensagens recebidas pelo
tenente-coronel que foram depois deletadas.
Outras 127 mensagens foram enviadas por Cid e depois apagadas.
A
conta acima exclui conversas com familiares. É possível que existam
outras trocas de mensagens apagadas que não se mantiveram no registro do
celular.
Os interlocutores mais frequentes nesse grupo foram
Fabio Wajngarten, ex-chefe da Secom (Secretaria de Comunicação), com 31
mensagens apagadas, e o próprio ex-presidente Bolsonaro, com 19
conteúdos deletados.
As conversas no Signal
Em 13 mensagens,
os interlocutores ou o próprio Cid indicam que a conversa deveria
prosseguir pelo Signal, aplicativo de mensagens tido como mais seguro
que o WhatsApp.
A Polícia Federal não conseguiu extrair o conteúdo das conversas mantidas por Cid no Signal.
O
aplicativo ficou conhecido no caso recente em que assessores do governo
Donald Trump incluíram um jornalista por engano num grupo criado dentro
da plataforma, onde repassavam informações confidenciais.
Entre
os interlocutores que pediram para conversar no Signal estava Corrêa
Netto, o suplente de senador Aparecido Portela e o general Braga Netto,
ex-ministro da Casa Civil:
Procurada,
a defesa de Braga Netto não respondeu sobre a mensagem citada na
reportagem. Ao STF, a defesa negou o envolvimento do general nas
articulações golpistas.
Descobertas se concentram nos meses que antecedem a prisão
Preocupado
com o avanço das investigações da Polícia Federal, Cid costumava dizer
às pessoas próximas que era alvo de perseguição política pela PF e pelo
ministro Alexandre de Moraes.
Seu maior receio naquele período
era que, diante dessas notícias negativas, o Exército desistisse de
nomeá-lo para chefiar o 1º Batalhão de Ações e Comandos, em Goiânia.
Por isso, o tenente-coronel passou a buscar apoio para o cargo, que estava prometido desde o fim do governo Bolsonaro.
Cid
já tinha acertado caminhão de mudança e até matriculado as filhas em
uma escola em Goiânia, mas viu seus planos afundarem no governo Lula. A
nomeação acabou sendo revogada pelo comandante do Exército, Tomás Paiva.
Em
23 de janeiro de 2023, ele mandou uma mensagem ao secretário-geral do
Exército, perguntando se deveria suspender a mudança para Goiânia. Cid,
então, foi convocado para conversar pessoalmente sobre o assunto.
Depois,
ele diz a interlocutores que foi convencido a aceitar o adiamento da
sua nomeação. A promessa era que ele seria nomeado no ano seguinte,
depois que as investigações se encerrassem. Cid desabafa que era um
sonho de infância.
Lealdade ao ex-presidente
Nas conversas, Mauro Cid se mantinha leal a Jair Bolsonaro, mesmo quando diversos crimes passaram a ser jogados em sua conta.
Cid
nunca fazia críticas ao ex-presidente em conversas com interlocutores
—até mesmo em assuntos considerados desastrosos pelos seus aliados, como
a demora na compra da vacina contra a covid-19.
Quando, por
exemplo, o influenciador Paulo Figueiredo chamou Bolsonaro de "bom e
fraco", em uma conversa com Cid, o tenente-coronel atribuiu as falhas à
suposta "falta de experiência" de Bolsonaro.
Apesar dessas demonstrações de lealdade, Cid virou a chave após ter sido preso pela PF, em 3 de maio de 2023.
Sentindo-se
abandonado por Bolsonaro, que dizia que Cid havia agido por conta
própria em casos como a venda de joias no exterior, o ex-ajudante de
ordens decidiu fazer um acordo de delação premiada.
Com o acordo, também blindava seus familiares das investigações em curso.
Cid deixou a prisão em 9 de setembro de 2023, depois de ter a delação homologada pelo ministro Alexandre de Moraes.
Os
bastidores de como um militar leal resolveu fazer uma delação premiada
contra seu ex-chefe foram contados em detalhes no podcast "Cid: A Sombra
de Bolsonaro", do UOL Prime, disponível no site do UOL, no YouTube e
nas principais plataformas de podcast.
Ele segue cumprindo
medidas cautelares, como o uso de tornozeleira eletrônica e o
recolhimento domiciliar noturno, à espera do julgamento do processo do
golpe no STF.
A defesa de Mauro Cid afirmou que não vai se
manifestar sobre os diálogos porque não teve acesso ao conteúdo integral
do seu aparelho celular.
UOL
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