de TATIANA DIAS
Insatisfeito com o governo, um empresário ficou sabendo de protestos em uma praça central da cidade pelo Facebook e Twitter. Nas ruas, cidadãos munidos de celulares fotografavam, filmavam e postavam para reportar o que, segundo eles, a mídia tradicional não mostrava. Empoderadas e conectadas, as pessoas comuns criavam uma nova forma de fazer política. Suas opiniões tinham valor, e qualquer mobilização poderia ser organizada em poucas horas, desafiando tentativas de censura, o status quo e o poder que ousasse não respeitar a vontade das ruas.
Você conhece muito bem essa história. Mas ela não é a de um empresário catarinense que, informado pelo WhatsApp e YouTube e articulado em grupos de Telegram, resolveu acampar na frente de um quartel protestando a favor da "liberdade" e contra a "censura" em um delírio bolsonarista. Ela aconteceu em 2010, no Egito, quando milhares de pessoas se articularam pela internet e foram às ruas protestar contra o regime de Hosni Mubarak, no movimento que ficou conhecido como Primavera Árabe e chancelou as redes sociais como ferramentas potencialmente revolucionárias – para o bem (nos moldes das democracias liberais ocidentais, claro).
Embora alguns líderes das empresas de tecnologia contestassem na época o papel das redes na transformação da política – caso de Mark Zuckerberg, do Facebook – quase o mundo inteiro comprou a ideia de que a grande praça pública e a comunicação descentralizada eram um motor para a democracia no mundo.
Seguiram-se anos de entusiasmo, com órgãos antitruste passando pano para aquisições desenfreadas de big techs e tentativas regulatórias sendo asfixiadas em nome da preservação do potencial livre, inovador e aberto das redes. Estar no Twitter, Facebook, Google se tornou vital para qualquer um, em qualquer instância. Até mesmo as relações internacionais e comunicação entre chefes de estado, tradicionalmente litúrgica, migrou para plataformas privadas. Era a chamada "twiplomacy", tão festejada pelos profissionais de políticas públicas do Twitter.
Agora estamos vivendo as consequências disso – e vai piorar. As duas últimas semanas foram didáticas ao explicitar o risco de permitir que plataformas privadas concentrem e mediem o debate público. As redes sociais nunca foram uma praça pública, como bem apontaram muitas pessoas desde o início da ascensão desse modelo comercial baseado em coleta desenfreada de dados, anúncios direcionados e mecanismos para prender a atenção e viciar usuários. Estavam mais para shoppings mesmo.
Mas elas se vendiam muito bem, e esse discurso até colou durante alguns anos – até quando ficou muito claro o potencial delas na disseminação de fake news, teorias conspiratórias, discurso de ódio e, em última instância, corrosão do debate público e da própria democracia.
Ok, você poderia dizer, mas seus donos e acionistas são responsáveis, há profissionais excelentes trabalhando duro e estudando para coibir efeitos nocivos, as plataformas investem pesado em projetos e iniciativas sociais e de mídia e há um genuíno esforço para mitigar o lado ruim.
Essas duas semanas deixaram claro: não, não há. Por mais boa vontade que exista, nada – profissionais competentes, um bom departamento de RP, acionistas que não querem ter prejuízo, projetos de diversidade e inclusão – consegue frear o potencial danoso da enorme concentração de poder e do modelo de negócios perverso das grandes plataformas. Confiar é um erro.
A devassa de Elon Musk no Twitter é o exemplo mais óbvio. Defensor da liberdade de expressão incondicional, ele prometeu acabar com políticas de combate à desinformação e ao discurso de ódio – em outras palavras, com as áreas do Twitter que, ainda que de forma falha, garantiam que aquele ambiente não se transformasse em um antro nazista e de extrema direita na internet – e está conseguindo. Ele já tinha tentado dialogar com Putin pelo Twitter sobre a guerra na Ucrânia – agora, é considerado por alguns um problema de segurança nacional nos EUA.
