PARA SE LIVRAR DA CHANTAGEM DOS “TUBARÕES DA
BÍBLIA”, LULA BUSCA ESTREITAR LAÇOS COM IGREJAS
MENORES, FORA DA ZONA DE INFLUÊNCIA BOLSONARISTA
MAURICIO THUSWOHL
Derivado do latim,
o termo prebenda
era de uso corren-
te em quase toda
a Europa nos pri-
mórdios da Ida-
de Média. Em seu
significado original, tinha caráter religio-
so e servia para designar a ajuda em di-
nheiro, vestimentas, moradia ou manti-
mentos que as comunidades cristãs da-
vam aos padres e sacerdotes para que es-
tes tivessem o conforto material neces-
sário para realizar missas e cultos e “se-
mear a palavra de Deus”. Isso, claro, antes
de a Igreja Católica tornar-se riquíssima e
hegemonizar politicamente o continente
europeu. Ainda no século XVI, com a Re-
forma Protestante de Martinho Lutero e
João Calvino, o termo ganhou ares pejo-
rativos, pois prebenda passou também a
designar os pecaminosos ganhos finan-
ceiros de alguns altos membros do clero
por seus “serviços prestados ao Vaticano”.
Muitos séculos depois, no Brasil de
2024, onde alguns setores da política e
da sociedade parecem ter queda por dis-
cussões medievais, a palavra prebenda,
desconhecida para a maioria da popu-
lação, ressurgiu. Ela está na raiz da mais
recente crise entre o governo Lula e lide-
ranças evangélicas, deflagrada depois que
a Receita Federal decidiu suspender um
ato publicado pelo governo Bolsonaro que
isentava de Imposto de Renda e contribui-
ções previdenciárias os repasses feitos pe-
las igrejas aos pastores.
Líderes da Frente Parlamentar Evan-
gélica, o deputado federal Silas Câmara,
do Republicanos, e o senador Carlos Via-
na, do Podemos, procuraram Fernando
Haddad para pedir que o governo recon-
siderasse a suspensão. O ministro da Fa-
zenda retrucou que a decisão foi técnica e
atendeu a uma recomendação do Minis-
tério Público junto ao Tribunal de Con-
tas da União. No encontro, que contou
ainda com a participação do deputado
Marcelo Crivella, do Republicanos, au-
tor de uma Proposta de Emenda Consti-
tucional que amplia a isenção de impos-
tos para igrejas, Haddad comprometeu-
-se a dar continuidade às discussões so-
bre o tema, com o auxílio do próprio TCU
e também da Advocacia-Geral da União.
“Não foi uma revogação nem uma con-
validação, foi uma suspensão. Vamos en-
tender o que a lei diz e vamos cumprir a
lei”, despistou o ministro.
Do ponto de vista político, a ideia do go-
verno é ouvir as queixas dos peixes graú-
dos da Bancada da Bíblia, mas também
as ideias e reivindicações surgidas nas
pequenas agremiações e meios evangéli-
cos progressistas. Num país como o Bra-
sil, onde uma elite de pastores ligados às
mais poderosas denominações desfila em
carros importados de 1 milhão de reais ou
exibe joias e roupas de grife enquanto ou-
tros milhares de pastores ralam nas pe-
quenas igrejas da periferia, o entrevero
possibilitou a volta da necessária discus-
são sobre o uso muitas vezes irregular do
recurso da prebenda. E pode também co-
locar água no moinho de uma nova estra-
tégia do governo em relação aos evangé-
licos, parcela da sociedade na qual Lula
e sua gestão ainda sofrem reprovação de
38%, segundo recente pesquisa Datafolha.
Essa estratégia passa por isolar os seto-
res evangélicos mais claramente alinha-
dos ao bolsonarismo e ao mesmo tempo
envolver os setores progressistas – ou
mesmo conservadores, porém dispostos
ao diálogo – nas ações sociais do governo.
