September 15, 2024

O rei da baixaria

 

 

 Pablo Marçal conseguiu parasitar o debate eleitoral,
preso a um anacrônico modelo que não esclarece mais ninguém

 
P O R  M A R I A N A  S E R A F I N I

Eu gosto de baixaria, eu gosto
do que vocês estão fazendo
aqui, vocês estão mexendo
com a pessoa errada”, adver-
tiu Pablo Marçal, candidato
a prefeito de São Paulo pelo PRTB, duran-
te o debate promovido pela TV Gazeta e
pelo canal MyNews no domingo 1º. Quan-
do algum de seus adversários fugia do
script e insistia em discutir algum tema
relevante para o futuro da cidade mais ri-
ca e populosa do País, lá estava o ex-coa-
ch para esclarecer a que veio: “Isso aqu]

não é um jogo para ver quem tem melhor
proposta. É para ver quem aguenta mais
essa encheção de saco”.

 
O teatrinho de Marçal dá resultado. O
influenciador não perde tempo discutindo
propostas, até porque não teria o que apre-
sentar. Quando arriscou propor a criação
de uma rede de teleféricos para conectar
favelas e estimular o turismo local, virou
alvo de chacota nas redes sociais. Ciente
de que não tem como vencer no debate de
ideias, usa todo o tempo disponível pa-
ra provocar os adversários com insultos,
calúnias e difamações, tudo milimetri-
camente encenado para caber em vídeos
curtos, editados para viralizar na internet.
Não precisa sequer mobilizar sua equipe
para fazer o trabalho braçal. Em vez dis-
so, promove gincanas, com ofertas de prê-
mios em dinheiro aos produtores de con-
teúdo que fazem os melhores cortes, aque-
les com maior número de visualizações no
pantanoso mundo digital.

 
Semanas antes, durante um debate
promovido por Estadão, Terra e Faap,
Marçal conseguiu desestabilizar o pso-
lista Guilherme Boulos com a leviana in-
sinuação de que ele seria usuário de dro-
gas – chamou o adversário de “aspirador
de pó” e ainda levou o dedo à narina, simu-
lando o consumo de cocaína – e ao cha-

 má-lo repetidas vezes de “vagabundo”,
enquanto erguia ao alto uma carteira de
trabalho. Agora, no estúdio da Gazeta,
conseguiu a proeza de fazer o tucano Jo-
sé Luis Datena, experiente apresentador
de tevê, abandonar seu púlpito para tirar
satisfações com o arruaceiro. “Ninguém
tem sangue de barata”, protestou Datena.
“Quem aguenta ser xingado a todo inter-
valo? Ou mesmo quando outro candida-
to está falando, o cara fazendo mímica do
seu lado para tirar a sua atenção.”

 
O festival de baixarias é recompensa-
dor. Após as molecagens de Marçal, o de-
bate previsto para a semana seguinte, na
Jovem Pan, foi cancelado por desistência
dos participantes. Algo que tende a favo-
recer o ex-coach, no momento em que ele
avança das pesquisas. De acordo com o
instituto Real Time Big Data, Marçal ago-
ra lidera a corrida pela prefeitura paulis-
tana com 21% das intenções de voto. Bou-
los, do PSOL, e prefeito Ricardo Nunes, do
MDB, figuram com 20%. Considerando a
margem de erro da sondagem, divulgada
na terça-feira 3, os três estão empatados.

 
Apesar de incorporar novos elemen-
tos, como os cortes de vídeo para virali-
zar nas redes, a estratégia de Marçal não
é nova, há tempos vem sendo ensinada
por gurus da extrema-direita, observa a
cientista política Vera Chaia, professora
da PUC de São Paulo. “Basta lembrarmos
que um dos princípios do Olavo de Carva-
lho era justamente não respeitar os ad-
versários, não admitir regras. É isso que
o Marçal está fazendo”, diz. Um antigo ví-
deo do ideólogo bolsonarista, que voltou a
circular na internet há poucos dias, expõe
com clareza a tática: “Se você faz questão
de apresentar a sua tese exclusivamente
dentro das vias normais e admitidas, você
está provando lealdade ao sistema, e não
a veracidade da sua tese”.