Mal assumiu a empresa, o bilionário já promoveu um passaralho que afetou áreas inteiras, como a de direitos humanos. O escritório no Brasil praticamente acabou. Criou um caos de tal tamanho que engenheiros dizem que o site pode ter problemas técnicos sérios em breve – e diretores estratégicos de áreas como segurança, privacidade e compliance renunciaram ao cargo. O FTC, órgão regulador americano, já avisou que "ninguém está acima da lei" e acompanha as movimentações. E, em meio ao caos, Musk admitiu que não descarta a falência da empresa.
Desesperado para ganhar dinheiro e fazer valer os US$ 44 bilhões da compra, sua principal aposta é a verificação azul para qualquer seguidor que possa pagar – e garantir que, pagando bem, o usuário terá mais visibilidade do que todo o resto. (Curiosamente, exatamente o contrário do que consolidou o Twitter como uma grande praça de conversas democráticas, com qualquer usuário podendo viralizar tanto quanto qualquer outro famoso.) A novidade já está funcionando e seu principal efeito, até agora, é uma profusão de fakes verificados que rendem risadas, mas transformam o Twitter em um caos informacional muito pior.
Não poderia ser mais didático: era isso que acreditávamos que era revolucionário, praça pública de conversas horizontais, novo palco da diplomacia mundial etc. Um brinquedo de bilionário.
E não é só o Twitter. Só nessa semana, nós mostramos no Intercept que, apesar da resolução do TSE e de regras próprias da plataforma, o YouTube tem falhado em moderar conteúdo antidemocrático (e proibido). A plataforma do Google também privilegiou, ao longo das eleições, a Jovem Pan nas recomendações aos usuários. Perguntei ao YouTube quantos moderadores trabalhavam especificamente no Brasil, já que vários denunciantes de big techs já apontaram que as empresas globais, em geral, dedicam menos esforços para países do sul global. A empresa não me respondeu.
O que as redes criam se reflete nas ruas. Os golpistas vivem em um ecossistema informacional paralelo, que o pesquisador João Cezar Castro Rocha classificou como "dissonância cognitiva coletiva deliberada". Segundo ele, a extrema direita transnacional, com apoio do capital internacional e das big techs, aprendeu a combinar o elemento verticalizador das plataformas – que atuam filtrando e organizando o que os usuários veem – com a horizontalidade. É um ecossistema de mídia que se parece com a Hidra de Lerna: você exclui um canal agora, na sequência surge outro, e o verdadeiro problema nunca é resolvido.
Quem ganha com isso? Os "MEIs", o que o pesquisador chamou de "microempreendedor ideológico", que lucram com a radicalização política em anúncios em seus canais no YouTube. As plataformas e seus acionistas, que recebem anúncios por cliques e audiência (e faturaram centenas de milhões de reais só na campanha eleitoral brasileira), em um modelo de negócios próspero. E os bilionários, como Musk, que não apenas querem tentar piorar a lógica da rede a fim de aumentar a margem de lucros, mas também transformá-la em uma arma política e comunicacional a favor de seus outros negócios nos EUA e no mundo.
A essa altura, já deveria estar claro: a internet comercial como é hoje, essa que aprisiona os usuários – usuários, como os de drogas – em seus ecossistemas moldados para maximizar o lucro não é revolucionária. Muito pelo contrário. É uma prisão perigosa para nós e para a sociedade. Por mais que iniciativas de reparação existam e sejam bem-vindas, elas ainda dependem da boa vontade de empresas privadas – e Elon Musk no Twitter mostrou que, por melhor que seja a iniciativa, nossa comunicação estratégica estará sempre à mercê de quem paga mais.
Não podemos ser brinquedos de bilionários ou minas de dados para grandes extrativistas digitais. Esse sistema precisa ser revisto e regulamentado de forma apropriada, ampla e responsável antes que a próxima onda conservadora chegue. E aí pode ser tarde demais.
INTERCEPT
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