Começou a ser desenhada ainda na cam-
panha eleitoral e na equipe de transição,
mas ganhou contornos mais nítidos no fim
de novembro, quando o Ministério do De-
senvolvimento Social anunciou parcerias
com 27 agremiações religiosas para atu-
ação em dois programas governamentais
de combate à desigualdade social: o Pacto
pela Redução da Pobreza e o Plano Brasil
Sem Fome. As igrejas deverão auxiliar o
MDS na identificação de pessoas em con-
dições de vulnerabilidade e posterior ins-
crição no Cadastro Único, condição pré-
via para a entrada em programas como o
Bolsa Família e o Minha Casa Minha Vida.
Ogoverno pretende estender
a parceria com os evangé-
licos nos próximos meses e
estabelecer convênios pa-
ra que entidades benefi-
centes ligadas às igrejas tenham ajuda fi-
nanceira para a construção de cozinhas
populares, bibliotecas comunitárias e cen-
tros de atendimento social, entre outras
iniciativas. Notadamente, as parcerias e
os convênios excluem a participação de
grandes denominações que deram apoio
entusiasmado ao governo Bolsonaro, co-
mo a Igreja Universal do Reino de Deus,
de Edir Macedo, a Assembleia de Deus
Vitória em Cristo, de Silas Malafaia, a
Sara Nossa Terra, de Robson Rodovalho,
e a Renascer, de Estevam e Sônia
Hernandes. “Não há ninguém relevan-
te. Só pessoas desconhecidas e peque-
nas igrejas que não representam nada”,
desdenha o deputado federal Sóstenes
Cavalcante, do PL, ligado a Malafaia.
“A orientação é trabalhar com quem
quer trabalhar”, diz o ministroWellington
Dias, acrescentando que as parcerias são
abertas a todas as igrejas, “independen-
temente de sua denominação ou linha
religiosa”. O MDS ressalta que correntes
evangélicas tradicionais como as igrejas
Batista e Presbiteriana aderiram à par-
ceria. “Há uma relação muito além da
disputa política e eleitoral, que é a luta pe-
la redução da fome e da pobreza”, justifi-
ca Dias. O próximo passo da aproximação
do governo com os evangélicos será um
evento nacional com a presença de
Lula e vários ministros, ainda sem data
marcada, mas que deve acontecer no
primeiro trimestre. Segundo o pastor
Cesário Silva, dirigente do Movimento
dos Evangélicos Progressistas, a ideia é
reunir lideranças de denominações evan-
gélicas de todas as estirpes: “O presiden-
te quer dialogar com todos, como fez nos
mandatos anteriores. Não vamos fazer só
com progressistas, será um evento geral”.
As críticas à condução do processo de
escolha das igrejas pelo governo, entre-
tanto, partem também de evangélicos
progressistas. “É necessário aproximar,
mas é também necessário entender
de quem a gente está se aproximando.
Não sabemos quais foram os critérios
adotados para se chegar aos escolhidos,
isso não foi construído com os grupos
evangélicos que estão ao lado do governo
desde o processo eleitoral”, observa Nilza
Valéria Zacarias, coordenadora da Fren-
te de Evangélicos pelo Estado de Direito.
Não é que o MDS não esteja procurando
os evangélicos que deveria, acrescenta
jornalista, “mas deveria buscar mais as
pessoas que se mostraram comprometi-
das com o projeto deste governo desde o
golpe contra Dilma e a prisão de Lula”. Va-
léria diz que “é preciso reconhecer os alia-
dos”, e lamenta o tiro no escuro: “Não sa-
bemos quais são os grupos escolhidos pelo
MDS e quem eles representam, nem tam-
pouco o trabalho que cada um vai fazer.
Não temos clareza sobre esse movimento
que o governo está fazendo”.
Quanto à estratégia de
aproximação do governo
em si, Valéria opina que “é
preciso tentar conciliar e
trazer todas as igrejas”.
Ela não chega a se inco-
modar, porém, com a exclusão das gran-
des agremiações evangélicas ideologi-
camente ligadas ao bolsonarismo. “Há
um grupo formado por denominações
que não é possível trazer, representa-
das por essas lideranças histriônicas já
muito manjadas e que se compromete-
ram completamente com o pior governo
da história do Brasil.” Se essas lideran-
ças não querem participar, o governo não
deve fazer muito esforço para trazê-las:
“Algumas deixaram muito claro quem
são na pandemia, quando não consegui-
ram nem sequer apoiar medidas para
manter membros de suas igrejas vivos”.
