Diva do jazz gravou clássicos da MPB e dividiu estúdios com ícones da nossa música
Dona de uma das vozes mais admiráveis do século XX, ela teve passagens memoráveis pelo país, onde gravou canções de Milton Nascimento, Tom Jobim e Marcos Valle
Por Silvio Essinger
Entre as cantoras do jazz, apenas Ella Fitzgerald e Billie Holiday foram capazes de fazer frente a Sarah Vaughan. Uma das vozes mais impressionantes do século XX, a americana completaria 100 anos nesta quarta-feira (27) — morreu em 1990, aos 66 anos, pouco depois de ter sido diagnosticada com um câncer no pulmão. Sarah deixou em palcos e discos a memória do máximo de intensidade, flexibilidade, alcance e expressão que uma voz pode atingir — era comum se dizer que ela conseguia tirar algo no mínimo aproveitável mesmo das piores canções.
Nascida em 27 de março de 1924 em Newark, Nova Jersey, de pai carpinteiro e músico e de mãe lavadeira e cantora de coro de igreja, Sarah Vaughan percorreu, como cantora e pianista negra, a estrada da evolução do jazz que levaria ao bebop. Trabalhou com alguns dos inventores do estilo, como o trompetista Dizzy Gillespie e o saxofonista Charlie Parker, e o resultado dessa experiência foi a incorporação de fraseados típicos desse novo e intrincado jazz a gravações de sucesso como “If you could see me now”, “Tenderly” e “It’s magic”. Foi uma riqueza que Sarah levou carreira adiante, mesmo quando optava por um repertório mais comercial, adequado ao mercado branco.
Uma noite com Simonal
Com seu vibrato rico e um entendimento sem igual para a estrutura harmônica das canções, era uma questão de tempo que a cantora viesse a descobrir o Brasil, país que acabaria respondendo por uma significativa parte da sua história musical.
Em 2009, o documentário “Simonal — Ninguém sabe o duro que dei”, de Micael Langer, Calvito Leal e Cláudio Manoel, trouxe à tona a memória da apresentação que a cantora e um sedutor Wilson Simonal fizeram em 1970, para a TV Tupi, com duetos em “The shadow of your smile” e “Oh, happy day”. Esse encontro antológico serviu para despertar em Sarah um interesse genuíno pelo Brasil e sua música, demonstrado por seguidas visitas ao país.
Em 1976, quando vivia em Los Angeles, o cantor, pianista e compositor Marcos Valle recebeu uma ligação do arranjador e produtor de jazz Marty Paich com o convite de dividir com Sarah Vaughan uma recriação bossa de “Something”, de George Harrison, gravada originalmente pelos Beatles.
— Sarah ficou feliz com a gravação e pediu que eu fosse à casa dela para mostrar algumas músicas. Levei partituras, entre elas a de “Preciso aprender a ser só” (de Marcos com o irmão, Paulo Sérgio Valle). Na hora em que fui mostrar a música, ela disse: “Pode deixar que eu mesma toco!” Sarah foi para o piano e cantou, lendo a partitura que eu levei, e tocou um piano belíssimo — recorda o brasileiro. — Quando ela disse que queria gravar essa música, sugeri que ela gravasse um disco só com músicas brasileiras. Ela comprou a ideia e, como precisava de um produtor, apresentei-a ao Aloysio de Oliveira, que estava em Los Angeles.
Dito e feito. No ano seguinte, Sarah Vaughan embarcou numa turnê latino-americana, acompanhada do diretor Thomas Guy (que registrou a passagem por vários países no documentário “Listen to the sun”).
Uma vez no Rio de Janeiro, pôs em prática o plano de produzir com Aloysio as faixas que entrariam nos discos “I love Brazil!” e “O som brasileiro de Sarah Vaughan”. As gravações aconteceram em Copacabana, no estúdio da gravadora RCA (hoje, Cia. dos Técnicos). Participaram ídolos da MPB, como Tom Jobim, Dorival Caymmi e Milton Nascimento, em canções como “If you went away” (versão de “Preciso aprender a ser só”) e “Bridges” (a “Travessia” de Milton e Fernando Brant).
— Na hora de gravar, ela não botava cola, não. Eram melodias difíceis, coisas de Milton Nascimento, não era “Cai, cai, balão”. E ela gravava tudo de primeira! — conta Chico Batera, que tocou percussão em boa parte das gravações cariocas da cantora. — Sarah estava na maior alegria, era Rio de Janeiro, com namorado novo... o clima era de festa.
Memórias do estúdio
Em 1987, Sarah Vaughan voltaria a gravar um disco de repertório brasileiro, “Brazilian romance”, só que em Los Angeles, com músicos americanos e produção do pianista niteroiense Sérgio Mendes (que fora para a cidade nos anos 1960 e não voltou mais).
Vivendo em Los Angeles na época, Dori Caymmi assumiu os arranjos do disco da cantora — sua ídola, cujos discos ouviu em casa, na infância, tocados pelo pai Dorival, e que no Rio, em 1977, gravaria “Like a lover” (versão em inglês de “O cantador”, parceria de Dori com Nelson Motta).
Hoje em dia, Dori diz não gostar nada do resultado de “Brazilian romance” e de sua sonoridade pop. Mas guarda boas recordações da gravação com Sarah, que voltaria a encontrar uma última vez, no Rio, naquele mesmo ano, num Free Jazz Festival:
— Eu apresentei para a Sarah “Photograph” (versão de Tracy Mann para “Tati, a garota”, canção que ele e Paulo César Pinheiro tinham composto), e ela disse que não queria cantá-la. Eu respondi “o.k.”, e ela: “Você concorda com tudo o que eu falo? Sabe, acho que vou gravar ela, sim!” E cantou maravilhosamente, segurando a minha mão.
GLOBO
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