Oprimida e cansada de esperar
a demarcação oficial, a etnia ocupa
o território reivindicado no sul da Bahia
P O R FA B Í O L A M E N D O N Ç A
Na noite de 30 de maio, en-
quanto os deputados fede-
rais aprovavam o Projeto de
Lei 490, a versão legislativa
do Marco Temporal, um
grupo fortemente armado invadiu a terra
dos Pataxós, no extremo sul da Bahia. Pis-
toleiros entraram atirando em uma pro-
priedade rural em Barra Velha, no muni-
cípio de Porto Seguro, onde um grupo de
indígenas tinha montado um acampa-
mento um dia antes. Deixaram um ferido.
Em janeiro deste ano, os jovens Samuel
Cristiano do Amor Divino, de 25 anos, e
Nawy Brito de Jesus, de 16 anos, morre-
ram após serem baleados por policiais mi-
litares a serviço de fazendeiros. Os jovens
integravam um movimento para a reto-
mada do território na região. Mesmo des-
tino teve Gustavo Silva da Conceição, de
14 anos, assassinado por pistoleiros.
Os episódios têm em comum a disputa
por terra nos municípios de Prado, Itama-
raju, Santa Cruz Cabrália e Porto Seguro,
área marcada por violência e pela insegu-
rança. A tensão aumentou depois de os Pa-
taxós dos territórios Barra Velha do Mon-
te Pascoal e Comexatibá se cansarem de
esperar a demarcação oficial e ocuparem
o território tomado por grileiros. Por cau-
sa do clima de faroeste, a Comissão Inte-
ramericana de Direitos Humanos emitiu,
em maio, medida cautelar na qual reco-
menda ao Brasil proteger os Pataxós. Em
19 e 20 de junho, uma comitiva do Minis-
tério dos Povos Indígenas esteve na região
para colher informações. A ministra Sô-
nia Guajajara prometeu, em parceria com
a pasta da Justiça, enviar agentes da Força
Nacional e acelerar o processo de demar-
cação. “Vamos retomar esse diálogo”, pro-
meteu a ministra. A delimitação de Barra
Velha, acrescentou, está mais avançada.
“Aguardamos a publicação do novo decre-
to, para que a gente possa dar os encami-
nhamentos devidos.”
O antropólogo José Augusto Sam-
paio, professor da Universidade Estadual
da Bahia e presidente da ONG Associa-
ção Nacional de Ação Indigenista, lem-
bra que desde o governo Dilma Rousseff
não há uma política de demarcação de
terras indígenas, situação agravada nas
eras Temer e Bolsonaro, quando a vio-
lência contra os indígenas foi legitima-
da. “Com a reação dos Pataxós na auto-
demarcação, os fazendeiros começaram
a colocar seguranças armados para im-
pedir a ocupação pacífica”, diz Sampaio.
A reação não intimidou, porém, os indí-
genas, que mantiveram a iniciativa. Não
por outra razão, a Bahia foi no ano passa-
do o segundo estado mais violento contra
populações tradicionais, segundo o rela-
tório Além da Floresta: Crimes Socioam-
bientais nas Periferias, recém-divulgado
pela Rede de Observatórios de Seguran-
ça. Entre 2017 e 2022, registra o docu-
mento, foram 428 vítimas de violência.
Mais da metade (53,27%) corresponde
a ameaças, seguida por lesões corporais
(22,66%) e injúrias (12,15%).
“A nossa luta começou em 1500, na co-
lonização. Os poderosos às vezes vence-
ram, nos perseguiram, odiaram os po-
vos indígenas. Mas foi a partir do fim dos
anos 1940 e início de 1950 que começa-
ram a chegar na região os invasores, si-
tuação que se agravou com a construção
da BR-101 e com o Parque Nacional Mon-
te Pascoal, pegando a área de Barra Velha.
Ali começou a nossa luta contra o governo
e os latifundiários que chegavam do Rio de
Janeiro, São Paulo e Espírito Santo”, afir-
ma Joel Braz, cacique da aldeia Serra do
Gavião e um dos coordenadores da Frente
de Resistência e Luta Pataxó. Com a cria-
ção do parque, os indígenas foram proibi-
dos de caçar, pescar ou entrar na mata. Na
ditadura, as invasões aumentaram e es-
premeram os nativos em pouco mais de
8 mil hectares. “O IBDF (Instituto Brasi-
leiro de Desenvolvimento Florestal, órgão
que antecedeu o Ibama) cedeu à Funai a
área, cujo documento dizia que estava do-
ando para nós”, descreve Braz.
No fim dos anos 1990, a Funai deu
início a um novo estudo para a delimi-
tação da área indígena e, em 2008, re-
conheceu quase 90 mil hectares como
território Pataxó, número questiona-
do pela etnia, que reivindica o dobro,
180 mil hectares. O estudo antropológi-
co de 15 anos atrás, de posse do Ministé-
rio da Justiça, serve de base para a “auto-
demarcação” que alimenta o atual con-
flito. Neste momento, os Pataxós estão
acampados em mais de 40 fazendas da
região, a despeito do ataque constante de
pistoleiros. “Vivemos um momento ten-
so, nosso povo está sendo morto e os ca-
ciques perseguidos. Nosso povo não deu
um tiro sequer, só vem da parte dos lati-
fundiários”, desabafa o cacique Bacurau
da aldeia Vale da Palmeira, em Barra Ve-
lha. Bacurau tem ordem de prisão decre-
tada pela Justiça da Bahia e se diz vítima
de ameaças e perseguições. “Se eu parar,
alguém vai me suceder e continuará lu-
tando pelo nosso território.”