Valéria é favorável à suspensão da
isenção fiscal sobre as prebendas e afir-
ma que “pastor não tem de ter tratamen-
to fiscal diferente de nenhuma outra ca-
tegoria laboral”, mas avalia como “muito
ruim” o timing do governo para anunciar
a medida: “Houve falta de diálogo com
diversos setores para abordar a questão.
Aí, esses líderes histriônicos reagem pu-
blicamente e vai acabar parecendo que
todos os evangélicos estão chiando”. Os
Macedos e Malafaias do setor, enfatiza,
não representam a maior parte dos evan-
gélicos brasileiros “que estão dentro de
suas pequenas igrejas”. Para Valéria, “é
preciso fortalecer a comunicação d
Uma comunicação mais estruturada
com os ministérios e o próprio Palácio do
Planalto, avalia a coordenadora da Fren-
te, pode trazer os ajustes necessários à
questão das prebendas. “O radar das me-
didas anunciadas pelo governo não alcan-
ça a maior parte dos pastores brasileiros.
É preciso ter uma estrutura legalizada e a
maioria dos pastores não tem isso. Esta-
mos falando de algo que diz respeito so-
mente a um grupo muito pequeno. O go-
verno precisa ganhar o pastor que está na
base e recebe, na média, um ou dois salá-
rios mínimos da igreja, a partir da contri-
buição voluntária dos fiéis.”
Deputado federal pelo
PSOL, o pastor Henrique
Vieira afirma que a de-
cisão de Bolsonaro de
isentar de impostos os
repasses das igrejas aos pastores foi par-
te da retribuição pelo apoio político dado
pelas grandes conglomerações religiosas
ao seu governo. O parlamentar diz que a
medida se tornou um mecanismo para
que algumas denominações, ao caracte-
rizarem os pagamentos aos pastores co-
mo prebendas, e não como salários, “re-
lativizassem a cobrança de dívidas pre-
videnciárias milionárias”. Vieira ressal-
ta o desafio “ético, social e trabalhista”
embutido na discussão: “Embora exis-
ta uma elite pastoral milionária, que es-
banja prosperidade à custa de empreen-
dimentos baseados na fé, a imensa maio-
ria dos que trabalham em espaços reli-
giosos é pobre, periférica e preta”.
Mencionado pelo deputado, o abismo
de classes que separa os pastores brasi-
leiros pôde ser medido, por exemplo, com
a divulgação no X (antigo Twitter) do ví-
deo que mostra o pastor José Wellington
Bezerra da Costa, presidente de uma das
seções da Assembleia de Deus, ao volan-
te de uma Mercedes EQS avaliada em 1,3
milhão de reais. O registro viralizou na
internet após ter sido publicado no come-
ço do ano pela filha do pastor, a deputada
Marta Costa, do PSD. Em outro flagrante
de muito sucesso nas redes, o pastor An-
dré Valadão, líder da Igreja Batista da La-
goinha, foi clicado em uma loja de altíssi-
mo luxo da Louis Vuitton na cidade nor-
te-americana de Las Vegas, onde foi as-
sistir a um Grande Prêmio de Fórmula
1. Na foto, Valadão aparece trajado com
um casaco da Gucci avaliado em 15 mil
reais. “Dízimo bem empregado”, ironiza
um comentário à postagem.
No embalo da crítica à ostentação, o
perfil Outfit do Templo já conquistou mais
de 70 mil seguidores no Instagram. A pá-
gina revela, por exemplo, quanto custam
itens de vestuário usados pelos pastores
mais prósperos, como um relógio suíço
da marca Patek Philippe pertencente ao
líder da Igreja Universal, Edir Macedo, e
avaliado em 400 mil reais. Ou outro re-
lógio suíço, da marca Rolex, avaliado em
196 mil reais e exibido no pulso de André
Valadão. Já o pastor Valdemiro Santia-
go, líder da Igreja Mundial do Poder de
Deus, é mais modesto e costuma coman-
dar seus cultos com um relógio de 50 mil
reais, embora as dívidas acumuladas da
agremiação que fundou após rachar com
a Iurd se aproximem de 1 milhão de reais.