 
Ao inviabilizar os debates, Marçal cor-
rói a própria democracia, avalia o sociólo-

go e jornalista Laurindo Leal Filho, pro-
fessor aposentado da Escola de Comuni-
cações e Artes da USP. “Não se trata de
um programa como outro qualquer, ele
faz parte do processo de esclarecimento
da população, precisa ser regulamenta-
do de forma mais refinada.” O especialis-
ta defende uma “reformulação total” do
modelo usado no Brasil, “com regras rí-
gidas, como a Justiça Eleitoral estabelece
ao horário de propaganda gratuita”. Nos
EUA, observa, os debates são realizados
apenas por emissoras públicas, de forma
a evitar a briga de audiência.

 
Até mesmo a linguagem corporal nos
debates precisa ser objeto de algum tipo
de regulação, avalia Leal. “O comporta-
mento do Marçal ultrapassa o que se es-
pera do convívio democrático. É preciso
ter padrões. Não se pode permitir algo
anárquico, ainda mais na tevê aberta.” As
emissoras operam sob concessões públi-
cas, mas parecem estar mais preocupa-
das em atrair público com esse show de
horrores, critica o especialista. O espe-
táculo protagonizado por Marçal no do-
mingo 1º rendeu à TV Gazeta a maior au-
diência para o horário desde 2018, com
2,5 pontos aferidos pela Kantar. No dia
seguinte, em entrevista ao programa
Roda Viva, da TV Cultura, o candidato
bateu recorde de audiência no canal da
emissora no Youtube, com pico de 2 mi-
lhões de espectadores simultâneos.

 
Uma das autoras da pesquisa “Bolso-
narismo sem Bolsonaro”, publicada em
junho pela Fundação Friedrich Ebert,
a cientista política Thaís Pavez identifi-
ca Marçal como um expoente desse mo-
vimento, mas com elementos próprios.
“A novidade é que ele é um nativo digital,
um influencer, o que reforça o fato de vir de
fora do sistema político e, portanto, poder
fazer e dizer coisas de um modo diferente.”

 
Em toda a América Latina, esses influen-
ciadores estão assumindo protagonismo
no debate público e, de certa forma, par-
ticipam da formação política dos jovens,
mesmo que tenham feito fama falando de
outros temas, como moda, cultura ou em-
preendedorismo. Na Argentina, para citar
um exemplo, a cosplayer Lilia Lemoine
conquistou uma cadeira na Câmara dos
Deputados na aba do ultradireitista Javier
Milei, de quem foi conselheira de imagem.
Marçal faz parte, portanto, de um fenôme-
no mais amplo, que ganhou força sobretu-
do durante a pandemia, quando as redes
sociais eram, para muitos jovens, a única
forma de sociabilização, observa Pavez.

 
“Repare: ele trabalha com as angústias
das pessoas endividadas, com desse dis-
curso de ‘coach da prosperidade’. Da mes-
ma forma, apresenta um futuro sem em-
prego, onde todos estão ameaçados pela
tecnologia. Consegue lidar com os espec-
tros que assombram o século 21. Por isso,
tem tanto apelo.”

 
Já a coordenadora do Observatório
da Extrema Direita, Isabela Kalil, aler-
ta que, quando a normalidade é alterada
e a sociedade passa a aceitar o que até en-
tão não era aceito, não há retorno. “Antes
do Marçal, vimos o Bolsonaro agir como
bem entendia, e nada aconteceu. Não tem
como voltar ao cenário anterior, porque
a sociedade passou a ter novos parâme-
tros de normalidade, por mais absurdas
e desrespeitosas que possam parecer.”
O maior risco, acrescenta Leal, é que
ninguém sabe exatamente quais são os
planos de Marçal. “Nós sabíamos onde o
gabinete do ódio de Bolsonaro pretendia
chegar. O objetivo era alcançar o totali-
tarismo clássico, o golpe cívico-militar.”
Com suas eficazes gincanas na internet,
o coach ganha terreno, mas seu projeto de
poder segue desconhecido. “Ele está cor-
roendo a democracia sem apontar qual-
quer temor de que ela está sendo esgar-
çada. É muito mais grave, porque não sa-
bemos se tem volta.”

CARTA CAPITAL


 


 

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