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Como me fantasiei de gado e fui à
Paulista acompanhar o discurso do capitão
P O R R O N A L D O L AG ES
Recebi a convocação pelo
Facebook: “Quem defende
a democracia não foge à lu-
ta”. Naquele grupo, alguns
nutriam grandes expecta-
tivas em relação aos rumos do movimen-
to: “O agro e os caminhoneiros vão parar
o Brasil”. Outros não disfarçavam o can-
saço com as infrutíferas mobilizações
anteriores, a exemplo dos patriotas goia-
nos que pediam doações via Pix para fi-
nanciar a viagem até São Paulo. “Cara-
vana pela última vez”, anunciaram, em
tom de súplica. Diante do esforço dos
meus colegas na rede social, senti vergo-
nha por ter cogitado usar o domingo pa-
ra descansar, ainda mais vivendo tão per-
to do palco da batalha. Resgatei do fun-
do da gaveta uma desbotada camiseta
amarela, envolvi o pescoço com uma flâ-
mula verde-amarela e parti feito um fo-
guete em direção à Avenida Paulista.
Bem... Era isso o que pretendia, mas
o transporte coletivo não colaborou.
Em São Paulo, aos domingos, não se pa-
ga mais a tarifa do ônibus, até porque se
tornou quase impossível encontrar um
circulando após o anúncio da gratuida-
de. Como de hábito, sobravam passagei-
ros desamparados no terminal da Lapa.
Meio sem jeito, um fiscal da SPTrans
culpou o congestionamento causado
pelo levante democrático. Contraria-
do, comprei o bilhete de trem. Não po-
deria decepcionar meus colegas goianos,
que também poderiam estar presos no
trânsito após uma desgastante viagem
de quase mil quilômetros. Durante a bal-
deação na estação Barra Funda, perce-
bi que a mobilização foi bem-sucedida.
Os vagões do Metrô estavam repletos de
patriotas, devidamente uniformizados
com a camisa da CBF.
Exasperada, uma moça manifestava
preocupação com a “presença de infil-
trados” no ato, a exemplo do que acre-
ditava ter ocorrido em Brasília em 8 de
janeiro de 2023, quando “baderneiros
do MST” teriam invadido as sedes dos
Três Poderes, enquanto
ocupavam pacificamente os improduti-
vos gramados da Esplanada dos Minis-
térios. Ao meu lado, um simpático casal,
Débora e Marcos, dizia se insurgir con-
tra um tenebroso vilão apelidado de “Ca-
beça de Roll-On”. Esse “déspota”, segun-
do me contaram, estaria “mancomuna-
do com George Soros” para prender Jair
Bolsonaro. Não tive tempo de perguntar
a motivação dessa sórdida conspiração
internacional. Por qual razão o megain-
vestidor húngaro estaria interessado na
captura do ex-presidente, que teve de en-
tregar o passaporte à Polícia Federal no
início do mês? Estava com a pergunta na
ponta da língua, mas as portas se abri-
ram e fomos arrastados pela multidão
para fora do vagão.
Do lado de fora da estação, um ruido-
so grupo não parava de repetir, aos ber-
ros: “Eu vim de graça, eu vim de graça”.
Era uma provocação aos militantes de
esquerda, que, segundo eles, só compa-
reciam a manifestações mediante paga-
mento de “pão com mortadela”. Imaginei
que o comentário poderia soar indelica-
do para os patriotas goianos. A vaquinha
cobriria apenas as despesas do transpor-
te ou também o lanchinho no trajeto?
Inútil especular, até porque o pessoal já
havia mudado o foco da cantoria: “Nos-
sa bandeira jamais será vermelha, nossa
bandeira jamais será vermelha!”
O incômodo com a cor parecia uma
verdadeira obsessão. Pobre do vende-
dor ambulante de camiseta escarlate,
que não se atentou ao dress code da ma-
nifestação e acabou virando alvo de re-
correntes piadas e provocações. Naque-
la massa verde-amarela, somente outras
duas cores eram bem-vindas: o azul e
branco da bandeira de Israel, efusiva-
mente aplaudida e reverenciada. Car-
tazes com a estrela de Davi quase sem-
pre apareciam com mensagens em in-
glês: “Freedom”, “Sorry”... O pedido de
desculpas era pelas declarações do pre-
sidente Lula, que nos últimos tempos
intensificou as críticas ao morticínio
de palestinos na Faixa de Gaza. “Legíti-
ma defesa a ataques terroristas”, diziam
alguns. Outros apelavam para uma con-
fusa associação religiosa, a exemplo da
senhora que viralizou nas redes sociais
por defender com entusiasmo o Estado
judeu: “Somos cristãs como Israel”. Do
alto do carro de som, a ex-primeira-da-
ma Michelle Bolsonaro contribuiu para
reforçar o sincretismo religioso: “Aben-
çoamos Israel em nome de Jesus”.