Tanta opulência talvez explique a cho-
radeira de alguns pastores com o fim da
isenção fiscal sobre as prebendas. Logo
após a assinatura do ato pelo secretário
da Receita Federal, Robinson Barreiri-
nhas, a Frente Parlamentar Evangélica
divulgou uma nota na qual afirma serem
“muito claros os ataques que continua-
mente vêm sendo feitos ao segmento cris-
tão através das instituições governamen-
tais” e que “atacar o segmento cristão co-
mo um todo não é uma atitude condizente
com um governo que prega a pacificação”.
Os auditores da Receita, no entanto, en-
tenderam que o recurso da prebenda era
utilizado por muitas igrejas “para distri-
buir valores de remuneração direta sem
o devido recolhimento de contribuição pre-
videnciária”. Uma fonte do Ministério da
Fazenda confirma que Haddad “não abre
mão de disciplinar a questão”.
Segundo o TCU, desde que Bolsonaro
decidiu isentar as prebendas, em agosto
de 2022, às vésperas do início da campa-
nha eleitoral, o mimo às igrejas fez com
que a União deixasse de arrecadar 300
milhões de reais até o fim do ano passa-
do. O benefício foi o último concedido
pelo ex-presidente ao setor, após medi-
das que ao longo do seu governo garan-
tiram isenção de ICMS por 15 anos pa-
ra as igrejas na aquisição de produtos e
pagamento de serviços como contas de
luz e gás ou que perdoaram uma dívida
de 1,4 bilhão de reais referente à Con-
tribuição Social sobre o Lucro Líquido
(CSLL), imposto da União que era cobra-
do das agremiações religiosas. O início
da série de benefícios fiscais às igrejas re-
monta à Constituição de 1988 e atraves-
sou diversos governos (ver infográfico à
pág. 13). No ano passado, no bojo da re-
forma tributária, o governo Lula expan-
diu a isenção para as associações e en-
tidades filantrópicas ligadas às igrejas.
Mas as benesses parecem nunca ser
suficientes. “Se o governo discute a tribu-
tação das prebendas pastorais, algumas
agremiações se posicionam como se fosse
uma perseguição religiosa, optando pe-
la narrativa mais extrema, desproporcio-
nal, intimidadora e sensacionalista pos-
sível”, observa o pastor Henrique Vieira.
Diante desse cenário, e apesar dos “pe-
quenos avanços com o setor mais razoá-
vel e republicano” dos evangélicos, emen-
da o deputado, o governo recua em diver-
sos pontos para não melindrar os setores
bolsonaristas. “Muitas vezes o governo
age de maneiras que, em tese, beneficia-
riam esse campo e seus interesses de gru-
po. Mas nem isso é suficiente para que al-
guns pastores baixem a guarda da guer-
ra cultural e mudem a postura em rela-
ção aos diálogos democráticos.”
A próxima rodada do embate entre o
governo e a Frente Parlamentar Evan-
gélica deverá acontecer na primeira se-
mana de fevereiro. Caberá ao ministro
da AGU, Jorge Messias, que é evangéli-
co da Igreja Batista e tem bom trânsi-
to no setor, discutir as propostas fiscais
do grupo e tentar estabelecer pontos de
convergência com a Bancada da Bíblia,
majoritariamente bolsonarista. Para se
ter uma ideia, o governo passado contou,
em média, com 80% dos votos dos depu-
tados da bancada em matérias de seu in-
teresse. No governo Lula, essa adesão é
de apenas 14,8%.
“Tenho testemunhado as incontá-
veis tentativas do governo e mesmo de
parlamentares do campo democrático e
progressista de estabelecerem diálogos
produtivos com a representação evan-
gélica no Congresso. São inúmeras as
tentativas de buscar aproximações e con-
sensos que sejam frutíferos para o Bra-
sil”, diz Vieira. “No entanto, em uma ne-
gociação política, você precisa conside-
rar a disposição e a abertura de ambas as
partes envolvidas. Infelizmente, em mui-
tos momentos, a representação evangé-
lica se apresenta de forma reacionária,
melindrosa e ressentida .
CARTA CAPITAL
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