Prefeitura fecha serviço de aborto legal e entrega direção de hospital de referência a uma militante “pró-vida”
MARIANA FILGUEIRAS
Em meados de dezembro, a
mãe de uma criança de 12
anos, vítima de estupro e grá-
vida em decorrência do abu-
so, buscou o serviço de abor-
to legal do Hospital Municipal de Vila No-
va Cachoeirinha, na Zona Norte da capi-
tal paulista, e teve o atendimento negado.
As portas fechadas não faziam sentido,
uma vez que o local é referência para o
procedimento em todo o estado. Com a
gravidez em estágio avançado, a garota foi
acolhida pelo Projeto Vivas e levada para
Uberlândia, no interior de Minas Gerais,
a 600 quilômetros de São Paulo, para rea-
lizar o procedimento com segurança em
outra unidade do SUS. “Uma profissional
da saúde entrou em contato conosco e pe-
diu ajuda para que essa menina não ficas-
se largada de qualquer jeito, porque a pre-
feitura, além de negar o atendimento, re-
cusou-se a encaminhá-la para outro hos-
pital”, denuncia Rebeca Mendes, inte-
grante da ONG que auxilia mulheres a
acessar esse tipo de serviço.
Dias depois, a ONG foi acionada outra
vez, também por funcionários do servi-
ço de aborto legal, para acolher uma ado-
lescente de 15 anos que estava na mesma
situação. Esta foi encaminhada para Sal-
vador, na Bahia, a quase 2 mil quilôme-
tros da capital paulista. “Nesse momento,
descobrirmos que o Hospital de Vila Nova
Cachoeirinha havia suspendido o atendi-
mento para os abortos legais, mas foi tu-
do muito nebuloso. Não houve qualquer
anúncio formal sobre o que estava acon-
tecendo”, relata Mendes. Somente em 20
de dezembro a prefeitura divulgou um co-
municado oficial. Depois disso, a Justiça
determinou três vezes a retomada do ser-
viço, mas o município ignorou as decisões
e obteve uma liminar para derrubá-las.
A interrupção do serviço de aborto
legal é uma decisão do secretário muni-
cipal de Saúde, Luiz Carlos Zamarco, que
recentemente entregou a direção do hos-
pital à ginecologista Marcia Tapligliani,
filiada ao PL de Jair Bolsonaro e do go-
vernador Tarcísio de Freitas, neoaliados
do prefeito Ricardo Nunes, do MDB. Com
um forte discurso antiaborto, ela candida-
tou-se a deputada estadual nas eleições de
2022, mas não conseguiu se eleger – obte-
ve apenas 8.505 votos. “Não sei se já saiu a
nomeação (no Diário Oficial). Essa troca
na direção já estava sendo negociada des-
de novembro do ano passado”, confirmou
Zamarco à reportagem de CartaCapital.
“Havia algumas denúncias contra o an-
tigo diretor e tivemos que tirar ele de lá.”
Na avaliação de Mendes, do Projeto Vi-
vas, um acontecimento pode ter precipi-
tado o fim abrupto do serviço de aborto
legal. No ano passado, o Hospital de Vila
Nova Cachoeirinha passou a adotar um
novo método de interrupção da gravidez,
a indução à assistolia fetal, que leva à pa-
rada dos batimentos cardíacos do feto.
Esse procedimento é recomendado pelo
Ministério da Saúde em casos de aborto
tardio, após 22 semanas de gestação. São
poucos os hospitais no País que contam
com profissionais capacitados para rea-
lizar a intervenção. “Por incrível que pa-
reça, a Secretaria de Saúde de São Paulo
não sabia que esse procedimento estava
acontecendo no Vila Nova Cachoeirinha.
Aí começaram conflitos entre a coorde-
nação do serviço de aborto legal do hos-
pital e gestores da pasta”, relata a ativista.
Ainda de acordo com Mendes, funcio-
nários do hospital foram pressionados a
abandonar o procedimento, sob a infun
dada alegação de impedimentos legais. O
assédio foi tão grande que a coordenação
do serviço de aborto legal chegou a reali-
zar um workshop para tranquilizar os ser-
vidores e esclarecer que a legislação asse-
gura o direito ao aborto para mulheres ví-
timas de estupro, com gravidez de risco ou
com diagnóstico de má-formação do feto,
independentemente da idade gestacional.
Após trocar a direção do hospital, a Se-
cretaria de Saúde solicitou os prontuários
médicos de todas as pacientes que realiza-
ram aborto na unidade entre 2021 e 2023.
Os dados são sigilosos e só podem ser ob-
tidos com autorização judicial, mas essa
etapa foi atropelada. Zamarco alega que
as fichas foram acessadas para uma inves-
tigação interna, destinada a apurar se os
procedimentos realizados nos últimos
anos estavam “de acordo com a lei”.
Durante a campanha para deputa-
da estadual, a nova diretora do hospital
apresentou-se ao eleitorado como uma
“defensora da vida”. Em uma de suas pe-
ças publicitárias, Tapligliani argumen-
ta que a vida começa “a partir da concep-
ção”, algo que seria “indiscutível para a
ciência e a teologia”, e prossegue: “O PL
é a favor da preservação da vida em qual-
quer estágio evolutivo que ela se encon-
tre”. Mesmo fora no período eleitoral, ela
mantém a militância antiaborto. Che-
gou a divulgar a foto de um recém-nasci-
do no Instagram, acompanhada de uma
apelativa legenda: “Não há nada mais de-
sumano do que ter sua vida arrancada,
de ter o seu corpo destroçado impiedo-
samente enquanto ainda está vivo, sem
ter como se defender”.