Muitos patriotas fizeram questão de
posar para fotografias na frente de um
mural com as fotografias de Bolsona-
ro e do premier israelense, Benjamin
Netanyahu. Levou algum tempo para a
turma perceber que se tratava de uma
pegadinha de infiltrados. Entre os dois
retratos, havia uma inscrição em hebrai-
co: (“genocida”, segundo escla-
receu o Google Tradutor). Além das co-
res, os manifestantes pareciam obceca-
dos em tirar selfies. Na pós-modernida-
de, explica o sociólogo Gabriel Rossi, es-
pecialista em Marketing Político pela
ESPM, as manifestações têm forte cará-
ter estético. “Isso tem a ver com o ‘mun-
do instagramável’. As pessoas vivem uma
experiência e correm para postar nas re-
des e mostrar aos amigos. Dessa forma,
elas se posicionam e, ao mesmo tempo,
buscam a aceitação do grupo.”
Havia ainda um sincretismo de cos-
tumes. Enquanto a ex-primeira-dama
recitava versos bíblicos e o pastor Silas
Malafaia apontava Jair Bolsonaro co-
mo vítima de uma “engenharia do mal,
ao arrepio da lei e da Constituição”, boa
parte do público acompanhava o discur-
so bebericando cerveja, até porque to-
dos são filhos de Deus e o calor estava
mesmo infernal. Governadores e par-
lamentares foram bem mais comedi-
dos que Malafaia nos discursos, evitan-
do qualquer declaração que pudesse ser
interpretada como ataque ao Judiciário
ou às instituições democráticas. De olho
no eleitorado bolsonarista e, ao mesmo
tempo, preocupado com a elevada rejei-
ção ao ex-presidente na capital paulista,
o prefeito Ricardo Nunes marcou pre-
sença no ato, mas manteve a discrição.
Entrou mudo e saiu calado.
O tom ameno dos discursos causou es-
tranhamento na militância bolsonaris-
ta, que em outros tempos se plantou na
porta de quartéis para pedir intervenção
militar no País. “Estou achando a mani-
festação muito passiva”, comentou Érica
Rane, que veio de Vila Brasilândia, na Zo-
na Norte de São Paulo, para renovar seu
apoio ao capitão. A maior parte do público
entendeu, porém, que não era o mo-
mento de esticar a corda. Onipresentes
em outros momentos, os cartazes com
ataques a Alexandre de Moraes, minis-
tro do Supremo Tribunal Federal, e à “di-
tadura do Judiciário”, desapareceram.
Por volta das 3 da tarde, quando Bolso
naro finalmente pegou o microfone para
fazer seu discurso, a multidão foi à loucu-
ra. “Mito, mito, mito”, urrava, em compe-
tição com os estrondos de fogos de arti-
fício. Ao meu lado, duas senhoras com a
camiseta do “PL Mulher”, a divisão femi-
nina do partido do ex-presidente, tenta-
ram emplacar outro slogan a plenos pul-
mões: “Imbrochável! Imbrochável! Im
brochável!” Naquele momento, havia 750
mil manifestantes na Avenida Paulista e
ruas adjacentes, segundo as confiabilís-
simas estimativas da Polícia Militar de
São Paulo, estado governado pelo bolso-
narista Tarcísio de Freitas, do Republi-
canos. Já pesquisadores da USP analisa-
ram imagens aéreas e apontaram a pre-
sença de 185 mil patriotas. Pouco impor-
ta quem chegou mais próximo da realida-
de. O ex-capitão provou ainda ter capaci-
dade de levar multidões às ruas.
Bolsonaro estava, porém, irreconhe-
cível no carro de som. Orientado por ad-
vogados e conselheiros a evitar ataques
ao Judiciário ou qualquer declaração que
pudesse inflamar a turba, o ex-capitão
fez um balbuciante discurso de rendição.