As investigações em curso na Polí-
cia Civil apontam que os autores dos as-
sassinatos de Gustavo, Samuel e Nawy
são policiais que fazem bicos de segu-
rança para fazendeiros. Três PMs foram
presos, suspeitos de assassinar Gusta-
vo. Há ainda quatro mandados de bus-
ca e de prisão temporária de um policial
acusado de executar Samuel e Nawy. Se-
gundo a Secretaria de Segurança Públi-
ca da Bahia, o Inquérito Policial de Gus-
tavo foi encaminhado à Polícia Federal
de Porto Seguro e aquele que investiga
a morte de Samuel e Nawy segue em an-
damento. Os pistoleiros, denuncia o ca-
cique Zeca, coordenador do Movimen-
to Indígena da Bahia, são contratados
para impedir a ocupação. “Eles traba-
lham de dia e à noite fazem bicos para
os fazendeiros. A tensão é constante. Os
ataques acontecem à noite, eles chegam
atirando nos acampamentos”, descreve,
ao cobrar dos governos federal e estadu-
al providências para punir não só os au-
tores dos crimes, mas também os man-
dantes. “Quem está mandando matar o
nosso povo? O poder econômico dos fa-
zendeiros e políticos da região fala mais
alto. Temos mais de cem indígenas no
programa de proteção, dentre eles mais
de dez caciques, porque não temos o mí-
nimo de segurança. O governo precisa
dar uma resposta.”
Com o aumento da violência no extre-
mo sul da Bahia, o governo criou uma for-
ça-tarefa para cuidar da segurança na re-
gião, formada por agentes das polícias Ci-
vil, Militar, Técnica e Rodoviária Fede-
ral. Em janeiro, após o assassinato dos
dois jovens, foi instalado um gabine-
te de crise que passou a contar com re-
presentantes do Ministério dos Povos
Indígenas, Funai, Ministério da Justi-
ça, governo da Bahia, Defensoria Públi-
ca da União, Ministério Público, Conse-
lho Nacional de Direitos Humanos e Ar-
ticulação dos Povos Indígenas do Brasil.
Os Pataxós dizem que o aparato mon-
tado não é suficiente e cobram a presen-
ça da PF e da Força de Segurança Nacio-
nal. O governador Jerônimo Rodrigues,
do PT, que se identifica como indígena,
diz não ser necessário o aparato federal e
alega que a estrutura estadual tem dado
conta do recado. Durante a edição esta-
dual do Acampamento Terra Livre, en-
tre 12 e 16 de junho em Salvador, Rodri-
gues discursou e posou para fotos com
um cocar. O governador recebeu dos Pa-
taxós um pedido de providências contra
a violência. “Existe uma guerra travada.
A milícia está muito forte na região. A
gente não sabe quem é policial e quem
é pistoleiro. Muitos policiais têm vín-
culos com fazendeiros e donos de ho-
téis. Eles pegam informações dos indí-
genas e mandam direto para a mesa dos
fazendeiros e pousadeiros. Precisamos
da força nacional, autoridade competen-
te, sem vínculo com os poderosos”, re-
clama o cacique Valzinho, da aldeia Que-
ro Ver. Segundo ele, é comum circularem
caminhonetes com homens encapuza-
dos e armados, sem nenhum tipo de res-
trição. Vários fazendeiros entraram na
Justiça para desmontar os acampamen-
tos, sem êxito, pois o processo de demar-
cação está em curso e os juízes preferem
aguardar a conclusão do caso. Os indíge-
nas não vão se intimidar, garante Valzi-
nho. De acordo com cálculos do cacique,
80% da área de Barra Velha está ocupa=
da. “Enquanto não tivermos de volta o
nosso território, não vamos recuar. A au-
todemarcação é para isso. Se não sair de
um jeito, sai de outro.”
Patrícia Pataxó Hã-Hã-Hãe, superin-
tendente de Políticas para os Povos Indí-
genas do governo da Bahia, explica que o
estado tem promovido um diálogo com os
órgãos indigenistas de forma a tratar as
questões de maneira adequada e garan-
tir a promoção dos direitos da população.
Ela lembra, no entanto, que cabe à Funai e
ao governo federal prover a posse de terra.
Hã-Hã-Hãe ressalta que o governo estadu-
al tem realizado visitas técnicas nas co-
munidades indígenas e recebido lideran-
ças nos órgãos públicos para acolher de-
mandas e acompanhar a realidade da po-
pulação e que, no caso específico dos Pata-
xós, o órgão coordenador mantém diálogo
com as secretarias de Segurança Pública,
de Justiça e Direitos Humanos, com a Po-
lícia Federal e o Ministério Público Fede-
ral para apurar os assassinatos, além das
denúncias de ameaças, ataques e violação
dos direitos indígenas. “Em resposta aos
conflitos e aos crimes que vitimaram in-
dígenas da etnia Pataxó, foi determinada a
criação de uma força-tarefa para a intensi-
ficação do policiamento ostensivo da PM,
conclusão das investigações e ações de po-
lícia judiciária pela Polícia Civil e o Depar-
tamento de Polícia Técnica. Em janeiro de
2023, foi criada a Força Integrada de Com-
bate a Crimes Comuns envolvendo Povos
e Comunidades Tradicionais. Ações que
já levaram à prisão dos suspeitos que co-
meteram os crimes contra o povo Pataxó”,
enumera. Além disso, o governo estadual
criou, em março, o Plano de Atuação Inte-
grada de Enfrentamento à Violência con-
tra Povos e Comunidades Tradicionais. •
CARTA CAPITAL
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