Jamil Chade
Quero te contar uma história. Em dezembro de 2010, numa noite fria em Zurique, estávamos todos esperando pelo anúncio do resultado da votação sobre onde seriam as Copas de 2018 e 2022. Minutos antes de o evento começar, encontrei um lugar ao lado de um colega escocês e, por coincidência, na fileira de trás de uma parte da delegação do Qatar.
Diante de mim, um dos spin doctors mais polêmicos e eficientes do mundo estava sentado. Mike Lee, que já faleceu, trabalhava pela campanha do Qatar, país que tinha sido classificado no relatório técnico da Fifa como o pior entre todas as candidaturas para sediar a Copa. Tirou a nota mínima e só não foi retirado do processo por uma decisão política.
Era a candidatura de um país que jamais tinha ido para um Mundial, que falava no absurdo de ar condicionado em estádios e que tinha sido humilhado no COI (Comitê Olímpico Internacional), anos antes, ao tentar sediar os Jogos Olímpicos.
Contra o minúsculo país estavam a sedução da Austrália, a tecnologia do Japão e a influência política e econômica dos EUA. Bill Clinton, de fato, estava também na sala.
Faltavam cerca de trinta minutos para Joseph Blatter subir ao palco com o envelope ao qual, supostamente, ninguém tinha acesso. Ali estaria o nome do vencedor de um evento que movimenta US$ 5 bilhões.
Lee, então, se vira para mim e, com as mãos, faz um sinal de que o Qatar tinha sido escolhido. E pisca, abrindo um enorme sorriso de satisfação. Ao lado do escocês, minha reação foi de deboche. Mas, em silêncio, pensei: "será que eles terão coragem de fazer isso? O futebol está mesmo à venda?"
Instantes depois, quando Blatter abre o envelope e a palavra "Qatar" explode nas manchetes de todo o mundo, Lee se volta para nós e confirma de novo com as mãos uma mensagem clara: "eu avisei".
Senhor presidente,
A Copa de 2022 é uma aberração. Não existiam motivos técnicos que a justificassem.
A Copa de 2022 é um projeto político de uma elite no poder que, com o futebol, comprou sua inserção no mundo.
A Copa de 2022 é imoral e uma afronta aos defensores de direitos humanos, ativistas e ambientalistas.
A Copa de 2022 é erguida sobre o sangue, lágrimas e a destruição da dignidade de operários que, sem pausa de verão, trabalharam em condições de semiescravidão.
A Copa de 2022 é um deboche aos torcedores de todo o mundo, incapazes de sonhar com a possibilidade de ter recursos para bancar uma estadia em Doha.
A Copa de 2022 é um insulto às mulheres e aos homossexuais, enquanto influenciadores postam nas redes sociais as maravilhas das torneiras douradas dos estádios.
Sempre que coloquei essa minha visão, ouvi duas respostas:
1. A Copa vai ajudar a abrir o Qatar ao mundo.
Minha resposta: a história mostra que isso é uma grande mentira. Em 2008, o COI usou o mesmo argumento para falar do impacto que a Olimpíada teria para a China. E a tal da abertura jamais chegou.
2. A Copa não pode ser o privilégio de apenas alguns poucos países do mundo.
Minha resposta; óbvio que não pode. Mas tampouco pode ser o privilégio de regimes violadores de direitos humanos que usam o evento para mostrar um rosto moderado e aceitável ao mundo.
Caro Infantino,
Quando o senhor estiver sentado nas confortáveis e luxuosas poltronas dos estádios no Qatar e sentir um incômodo, não se surpreenda. Pode ser que seja o deserto, que rende a todos nessa parte do mundo. Ou talvez sejam os espíritos que, já com seus passaportes devolvidos pelos empregadores na forma de caixão, agora podem circular finalmente de forma livre pelo país.
"Sabían de la muerte, lo duro que es el pan", cantaria Victor Jara. "Venían del desierto, de los cerros y del mar".
Quando, nestas lindas arquibancadas o senhor gritar gol, não tenha ilusão. Ele será incapaz de abafar o berro que já ecoa por cada corredor desses estádios. O grito do desespero de uma parte da humanidade invisível.
Saudações tricolores,
Jamil
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UOL
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