“O que eu busco é a pacificação, é pas-
sar uma borracha no passado. É buscar
uma maneira de nós vivermos em paz. É
não continuarmos sobressaltados”, dis-
se. “Nós já anistiamos no passado quem
fez barbaridades no Brasil. Agora nós pe-
dimos a todos os 513 deputados, 81 sena-
dores, um projeto de anistia para que se-
ja feita justiça em nosso Brasil.”
A anistia seria para “aqueles pobres-
-coitados que estão presos em Brasília”,
mas indiretamente o beneficiaria, uma
vez que a PF investiga o envolvimen-
to de Bolsonaro na coordenação da fra-
cassada tentativa de golpe no 8 de Janei-
ro – e também um pouco antes, quando
o ex-capitão discutiu com auxiliares os
termos de uma minuta de decreto, para
anular o resultado das eleições de 2022
e prender Alexandre de Moraes. E foi ao
comentar esse episódio específico que o
ex-presidente enfiou os pés pelas mãos.
“Agora, o golpe é porque tem uma mi-
nuta de um decreto de Estado de Defe-
sa. Golpe usando a Constituição? Te-
nham a santa paciência. Golpe usando
a Constituição”, disse Bolsonaro no car-
ro de som, antes de prosseguir: “Deixo
claro que estado de sítio começa com o
presidente da República convocando os
conselhos da República e da Defesa. Is-
so foi feito? Não. Apesar de não ser gol-
pe o estado de sítio, não foi convocado
ninguém dos conselhos da República e
da Defesa para se tramar ou para se bo-
tar no papel a proposta do decreto do es-
tado de sítio”. Para investigadores da PF,
esta seria a prova de que ele teria aces-
so e conhecimento sobre o conteúdo do
documento apreendido na casa do ex-
-ministro Anderson Torres.
Um senhor demonstrava preocupa-
ção com o futuro do ex-presidente, mas
confidenciou que ele próprio estava en-
rascado por marcar presença no ato. Por
Bolsonaro, cortou relações com os netos
e um filho que mora na Austrália, todos
esquerdistas, por quatro anos. Ao rea-
tar laços, percebeu que o distanciamen-
to provocou mágoas indeléveis. “Meus
filhos e netos têm de me respeitar.” Ou-
tro, mais agitado, aguardava com an-
siedade a subida ao trio elétrico do re-
cém-eleito presidente argentino Javier
Milei, que, segundo informações que re-
cebeu pelo WhatsApp, viera ao Brasil pa-
ra apoiar Bolsonaro. “Milei tá levantan-
do a Argentina”, asseverou, minimizan-
do indicadores econômicos ainda des-
favoráveis ao novo mandatário. A infla-
ção, que já era altíssima antes de assumir
o posto, aumentou de 190% ao ano, em
novembro do ano passado, para mais de
250% ao ano em janeiro de 2024.
No ato bolsonarista, também havia
quem estivesse ali para faturar uns tro-
cados. Em uma barraquinha improvi-
sada, um livreiro oferecia aos transeun-
tes os exemplares da saga O Mito I, II,
III e IV. Amigas de infância, as jovens
Leidiana da Silva e Aline Rosa atraíram
grande clientela com seus “geladinhos
gourmets”, versão mais encorpada e so-
fisticada dos tradicionais geladinhos fei-
tos com suco em pó. As unidades tinham
preços que variavam de 8 a 15 reais. “É
a primeira vez que vendemos em mani-
festação. Viemos para lutar pela demo-
cracia do nosso País e aproveitamos para
oferecer nossos produtos. Quem empre-
ende vê oportunidade em tudo”, ensina
Aline. Já a colega Leidiana, formada em
Ciências Contábeis, tem planos de mon-
tar uma confeitaria, pois também vende
doces. “Se vendermos tudo, consigo mais
ou menos 700 reais. É um bom dinheiro
para quem vem lá da Zona Leste”.
Em meio a tantos astros em busca de
cinco minutos de fama, de um habilidoso
dançarino com óculos escuros a um cover
de Tio Sam com trajes em verde e amare-
lo, quem parecia fazer mais sucesso era o
carismático cão Clóvis, um exemplar da
raça Whippet. Vestindo uma versão ca-
nina da camisa da CBF, Clóvis não preci-
sou fazer mais nada para atrair a atenção
das câmeras de celular e tornar-se uma
celebridade instantânea..
CARTA CAPITAL
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