Zamarco insiste que os serviços de
aborto legal não foram interrompidos
por questões ideológicas, e sim porque
o hospital precisava priorizar a realiza-
ção de cirurgias de endometriose, doen-
ça que afeta o tecido do interior do úte-
ro. “No ano passado, o Cachoeirinha não
fez o que precisava ser feito. Fez somente
13 cirurgias, e deixou 1.033 pacientes na
fila. Então a gente interrompeu o abor-
to para reorganizar o serviço. Nada con-
tra o Cachoeirinha fazer o aborto legal,
ele pode voltar a fazer, mas, primeiro, vai
ter de atender todas as pacientes com en-
dometriose que deixaram de ser atendi-
das.” Não há previsão de quando será
possível zerar essa fila, logo, não se sabe
quando o hospital voltará a abrir as por-
tas para mulheres em busca da interrup-
ção legal da gravidez, afirma o secretário.
Ao longo desses quase dois meses do
serviço suspenso, a Justiça determinou
três vezes que o hospital volte a prestar
o atendimento. A primeira decisão exi-
giu, ainda, uma busca ativa de todas as
gestantes que procuraram a unidade e
não foram acolhidas. Na segunda sen-
tença, a juíza Simone Gomes Rodrigues
Casoretti, da 9ª Vara de Fazenda Pública
do Tribunal de Justiça, determinou que
o serviço fosse retomado em até dez dias
e proibiu o hospital de recusar pacientes
em busca do aborto legal. Na terceira, a
mesma juíza estipulou multa diária de 50
mil reais em caso de descumprimento da
decisão. Em paralelo, o Ministério Públi-
co também pediu à prefeitura explicação
dos motivos que levaram à desativação
do aborto legal na unidade de saúde, e es-
tipulou um prazo de dez dias, a contar a
partir de 11 de fevereiro, para que sejam
prestados tais esclarecimentos.
A prefeitura conseguiu, porém, uma
liminar que derrubou as três decisões ju-
diciais. “Provamos ao juiz não ser verda-
de que o município não realiza o abor-
to legal depois de 22 semanas em outros
hospitais. Nós oferecemos esse serviço
em quatro outras unidades, e por isso pu-
demos interromper o atendimento no
Cachoeirinha”, alega o secretário de Saú-
de. Segundo Zamarco, a orientação aos
funcionários do Vila Nova Cachoeirinha
é que toda paciente em busca de abort
que chegue à unidade seja direcionada
para um dos outros hospitais habilita-
dos a prestar o atendimento.
As ações judiciais foram movidas pe-
la deputada federal Luciene Cavalcan-
te e pelo vereador Celso Giannazzi, am-
bos do PSOL. “É muito grave o que está
acontecendo. A prefeitura não pode ne-
gar um direito que é garantido por lei às
mulheres desde 1940 no nosso país”, la-
menta Cavalcante. “Estamos preparando
novos recursos. Vamos seguir com a ba-
talha no Judiciário, mas também vamos
acionar o Ministério dos Direitos Huma
nos e Cidadania e o Ministério das Mu-
lheres, porque entendemos que um direi-
to tão importante como esse não pode ser
tratado dessa forma.”
A ativista Tabata Tesser, do grupo Ca-
tólicas pelo Direito de Decidir, atribui a
suspensão do serviço a uma estratégia
eleitoreira de Ricardo Nunes. “Ele sem-
pre foi um dos principais ativos do conser-
vadorismo de São Paulo, e agora está em
busca de apoio bolsonarista para seu pro-
jeto de reeleição. Claramente transfor-
mou esse episódio num fato político pa-
ra agradar a essa base”. Já a médica obste-
triz Maira Bittencourt, integrante do Co-
letivo Feminista Sexualidade e Saúde, que
integra a Frente Estadual pela Legaliza-
ção do Aborto de São Paulo, vê com mui-
ta preocupação o atual cenário. “É uma
quebra na cadeia dos direitos. O hospital é
referência. Ao interromper o serviço des-
sa forma, além de dificultar o acesso, au-
menta o estigma sobre as mulheres que
buscam o aborto. É muito grave.”
Ela explica que o coletivo faz um tra-
balho de redução de danos, “atendimento
que o Estado deveria prestar e não faz”, de-
nuncia. No caso do acesso ao aborto, redu-
ção de danos é acolher e ajudar a gestante
a realizar o procedimento em segurança
se estiver dentro da legalidade. “Agora, se
uma mulher decide abortar de forma ile-
gal, não é porque é criminalizado que ela
vai deixar de fazer, então o nosso papel é
tentar reduzir os riscos”, explica.
Nos casos de aborto ilegal, o grupo
composto de médicas, psicólogas e pro-
fissionais do Direito orienta a gestante
sobre os riscos envolvidos, alertam pa-
ra os golpes que podem existir nas redes
clandestinas com medicamentos falsos e
esclarecem os sintomas que precisam ser
analisados para buscar ajuda médica. Es-
se trabalho é realizado também no Uru-
guai e na Colômbia e foi importante pa-
ra fazer esses países avançarem ao pon-
to em que estão hoje, onde o aborto é ga-
rantido em qualquer situação.
CARTA CAPITAL
No comments:
Post a Comment